segunda-feira, 15 de junho de 2009

Uma olhada no Chile

Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Para muitos brasileiros de minha geração, o Chile se transformou numa referência pessoal e política de importância. Pessoalmente, assim como outros têm cônjuges chilenos, eu próprio tenho uma filha chilena de nascimento, fruto de um período de dois anos em que morei no país.

Politicamente, além de animadas discussões com colegas chilenos em que a instabilidade brasileira de começos da década de 1960 era qualificada por eles como "tropicalismos" a que o Chile seria infenso, lembro, naturalmente, o interesse com que a partir de certo ponto, já imerso o Brasil na ditadura de 1964, acompanhamos de cá (ou de lá, em muitos casos) a experiência chilena da busca de uma transição singular ao socialismo por via democrática - e o duro aprendizado de todos, em seguida, de que as raízes sociológicas das turbulências brasileiras iam bem além dos trópicos e atingiam, sim, o Chile, embora análises internacionais supostamente sofisticadas tendessem igualmente a idealizar a política chilena anterior a 1973 como uma espécie de vitrina democrática.

Seja como for, tivemos também de engolir, mais tarde, a evidência de que a longa ditadura de Pinochet, juntando-se a condições mundiais favoráveis, criou um Chile próspero, incluindo a "Santiago-Hollywood" de que falam os chilenos, diferente da cidade de aparência meio pobre que conhecíamos antes. Que essa prosperidade teve custos sociais importantes se percebe, por exemplo, em dados do Latinobarômetro relativos a 2002, em que o Chile, na comparação com outros países do continente, se singulariza de maneira sugestiva: em contraste com o que ocorre em outros países, onde surgem padrões como a insatisfação com a democracia entre pessoas educadas e exigentes e satisfação desinformada e ingênua nos níveis mais baixos de escolaridade, no Chile é bem claro o conteúdo de classe quanto à satisfação com a democracia: são os mais pobres e de menor escolaridade que se mostram mais insatisfeitos com ela. A conjectura plausível, mesmo se admitidamente algo tortuosa, parece ser a de que a explicação se encontra na experiência do regime de Pinochet e na provável percepção de distorções sociais ou classistas na prosperidade que o acompanhou. Isso resultou, de todo modo, em estabilidade bastante marcada do apoio eleitoral às forças político-partidárias que se enfrentaram nas duas últimas décadas, em particular a coalizão de centro-esquerda entre socialistas e democrata-cristãos (a Concertación), de um lado, e a direitista Alianza por Chile, de outro.

Agora, porém, estamos aparentemente num momento de mudança. A Concertación, que governa o país há dezenove anos e tem de novo como candidato presidencial o ex-presidente democrata-cristão Eduardo Frei Ruiz-Tagle, se vê desgastada. Ela enfrenta Sebastián Piñera, candidato da Alianza, que, apesar de derrotado em duas disputas anteriores (e de certos desencontros nos números fornecidos por pesquisas diversas), parece contar desta vez com apoio mais forte nos dois turnos e melhores chances de vitória. Há, além disso, a contestação dirigida à Concertación pela esquerda, que se manifesta em rachas de feições distintas: de um lado, Jorge Arrate, de longa militância no Partido Socialista, mas de reduzida penetração eleitoral, que abandonou o partido e a coalizão governista e foi escolhido em abril como o candidato da coligação Juntos Podemos Más, que reúne partidos e movimentos de esquerda; de outro lado, e certamente com maior impacto eleitoral, a candidatura independente de Marco Enríquez-Ominami, originalmente também do Partido Socialista, jovem e de perfil apropriado à exposição nos meios de massa, que subiu meteoricamente nas pesquisas nas últimas semanas e surge agora em empate técnico com Eduardo Frei, quando não em vantagem sobre ele.

Nada há de especialmente intrigante, por certo, em que o processo eleitoral leve alternadamente grupos políticos mais à esquerda ou à direita ao poder. O fato de que haja agora rupturas da Concertación à esquerda é talvez de maior consequência, e pode provavelmente ligar-se à crise mundial e às mudanças que acarreta no cenário ideológico. Dá-se, porém, que tanto Enríquez-Ominami como Arrate têm suas credenciais de esquerda postas em questão - no caso do primeiro, não obstante ser filho de Miguel Enríquez, líder do Movimiento de Izquierda Revolucionaria, o MIR, o questionamento é feito pelo próprio Arrate, de currículo certamente mais denso, mas cujas propostas, por sua vez, não escapam de soar algo estranhas vindo de quem foi por duas vezes ministro, além de embaixador, de governos da Concertación. Como se indica em resumos até agora divulgados, trata-se, com Arrate, de abandonar o "neoliberalismo" e "gerar mudanças estruturais num sistema que por tantos anos restringiu os chilenos", com assembleia constituinte, criação de educação e saúde pública de qualidade, renacionalização do cobre, redução dos juros...

Num plano distante das perplexidades contemporâneas quanto a esquerda, liberalismos e direita, um fato especial é interessante do ponto de vista da conjuntura política brasileira: as pesquisas mostram a presidente Michelle Bachelet com o apoio de nada menos de 69% dos eleitores, nível nunca antes alcançado por ela mesma ou por qualquer outro governante do pós-ditadura. E o curioso e revelador é que a ascensão, a partir do nível de 42%, se deu com a chegada da crise econômica em setembro do ano passado, sendo claramente a consequência da percepção favorável da atuação do governo na crise (o ministro da Fazenda, Andrés Velasco, também obtém avaliação favorável singularmente alta). O que não impede (mesmo se a avaliação do governo é bastante negativa em certos aspectos, como o relativo a corrupção) que já se tenha ouvido falar em reeleição.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras

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