segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A Justiça, a faca e a corda

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Estamos num momento de quente movimentação institucional: o STF a pronunciar-se sobre questões polêmicas em faixas diversas, o Executivo a encaminhar a definição das regras do Pré-sal, o Congresso às voltas, meio atropeladamente, com reforma eleitoral. Enquanto esperamos o desfecho da importante decisão do STF sobre Cesare Battisti, que divide a Corte e a confronta com o ministro da Justiça, tomemos as facetas novas e reveladoras quanto às relações entre o Judiciário e a chamada opinião pública que a decisão do caso Francenildo Costa revela.

A ligação com a opinião pública surge como especialmente problemática quando se trata do Judiciário. Com respeito ao Legislativo, há um aparente consenso, certo ou errado, quanto à necessidade de "transparência" e à legitimidade da pressão popular sobre o trabalho dos parlamentares. Já no que se refere ao Judiciário, pudemos ver algum tempo atrás, por exemplo, a propósito da sessão do STF relacionada com o "mensalão", o ministro Ricardo Lewandowski a se queixar de ter de decidir "com a faca no pescoço" pela publicidade envolvendo a sessão, enquanto o ministro Marco Aurélio Mello festejava galhofeiramente a faca pela imprensa. Agora, no caso Francenildo, a decisão tomada sem dúvida se opôs, como vimos nas numerosas manifestações na imprensa, ao ânimo da "opinião pública" - à qual o ministro Marco Aurélio não perdeu a chance de juntar-se outra vez, com a observação em entrevista de que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco (talvez valha lembrar que alguém mais perguntava sobre o habeas corpus por ele concedido a Salvatore Cacciola).

Naturalmente, o desejável a respeito envolve a ideia de que a atuação da Justiça dê expressão aos valores da comunidade. No quadro constitucional da separação de poderes, entretanto, supõe-se que os valores encontrem tradução nas leis do país, às quais as decisões da Justiça estarão atentas. Daí resultam a suposição adicional de juízes doutos e tecnicamente competentes (versados na lei) e o fatal "tecnicismo" e mesmo ritualismo do processo de deliberação, que não podem senão relacionar-se mal com a "opinião pública" em seu espontaneísmo e fluidez, quando não inconsistência. Na avaliação da participação dos vários denunciados no caso Francenildo, vimos o relator, ministro Gilmar Mendes, explorar meandros e matizes diversos da legislação pertinente e extrair da figura legal do "crime próprio" o fundamento da posição que isenta Palocci, não obstante certas qualificações, de responsabilidade no crime pelo qual era denunciado.


É notável e revelador, quanto às relações Judiciário-opinião pública, que as matérias na imprensa sobre a sessão do STF tenham ignorado amplamente o argumento aí contido, ou tratado simplesmente a decisão como baseada em filigranas jurídicas espúrias, que corroborariam a tendência da corda a arrebentar de certo lado.

Uma sociologia realista do Judiciário não pode deixar de reconhecer o viés que muitas vezes marca sua atuação, e não apenas entre nós. O modelo de uma Justiça douta e imparcial se choca frequentemente com a realidade em que o caráter "douto", a competência em lidar com as leis, se transforma em instrumento para garantir a parcialidade da Justiça: o "bom advogado" das manobras e chicanas que favorecem quem pode tê-lo ao seu serviço. Noutro nível, temos a parcialidade revelada de forma singularmente dramática no exemplo, que tenho evocado às vezes, das eleições de 2000 nos Estados Unidos, associada com a força dos partidos e a penetração da esfera judiciária por eles.

Se no Brasil estamos livres propriamente da partidarização da Justiça, até pela debilidade dos partidos (afinal, tivemos ainda agora a extensa recomposição do próprio STF por nomeações de Lula, sem que seja possível apontar um efeito político-partidário de alguma nitidez), o condicionamento da atuação do Judiciário tende a ser sobretudo aquele exercido em surdina pelo fosso social do país. As consequências se fazem sentir em particular na face "hobbesiana" da atividade judicial (como a designam alguns estudiosos da Justiça na América Latina, especialmente Beatriz Magaloni), a qual se refere às garantias oferecidas ao cidadão comum, em contraste com a face "madisoniana", que diz respeito às relações entre os poderes e ao princípio dos "freios e contrapesos" e se revela na decisão pendente sobre o caso Battisti.

Pode-se pretender sustentar que uma Justiça partidarizada é preferível a outra socialmente enviesada de maneira surda. A institucionalização partidária, mesmo levada ao excesso da partidarização da própria Justiça, ao menos redunda em que o eleitorado e o público em geral recebam sinais claros, até do ponto de vista da ramificação social dos temas e problemas, quando se trata de compor os órgãos relevantes: no caso recente da indicação de Sonia Sotomayor para a Suprema Corte estadunidense, podia-se ver com bastante nitidez o que estava em jogo em sua confirmação final.

De todo modo, não há como abrir mão da Justiça douta e neutra como objetivo, e do empenho de criar as condições sociais e políticas que impeçam o caráter douto de se tornar equivalente a viés social. Nem há razão para apostar na "opinião pública" como remédio para o viés. Pois ela mesma não escapa dele: dificilmente se justificaria presumir, na terra do fosso social, que a faca da opinião pública no pescoço da Justiça altere o lado em que a corda tende a arrebentar.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras.

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