sábado, 18 de abril de 2009

O mamilo livre

Leandro Konder
DEU NO JORNAL DO BRASIL / IDEIAS & LIVROS

Chico Buarque está publicando seu quarto romance. Em 1991, ele lançou Estorvo; em 1995, publicou Benjamim; em 2003, Budapeste; e agora as livrarias estão vendendo Leite derramado.

O que mudou de lá pra cá? Chico sabe que seus romances mostram a força de um profissional bem sucedido. Alguns leitores e críticos ainda torcem o nariz, mas vão ter de engolir mais essa vitória do compositor/escritor.

As qualidades excepcionais da obra exigem do leitor uma leitura atenta, que não é aquela do tipo que deve fazer rir ou chorar. Não é um produto para consumo fácil.

O narrador é um velho reacionário que está completando 100 anos e está internado num hospital, com o fêmur quebrado. Sua grande arma na vida é o fato de pertencer a uma família tradicional, os d’Assumpção.

Eulálio – este é o nome do personagem – foi casado com Matilde, mulher jovem, que, segundo ele, tinha um caso com o engenheiro francês Dubosc. A família era muito rica: os sucessivos proprietários, desde o tataravô, se chamavam Eulálio. Seu avô (Eulálio, é claro) pregava a volta à África de todos os negros brasileiros, que constituiriam a população de um novo país: Nova Libéria.

Quando resolve castigar sua jovem esposa, Eulálio recorda que seguiu os passos do grandalhão Dubosc até um hotel; aos gritos, arrombou a porta, viu quando a mulher nua tapava a cara de vergonha (chegou a lhe dizer que era inútil, pois até pelos pés poderia identificá-la). Quando a infiel desistiu de proteger sua identidade, Eulálio reconheceu nela não a traidora Matilde, mas a esposa do médico da família.

Com as recordações confusas do velho Eulálio, Chico Buarque poderia escrever uma narrativa sarcástica, grotesca, uma espécie de anti-saga da família Assumpção. Sem atenuar sua visão crítica, entretanto, o romancista recorre a uma linguagem aparentemente tumultuada, mas, de fato, exigente, rigorosa, desprovida de carências ou de excessos.

Seria fácil aproveitar, com olhar exclusivo, a comicidade dos elementos que constam do relato. Mais digno de admiração, contudo, é o caminho trilhado pelo romancista. Na sua paciente retomada do fio condutor do discurso de Eulálio, há resíduos de grandeza. Na paixão maluca de Eulálio por sua mulher Matilde, tais resíduos também aparecem.

E ainda na sua tresloucada insistência em tentar ser fiel aos valores (ou antivalores?) tradicionais da família d’Assumpção. E na carinhosa recordação da mãe, que falava francês com os empregados. E nas concessões que fazia à filha Maria Eulália e ao genro, o mulato Palumba.

Eulálio é, sem dúvida, uma aberração. Mas não se pode negar que ele mostra coragem intelectual. Como quando argumenta com o policial negro e trata de convencê-lo a voltar para a África, porque aqui o governo só vai aproveitar os pretos em serviços de limpeza. Ou quando conta que Matilde, que tinha um leite exuberante, quando amamentava e trocava a criança de peito, às vezes o deixava bicar no mamilo livre.

Um acerto essencial do romancista foi o de colocar o personagem que dizia muita besteira (qualquer um dos Eulálios) diante da morte. Por mais tolo que se mostre, um agonizante pode ganhar uma estatura surpreendente. Pessoas ridículas, então, podem revelar uma súbita dignidade.

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