sábado, 30 de maio de 2009

Natureza humana e privilégios

Leandro Konder
DEU NO JORNAL DO BRASIL / Idéias & Livros

Comecemos pela natureza humana. Afinal, ela existe ou não existe? Em que medida ela pode ser modificada?

Se fosse feita uma pesquisa capaz de observar, empiricamente, milhões de pessoas, os pesquisadores achariam alguma coisa em comum, presente em todos os indivíduos, os que ainda existem e os que já existiram?

Assim como os homens têm dois olhos, dois braços, duas pernas, nem por isso podemos dizer que, se uma infeliz intervenção cirúrgica amputar uma de suas mãos, o indivíduo poderá até ter se transformado no Capitão Gancho, inimigo mortal de Peter Pan, mas não terá perdido aquilo que se convencionou chamar de "natureza humana".

Por outro lado, é evidente que, se um ser tiver somente uma perna, nem por isso terá deixado de pertencer à natureza humana.

No plano psicológico, o problema se complica ainda mais. Quando a alma interfere no corpo, esse poder de interferência é que a torna completamente real.

Ao serem descobertos pelos navegadores europeus, estes se perguntavam qual poderia ter sido a origem dos povos nativos; e acreditavam que eles vinham da Índia (por isso eram chamados índios). Os europeus sabiam que deviam dispor de uma escala de valores para se orientar. Mas o impacto da conquista causou estragos consideráveis tanto no espírito dos índios como no espírito dos colonizadores.

Os valores não são, em geral, criados pelos indivíduos: são inventados pela comunidade. Mas a conquista e a colonização foram feitas por gente que destruía as comunidades indígenas. Ao longo de várias gerações, os espanhóis e os portugueses exploraram e oprimiram os índios e os negros. Assumiam, com desenvoltura, o racismo que lhes convinha.

Pouco a pouco, foram se sofisticando, fizeram um aprendizado de hipocrisia. Aprenderam com seus correligionários ingleses e franceses a fazer concessões à retórica liberal. Condenaram (da boca para fora) procedimentos sórdidos, aos quais recorriam na prática.

Nossos antepassados insistiram há mais de um século na afirmação de que a sociedade brasileira não precisava fazer mudanças, porque já as havia feito. Não carecia de reformas, porque já era uma república, que estava sendo reformada pelo progresso.

República, como o nome indica, era a res publica, a coisa pública. Nossos teóricos inventaram coisa melhor: quando a "coisa pública" dava lucros imponentes, era tratada como "coisa privada" e seus proventos eram desviados para o bolso dos muito ricos, sob a alegação de que, já tendo roubado muito, eles roubariam menos do que os outros.

O maior orgulho dos donos do país é a sinceridade com que eles argumentam: "Somos muito francos. Sabemos que o mito de um regime democrático-igualitário tem feito muito mal à humanidade". E acrescentam: "Os homens são por natureza desiguais. Então a distribuição da riqueza só pode, sensatamente, respeitar e consagrar a desigualdade".

O filósofo Antonio Gramsci, italiano, dizia que, para entender o pensamento político de uma criatura, o que se pode fazer de mais razoável é perguntar a ela se acredita que em algum tempo, no futuro, vamos edificar uma sociedade na qual não existirão nem mandantes, nem mandados. Se, porém, a criatura for pessimista e declarar que "vai ser sempre assim", e insistir em aceitar resignadamente o privilégio dos que exercem o poder, então ela estará contribuindo para que o privilégio se perpetue.

Hoje, o privilégio não só perdura como pisa com firmeza sobre um terreno sólido e amplo, que nós, democratas, socialistas, infelizmente conhecemos mal. Lembro que Marx, no século 19, escreveu: "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo; trata-se, porém, de transformá-lo". Nas atuais condições, podemos – provocadoramente – dizer que os revolucionários não conseguiram, em geral, revolucionar a sociedade, como pretendiam.

Trata-se de conhecê-la, de interpretá-la de maneira mais efetiva, para transformá-la.

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