sábado, 23 de maio de 2009

Um gigantesco quebra-cabeças, com Cervantes, Defoe, Sterne e Laclos, para compreender o processo ficcional

Luiz Costa Lima
Flávio Braga*
DEU NO JORNAL DO BRASIL / IDEIAS & LIVROS

O romance – gênero que conheceu o ápice no final do século 19, mas resiste à morte anunciada há, pelo menos, um século – completou 406 anos de existência, se consideramos a impressão de Dom Quixote como sua gênese. O controle do imaginário & a afirmação do romance, de Luiz Costa Lima, analisa as dificuldades para o gênero se firmar. Historiador da literatura, o autor acrescenta, com este ensaio, mais uma peça na montagem do gigantesco quebra-cabeças que é a compreensão do processo ficcional.

O livro se divide em dois blocos e é a reunião de ensaios escritos no correr de muitos anos sobre temas correlatos. O primeiro bloco, "Ambiência teórico-contextual do romance", dividido em cinco partes, retorna à épica renascentista e à contrarreforma, quando a luta pelo poder se acirrava entre religiosos de diversos matizes. Devemos lembrar que, na Idade Média, a Igreja chegou a proibir a leitura da Bíblia, por entrar em choque com seus interesses políticos. Costa Lima descreve, nessa linha de ação, o expurgo que o Decameron, de Boccaccio, sofreu, de todas as referências picantes a frades e papas.

Os paradigmáticos

A segunda parte do livro, "Alguns romances paradigmáticos", analisa quatro obras máximas da literatura. A primeira delas é aquela que acima anotamos como inaugural do gênero: o Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Interessante observar que muitos críticos resistem a considerar as aventuras do Cavaleiro da Triste Figura como um romance. Julgam-no uma paródia ou uma fábula, sem ser uma novela, porque o próprio Cervantes publicou volume desse gênero com outro resultado. Mas Costa Lima afirma: "O Quijote é o primeiro romance moderno, sendo os produtos franceses e ingleses posteriores menos seus descendentes literais do que o produto da interação da narrativa cervantina com as problemáticas sócio-históricas específicas daqueles países".

A análise segue apresentando aspectos da obra, que surge como uma crítica burlesca aos romances de cavalaria, formato literário em decadência quando do lançamento do Dom Quixote. Então, por que Cervantes escolheu um herói (ou anti-herói) dessa natureza? Citando Bakhtin, Costa Lima argumenta que a picaresca espanhola e dois personagens, o cavalheiro Quixote, um monomaníaco, e Sancho Pança, um pobre lavrador oportunista, deram ao autor os elementos certos para circular pela vida espanhola de então, "com suas estalagens, muleteiros, quadrilheiros e até com sua elite faustosa de duques, que se deliciavam em ludibriar o Quixote".

As opções ficcionais de Cervantes, por sua postura de paródia, também se tornam uma defesa contra o controle e a censura, a tal ponto que a própria crítica literária é enfocada no discurso de um cônego. Este tenta ajudar o Quixote a escapar de sua monomania. É densa a dissertação de Costa Lima sobre o incrível e "milagroso" (na expressão de José Saramago) Dom Quixote.

As revelações contidas em outro dos romances nos fazem pensar na variedade do impulso ficcional e em suas relações com a realidade. O escolhido é Moll Flanders, de Daniel Dafoe, inglês do século 17 que compunha romances sem o admitir.

Se o espanhol de Saavedra intencionalmente deformava seus tipos, Defoe os definia como autênticos, e não personagens inventados. Costa Lima nos informa que as primeiras edições de Robinson Crusoé, sobre o mais famoso náufrago de todas as literaturas, eram publicadas como relato verdadeiro. A razão seria a recepção melhor do que fosse considerado experiência real e também pela inclinação calvinista do autor.
Exercício lúdico

Costa Lima traça uma acurada trajetória literária de Defoe, antes de chegar ao Moll Flanders. Acentua que é um romance que, finalmente, rompe, dentro da obra do autor, com o vínculo religioso e se entrega a um exercício lúdico, como o fizeram Villon, Rabeslais e, num mergulho inverso no tempo, Petrônio, com o Satyricon.

As relações perigosas, terceiro livro escolhido para análise por Costa Lima, é mais conhecido por suas adaptações cinematográficas, e é a única obra de Chordelos de Laclos, espécie de novo aristocrata do período. O romance é epistolar, narrado por cartas que descrevem os costumes libertinos da elite do período. Costa Lima identifica influências de Rousseau na forma como Laclos descreve o comportamento das mulheres, entendendo a submissão feminina como a dos escravos ao senhor. Durante a restauração, o romance é proibido, "demonstrando que o mecanismo de controle não havia mudado de face".

Laurence Sterne, autor de Tristram Shandy, último romance analisado, é, frequentemente, apontado como grande influência ao nosso maior romancista, Machado de Assis. Sua dimensão é aclamada por Costa Lima citando Gorham Davis, que se referiu assim acerca de Sterne: "No romance inglês dos próximos 150 anos, suas descobertas desapareceram da consciência de seus sucessores". Costa Lima ressalta o "narrador intrometido" do romance, e aqui lembramos Machado de Assis imediatamente, para acentuar que ao "se intrometer nos assuntos de seus personagens, o narrador o faz de tal maneira que incrementa a presença da paródia, seja dos pressupostos da ação, seja da própria narrativa". No correr da crítica, Costa Lima analisa o frequente paralelo que se estabelece entre as ideias do pensador Locke e a prosa de Sterne: Tristram Shandy visto como um ilustrador cômico das ideias do filósofo inglês, idealizador do liberalismo e do empirismo.

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