segunda-feira, 1 de junho de 2009

No arranco cego da turba

José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO / ALIÁS

O amálgama da multidão violenta mescla inconformismo, gente à procura de si mesma, covardia difusa

SÃO PAULO - Ocorrências violentas envolvendo multidões têm se amiudado no Brasil, não raro com mortos e feridos. Nos últimos dias, a tragédia de quatro mortos e oito feridos num show de música country em Jaguariúna; uma invasão de 80 torcedores descontentes na sede do Flamengo, no Rio, com agressão a um jogador; mais de 150 torcedores do Palmeiras, num confronto com a PM, levados para uma delegacia da zona leste, 20 feridos. Em duas décadas, ocorreram muitos episódios de depredação de estações ferroviárias, queima de ônibus, invasão e depredação de recintos públicos, como a própria Câmara dos Deputados e universidades e, sobretudo, linchamentos.

Na maioria dos casos o ímpeto da massa vem do descontentamento e do protesto.
Residualmente, em alguns casos, como em Jaguariúna, vem do medo e do pânico.
Eventualmente, a provocação irresponsável de uma bomba junina no meio da multidão, um grito, uma correria que arrasta outras pessoas que, no geral, nem sabem por que estão correndo. No meio, vítimas deliberadas, como nos linchamentos, ou vítimas casuais, como no caso do show de Jaguariúna. Ou casos mais graves, em que a turba não é massa informe que só adquire perfil e identidade depois da ocorrência que a mobiliza, mas é multidão já polarizada, como o conflito da Praça da Matriz, em Porto Alegre, em 1990, entre a Brigada Militar e o MST, em que, além dos feridos dos dois lados, um cabo da Brigada Militar foi morto com uma foiçada. Ou mesmo no caso do massacre de Eldorado de Carajás, em 1996, quando 19 acampados foram mortos num confronto típico de multidão, os dois lados, no entanto, dotados de identidades em conflito. Ou os casos mais frequentes de confrontos violentos entre torcidas de futebol. Fatos próprios de uma sociedade intolerante, organizada em cima de identidades antissociais, como se nela não houvesse espaço e oxigênio para todos e para a democracia da diferença.

O comportamento de multidão não se restringe àquelas manifestações de massa anônima que se dissolve após a ocorrência, sem nenhuma referência identitária.

O que chama a atenção nos últimos tempos é justamente a típica manifestação de turba em ações de natureza política. Esse é um campo em que o protesto só tem sentido como protesto racional, movido por um projeto social e político. O comportamento de multidão é um atuar às cegas, que despolitiza qualquer ato político.

A contaminação crescente da atuação política, sobretudo dos movimentos sociais, pelo comportamento de multidão esvazia a demanda que os move de sua dimensão propriamente política. Os sociólogos que fizeram os primeiros estudos sobre o tema definiam tais ações como comportamento coletivo. Mas nem toda multidão atua por comportamento de multidão. Por isso, decantaram o comportamento coletivo para nele identificar os movimentos sociais, que são aquelas condutas que têm sentido, que discrepam das irracionalidades próprias da multidão. Na multidão, LeBon, seu primeiro estudioso, reconhecia uma individualidade coletiva enlouquecida. Comportamento de multidão nos movimentos sociais é justamente a mais significativa indicação de impasse e retrocesso, de falta de projeto com clareza política quanto à própria busca.

O comportamento coletivo que caracteriza essas ocorrências, apesar de sua diversidade, segue um padrão sociologicamente reconhecível. São ocorrências geralmente súbitas, em que os valores de referência da conduta social perdem momentaneamente sua eficácia em face de um fato extraordinário que desperta ações autodefensivas e de sobrevivência. Apesar de ocorrer, muitas vezes, em imensos ajuntamentos, a ação individual do membro da multidão é individualista e no geral covarde, como se viu em Jaguariúna, a multidão pisoteando e matando jovens indefesos. Na extensa pesquisa que fiz sobre meio século de linchamentos no Brasil, a forma mais radical e perigosa de ação de multidão, a proporção de linchamentos fatais é muito maior nos linchamentos noturnos do que nos diurnos. A escuridão, ao proteger a identidade individual, aumenta a agressividade do participante e torna a multidão muito mais real e perigosa.

Na multidão há difusa busca de identidade, sobretudo entre os jovens, que na transição de gerações perdem uma identidade sem adquirir outra. O ajuntamento de quase 30 mil pessoas jovens em Jaguariúna para ouvir uma dupla de música country é bem significativo dessa modalidade de busca. A imensa maioria com idade ao redor dos 20 anos, aparentemente com predominância de moças, as que pagam o preço mais alto pela mudança social sem rumo. As músicas da dupla que se apresentava naquela madrugada são marcadas por versos característicos de rupturas e instabilidades, como "não era pra você se apaixonar, era só pra gente ficar", "paixão de uma noite que logo tem fim", "não venha me perguntar qual é a melhor saída". Aí se proclama um modo de ser e de viver pautado por uma cultura do precário e do provisório. Uma cultura que marca a existência de amplos setores da geração atual, predispondo-os à aceitação do risco e da incerteza.

JOVENS

A presença cada vez maior dos jovens nas grandes aglomerações sugere ainda uma busca, uma tentativa de encontro de si mesmos nos outros, uma improvisação do fazer parte e do pertencer, sabendo que os vínculos são os do instante, que se dissolverão no fim da festa. Nada de muito compromisso, porque o compromisso demanda estabilidades que os jovens já não conhecem na incerteza de uma economia de relações provisórias, o trabalho literalmente reduzido a trabalho puro regulado pelos estritos custos da produção e do lucro, sem compromissos morais com quem trabalha.

Não é estranho, portanto, que com mais facilidade do que as gerações anteriores, os jovens se adaptem ou estejam predispostos ao comportamento de multidão, cuja característica é a improvisação, a invenção de relações sociais de sobrevivência, na fuga, no justiçamento, na depredação, eventos que duram não mais do que dois ou três minutos, como ocorreu em Jaguariúna.

*Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor de Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano (Contexto, 2009)

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