quinta-feira, 17 de março de 2016

A cobra coral - Maria Cristina Fernandes

• Lula não conseguirá agregar apoio se for para o confronto

- Valor Econômico

A divulgação do grampo do agora ministro da Casa Civil com a presidente Dilma Rousseff transforma a crise num dramático 'reality show'. Poucos minutos depois da divulgação do grampo em que a presidente informa a seu antecessor do envio do termo de posse para ser usado 'em caso de necessidade', manifestantes tomaram a frente do Palácio do Planalto e ruas de várias capitais.

Lula, como sugere o juiz Sergio Moro, parecia ter ciência do 'reality show'. No telefonema com Dilma que se seguiu à condução coercitiva, Lula repetiu o discurso que faria ao longo do dia sobre a perseguição do juiz. A presidente, que o trata por 'senhor' transfere o telefone para o agora chefe de gabinete da presidente, Jaques Wagner. Nesse momento, Lula pede que ele fale com sua sucessora sobre a ministra Rosa Weber, titular de uma de suas ações no Supremo. Lula acabara de sair de um depoimento de quatro horas à PF, mas se mostrava consciente de que não deveria entabular essa conversa diretamente com a presidente da República.

Cinco dias depois, o ex-presidente e sua sucessora pareciam ter baixado a guarda. Horas antes da oficialização de Lula como ministro, entabulariam a conversa sobre o termo de posse que serviria de salvo conduto contra uma investida da primeira instância como se Sérgio Moro não estivesse mais no seu encalço.

Ao liberar o sigilo do grampo, o destemido juiz de Curitiba explicita a pressão para que o Supremo repita com Lula o mesmo procedimento utilizado com o senador Delcídio Amaral, preso por obstrução da justiça no exercício do mandato de senador. Dos ministros que podem vir a se confrontar a Moro, apenas Marco Aurélio Mello explicitou o entendimento de que não se trata de obstrução da justiça mas da busca de saídas para o impasse político.

O ex-presidente acusado de incitar sua sucessora a obstruir a justiça fala com seu principal conselheiro jurídico, o advogado Sigmaringa Seixas, e lhe pergunta se ele tem falado com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Lula estava na mira da Lava-jato há dois anos e já tinha passado pela condução coercitiva quando ouve de Sigmaringa: "Há muito tempo não falo com ele". Noutro momento que indica o isolamento do ex-presidente frente à muralha erguida pelo Supremo, o ex-presidente pergunta quando a ministra Rosa Weber vai se mexer. "E eu sei lá", responde o advogado.

A primeira missão do novo ministro da Casa Civil é barrar o impeachment que a oposição agora vê condições de acelerar. Para ter alguma chance de êxito, Lula terá que se despir da fantasia de jararaca que enverga nos grampos. A despeito do desespero exibido em vários dos telefonemas e do grau de animosidade das relações com o que chama, no grampo, de 'República de Curitiba', Lula não terá êxito em agregar apoio à sua missão se for para o confronto.

Se saída houver passará, necessariamente, pela busca de aliados como o presidente do Senado, Renan Calheiros que, ontem, demonstrou preocupação com a divulgação de grampo envolvendo a presidente. Mais do que insistir na divisão do PMDB, o governo, na visão de um ministro com amplo acesso ao partido, deveria atrair de volta o vice-presidente Michel Temer e contemplar sua interlocução com o empresariado que resultou na 'Ponte para o futuro'.

Na noite de quarta-feira, quando Lula discutia a formação de seu gabinete em Brasília, Temer desembarcava em São Paulo. No sábado, o presidente do Senado lhe fizera uma deferência ao acompanhá-lo desde o Palácio do Jaburu até a convenção do partido. A cortesia de Renan, no entanto, não é garantia de que a unidade pemedebista é irremovível. Confortavelmente instalado no jogo de ambiguidades que tomou posse em Brasília, Renan tem uma capacidade de arregimentação que pode ser facilmente medida pelo placar de suas votações para a Presidência do Senado.

Ao voltar ao cargo em 2011, o senador amealhou 56 votos, quatro a mais do que o fez em 2007, quando teve de renunciar ao cargo para não ser cassado. A decisão de ontem do Supremo, que mantém o Senado no papel de revisor do impeachment, reforçou os poderes de Renan que, no entanto, não terá como se contrapor a uma votação acachapante na Câmara.

A entrada de Lula no governo deixa o ex-presidente e a cúpula do PMDB na dependência do mesmo foro jurídico. O grampo oferece a Lula a oportunidade de arregimentar aliados vitimados com uma estratégia comum de defesa a partir do Planalto.

Para cabalar votos contra o impeachment, Lula terá ainda que se mostrar capaz de reverter as expectativas na economia. Não é com a fantasia de jararaca que será capaz de reconquistar a confiança do empresariado.

O histórico de suas intervenções ao longo do segundo mandato de Dilma mostra um Lula ocupado em bombardear a guinada conservadora da política econômica, menos por suas convicções do que pelas batalhas que comprou dentro do governo. Agora que é poder, Lula levanta, na sua base petista e sindical, a expectativa de gastança. O novo ministro, no entanto, terá que mimetizar uma dissimulada cobra coral para retomar a agenda que o levou a tirar o país da crise encontrada em 2003.

A delação de Delcídio confirma mais um flanco a ser aberto pela força-tarefa na defesa do ex-presidente a partir dos pontos sem nó do processo do mensalão que podem se ligar, para prejuízo de Lula, com a Lava-Jato.

O liame é também o mais comprometedor até aqui já revelado sobre a oposição. Ao acusar o senador Aécio Neves de ter pedido dilatação do prazo para a quebra de sigilo do Banco Rural com o propósito de maquiar transferências de sua titularidade para paraíso fiscal, Delcídio reforça a tese de que o mensalão foi um escândalo petista com software tucano.

Se comprovada, a acusação ameaça não apenas o futuro do presidente do PSDB como o discurso anticorrupção do principal partido de oposição. Talvez por isso, aliados do governador Geraldo Alckmin, a comemorar, se mostravam preocupados com os destinos do seu principal adversário tucano.

Nesta volta de Lula, a liderança tucana que se mostrou mais afinada com as ruas de domingo foi o decano. Em palestra, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que a habilidade política não basta. A liderança requer conhecimento. Numa afirmação que pode estar a indicar rumos preocupantes do PSDB, disse que um analfabeto não pode dirigir o país. Parecia concordar com os cartazes do domingo onde se lia que o lugar do analfabeto é na cadeia.

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