domingo, 19 de junho de 2011

Opinião – Fernando Henrique Cardoso

O que é a opinião pública aqui? Antigamente era quem lia a imprensa. Basicamente era isso. Agora é quem vê a televisão e a internet. E isso faz pressão. Não morreu, não, é o contrário.

E crescentemente vai ser assim, você vai ter uma influência cada vez maior da sociedade conectada, que se manifesta cada vez mais. É curioso porque essa conexão pode produzir "derrubamentos", derruba alguém, mas não constrói, porque não tem como fazer a coisa funcionar. É para rupturas. Veja o que aconteceu agora no mundo árabe. Dá o contágio, pega, e se movimenta. Agora, isso não dispensa a ação institucional. O problema hoje é que você tem uma sociedade que está se conectando crescentemente, e o lado institucional não sabe se relacionar com isso. Dá a impressão de que algumas instituições envelheceram, não percebem que têm que mudar e não sabem para que lado vão.

Qualquer pesquisa de opinião põe o Congresso em último lugar. É sintoma de que a instituição não está sendo aceita pela sociedade tal como é. E a sociedade não toma conhecimento do Congresso. Sofre as consequências de algumas decisões, mas não se preocupa; no dia a dia, se preocupa com outras coisas. Pode ver: quais são os temas debatidos na internet e quais os debatidos no Congresso? São dois mundos. Acho que esse é o sintoma de um problema grave na sociedade atual. Como o Congresso é indispensável e os partidos também, é um problema. Porque não vai ter jeito sem partido e sem Congresso.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente. Entrevista em O Globo, 18/6/2011

Manchetes de alguns dos principais jornais do Brasil

O GLOBO

Brasil faz 18 leis por dia, e a maioria vai para o lixo
Acidente mata 4 e comove família Cabral
250 mil brasileiros testam novos remédios
Jóbson marca e Bahia vence Flu
Metrô e trns com prazo de validade

FOLHA DE S. PAULO

Renda cresce mais no NE e desigualdade cai
Carro roubado vira pechincha em feirão na Bolívia
Justiça despeja ‘brasiguaios’ de áreas rurais
FHC, 80, se reinventa como provocador cordial

O ESTADO DE S. PAULO

BC vê inflação menor com crescimento
10,5 milhões vivem com até R$ 39 por mês
Lula cobra apoio do PT a Dilma
Orçamento de estádio da Copa não inclui grama
A luta de D. Paulo contra a tortura

ESTADO DE MINAS

Mais brasileiros mudam de vida e de classe social

CORREIO BRAZILIENSE

Governo conta os dias para o recesso
Segredos de Estado no cofre
Acredite, subimos de classe social

JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Mais rigor nos hospitais

Aos 80, FHC se reinventa

O provocador cordial

RESUMO

Fernando Henrique Cardoso encontra no ativismo pela descriminalização da maconha uma forma de restituir a articulação entre atuação intelectual e carreira política. Ao buscar um arremate progressista para vida e obra, o ex-presidente delineia seu perfil entre "temperamento conciliador" e "pensamento conflitivo".

Fernando de Barros e Silva

FERNANDO HENRIQUE Cardoso entra na sala de seu apartamento, no bairro paulistano de Higienópolis, cinco minutos depois do horário combinado. Gentil e suave, pede desculpas e explica que estava se despedindo do filho, que havia dormido lá.

Desde que Ruth Cardoso morreu, em 24 de junho de 2008, há três anos, FHC mora sozinho. Não mudou nada no lugar. Os filhos do casal (Luciana e Beatriz, além de Paulo Henrique) o visitam com frequência, vez ou outra dormem lá.

Fazia sol e frio na última terça pela manhã, quando ex-presidente recebeu a Folha para duas horas de conversa. Vestia suéter marrom-claro e calça de lã cinza. Carregava dois celulares, que deixou a seu lado, numa mesinha. Quando ambos tocaram, ao longo da entrevista, ele desligou sem atender.

Logo de saída, disse que nunca deu bola para o próprio aniversário, mas que achou muito simpático o jantar na sexta-feira anterior, na Sala São Paulo, quando 400 convidados -entre políticos, empresários, banqueiros, ex-ministros, intelectuais, jornalistas e amigos- comemoraram os seus 80 anos. Comemoração antecipada -FHC é de 18 de junho de 1931, desde ontem um jovem octogenário.

O ex-presidente comentou que só não aproveitou inteiramente a homenagem porque está com diverticulite -uma inflamação no intestino. Não pode beber álcool e tem restrições alimentares. Foi medicado, tudo sob controle, diz, lembrando que foi essa a doença que desencadeou a morte de Tancredo Neves, em 1985. (Tancredo, na verdade, tinha um tumor benigno e morreu de septicemia -infecção generalizada- depois de ser operado, conforme a Folha revelou na época.)

FENÔMENO Na Sala São Paulo -uma espécie de Versalhes do tucanato, como alguém definiu -, no meio de tanta gente da elite paulista e seus agregados, quem causou frisson foi Ronaldo Fenômeno. Acompanhado pela mulher, Bia Anthony, passou não mais do que meia hora no salão -o suficiente para ser assediado por vários convidados. Vicky Safra, a mulher do banqueiro Joseph Safra, foi lá pedir um autógrafo ao ex-jogador. E a mulher do crítico literário Roberto Schwarz, Grecia, saiu correndo até a porta para tirar uma foto ao lado do ídolo quando ele já estava indo embora.

Ali, Ronaldo destoava e brilhava à sua revelia. "Ele é um cara muito agradável, muito afetivo. Mas não é populista. Não gosta desse oba-oba", diz FHC sobre o Fenômeno. E completou: "A mulher dele ajuda muito também -é interessante, simpática, inteligente."

O tucano ficou amigo do craque aposentado há pouco tempo, quando este ainda atuava pelo Corinthians. Visitam-se e até jogaram pôquer juntos, mas FHC diz que a mesa do Fenômeno não é para o seu bico. "Eu disse a ele: 'Está maluco?! Eu aposto R$ 10, vocês são milionários!'"

O ex-presidente diz "jogar um poquerzinho com os amigos de vez em quando". O historiador Boris Fausto e o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, seus amigos de juventude, sempre participam da mesa, entre outros convidados. Brincalhão e gozador, FHC costuma desafiar os demais dizendo saber o jogo que cada um tem nas mãos. Não deixa de ser uma espécie de blefe ao contrário.

Intelectualmente, FHC também foi sempre um provocador. Intuiu cedo que o jogo da esquerda, da qual fazia parte (e da qual ainda se julga parte), era uma espécie de blefe. O tempo mostra que ele mais acertou do que errou conforme foi publicando as obras que o projetaram a partir dos anos 60.

CONFLITIVO Quase no fim da entrevista, FHC se definiu como uma pessoa "de temperamento conciliador e pensamento conflitivo". A imagem é precisa para sintetizar sua atuação como político e sua força como sociólogo.

Entre um e outro, a relação é mais complementar do que se imagina. De certa forma, o político FHC "realizou" o que o intelectual escreveu -muito mais, por exemplo, do que Lula cumpriu o que falava até chegar à Presidência.

É irônico, também por isso, que FHC carregue como um estigma o "esqueçam o que escrevi". Teria dito isso num almoço com empresários, em 1993, quando era ministro da Fazenda, de acordo com o relato de terceiros. Grudou nele como símbolo do político que traiu o intelectual, apesar de FHC repetir que a frase não existiu ("nunca ninguém afirmou que tenha ouvido essa frase; é maldade pura").

Pelo contrário, FHC não esconde o orgulho que tem da sua obra de juventude. Em termos teóricos, ele na verdade mudou muito pouco, justamente porque sempre foi muito pouco dogmático.

OPOSIÇÃO Sua mais recente intervenção como ideólogo do PSDB saiu pela culatra. Num texto chamado "O Papel da Oposição", publicado em abril na revista "Interesse Nacional", FHC escreveu que "enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os movimentos sociais ou o povão, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos".

O uso infeliz da expressão "povão" fez o mundo desabar sobre sua cabeça e interditou o debate. Para além do ato falho, no entanto, o texto identifica uma brecha de atuação para o PSDB na emergência de uma grande classe média que não se identifica com o PT de forma automática e tem demandas de consumo e cultura novas.

O jornalista pergunta: para cumprir esse papel o PSDB não teria que caminhar para a direita? Mais ainda, o PSDB não estaria condenado a ser o contraponto conservador do PT, uma espécie de Partido Republicano brasileiro?

FHC dá um jeito de dizer educadamente que as questões são equivocadas. E explica, começando por Marx: "O pressuposto de que, por definição, os mais pobres são os mais progressistas não é marxista. Marx dizia que eram os trabalhadores e os intelectuais que fariam a revolução, não os miseráveis. Ninguém está mais pensando em revolução hoje".

E prossegue: "O pressuposto de que olhar para as classes emergentes te empurra para a direita não tem sustentação. A direita pode estar em outro lugar. Inclusive entre os mais pobres. Eu não escrevi aquele texto pensando em ideologia. Escrevi pensando na desconexão atual entre a sociedade e as instituições políticas. Como essa é uma sociedade com muita mobilidade, tem gente, ou muita gente, sem conexão."

E conclui: "O Estado pode prender os mais pobres, pelo clientelismo. Como nós, do PSDB, não temos o Estado nas mãos, é mais difícil mexer nessas camadas. Mas tem muita gente que não está amarrada". Os tucanos, então, não devem ser os republicanos ao sul do Equador?

FHC rebate: "Não concordo com aqueles que fazem analogia entre o PT e o Partido Democrata e o PSDB e os republicanos. Somos muito diferentes dos americanos. Os republicanos são conservadores e se assumem como tal. Há uma massa da população que quer ser conservadora. No Brasil, não tem isso. Quem for por aí está perdido. Não tem nem o pensamento, nem pessoas com essa predisposição. Você vai ter, isso sim, alianças entre setores que são dinâmicos e modernizadores. O agronegócio no Centro-Oeste e as camadas médias, por exemplo. Mas por que chamar isso de conservador, se é dinâmico e modernizador?"

"Não estou dizendo que não existam conflitos de classe aí. Mas é diferente do Partido Republicano. Ele é reacionário, é ideológico. No limite, é a favor da pena de morte. Aqui não tem essa coerência. Talvez essa sociedade que está se abrindo não possa mais ser descrita pelas categorias com as quais nós a pensamos no passado. O PFL [atual Democratas] poderia ser um partido liberal. Mas não é. Veja o prefeito de São Paulo, criou outro partido. É liberal? Não é nada. Os liberais brasileiros sempre foram estatizantes. São do Estado, clientelistas."

SOCIÓLOGO Essas respostas explicitam um modo de pensar que remete ao sociólogo dos anos 60.

Primeiro, observar a realidade -o que parece óbvio, mas não é. Segundo, não usar categorias -sejam conceitos ou situações históricas- sem submetê-las ao crivo da realidade que se quer explicar.

O primeiro grande livro de FHC é "Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional", sua tese de doutorado, de 1962. Tratava-se de entender, a partir do estudo da economia do charque, no Rio Grande do Sul, a complicada e aberrante convivência entre estes dois termos -capitalismo e escravidão. Quais são os nexos entre eles?

"A escravidão não poderia ser explicada sem referência à expansão do grande capitalismo", disse FHC à Folha, numa entrevista de 1996. "Mas a história do Brasil não é uma cópia do que está acontecendo na Europa. Há uma singularidade. Ao mesmo tempo, ela não tem leis próprias: é derivada, subordinada, dependente. Do ponto de vista teórico, era o mesmo mecanismo que usei depois para discutir a dependência."

DEPENDÊNCIA No mesmo ano, FHC começou a estudar o empresariado brasileiro. Em 1962, o mundo vivia o auge da Guerra Fria, polarizado em dois blocos, e os intelectuais da América Latina estavam sob forte impacto do êxito da Revolução Cubana.

O socialismo mais do que nunca fazia parte do horizonte histórico. A posição dominante na esquerda, encampada pelo Partido Comunista, rezava que, para atingir o reino sonhado, as nações periféricas precisavam antes fazer a sua revolução democrático-burguesa, a fim de derrotar as forças do atraso.

Entendia-se por isso a associação entre imperialismo e elites latifundiárias, que bloqueava a chegada do progresso -ou, como se dizia, o "desenvolvimento das forças produtivas". A burguesia nacional era, portanto, aliada estratégica dos trabalhadores.

Quando publicou "Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil" (1964), Fernando Henrique mostrou que, no mundo real, as coisas vinham funcionando de maneira bem diferente. A burguesia nacional já estava ligada ao imperialismo, "satisfeita com a condição de sócia menor do capitalismo ocidental". Os pressupostos teóricos da esquerda eram fantasiosos.

CATASTROFISMO FHC passava a ser o grande adversário das teses catastrofistas em voga na época, segundo as quais países como o Brasil estavam condenados à estagnação e só teriam chances de se desenvolver fora dos marcos do capitalismo. Sociólogos como o americano André Gunder Frank e os brasileiros Theotonio dos Santos e Rui Mauro Marini, conhecidos como "dependentistas de esquerda" -hoje caídos no esquecimento-, partilhavam dessas ideias com razoável sucesso.

Em contraponto a eles, o livro que consagrou a teoria da dependência na versão fernandina seria um desdobramento das análises do "Empresário Industrial".

Lançado em 1967, no Chile, em parceria com o argentino Enzo Faletto, "Dependência e Desenvolvimento na América Latina" reconhecia que a economia brasileira se industrializava e que não havia estagnação, apesar da inserção dependente do país na ordem global. Dizia ainda que essa dependência só poderia ser bem compreendida com a especificação histórica dos conflitos políticos internos de cada país e da sua relação com a política e a economia internacionais.

PRESIDENTE Faz sentido que a chegada à Presidência, em 1994, tenha sido vista como uma janela de oportunidade para o país adequar seu desenvolvimento -na verdade, retomá-lo depois da falência do nacional-desenvolvimentismo- à nova ordem mundial.

Na ocasião, o cientista político José Luís Fiori chegou a publicar, durante a campanha eleitoral, um ensaio no caderno Mais! que ficou célebre. Chamava-se "Os Moedeiros Falsos", em referência ao romance de André Gide, do qual tirou a epígrafe: "Afinal, é preciso admitir, meu caro, que há pessoas que sentem necessidade de agir contra seus próprios interesses".

Fiori dizia que FHC "resolveu acompanhar a posição de seu velho objeto de estudo, o empresariado brasileiro, e assumiu como fato irrecusável as atuais relações de poder e dependência internacionais. Deixou seu idealismo reformista e ficou com seu realismo analítico para propor-se como 'condottiere' da sua burguesia industrial, capaz de reconduzi-la a seu destino manifesto de sócia-menor e dependente do mesmo capitalismo associado, renovado pela terceira revolução tecnológica e pela globalização financeira". Esqueçam o que escrevi? Nunca! Exatamente o contrário.

Para FHC, em geral, os intelectuais têm dificuldades de compreender a política pois sofrem de deficit de realidade. Alguém de boa-fé negaria que o país que o tucano entregou a Lula era bem melhor do que o recebido por ele? "A maior injustiça que fazem comigo é me chamar de neoliberal. O que fiz foi reestruturar o Estado", diz.

O ex-presidente vê seu governo como parte de um processo de avanços que começa na década de 1980. No resumo de FHC, os passos fundamentais da história recente do Brasil foram os seguintes: primeiro, o movimento que vai das Diretas-Já à Constituinte. A Constituição desenhou o arcabouço social do Brasil contemporâneo.

O segundo passo foi dado com Fernando Collor: "Abriu a economia, atabalhoadamente, mas abriu". O terceiro passo foi a estabilização da moeda. O quarto, a reforma patrimonial do Estado. O quinto são as políticas sociais. "Isso é a história do Brasil recente. Esses são os pontos importantes. E há continuidade nisso, da Constituição para cá", sustenta.

CEBRAP Entre a teoria da dependência e o Real, muita coisa aconteceu. Em 1969, cassado na USP, FHC fundou com outros professores o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), que iria se tornar, nos anos 70 e 80, o principal centro de estudos de corte progressista do país, além de celeiro de quadros intelectuais absorvidos por governos democráticos, a começar pelo de Franco Montoro em São Paulo, em 1982.

Participou da formulação da anticandidatura presidencial de Ulysses Guimarães, em 1973, e projetou-se como liderança da sociedade civil nascente que pressionava pelo fim do regime militar.

Em 1975, publicou "Autoritarismo e Democratização", aproximando-se como intelectual do assunto que pautaria a década. Suplente de senador em 1978, assumiu o mandato em 1983, quando Montoro se elegeu governador. Derrotado por Jânio Quadros na disputa pela Prefeitura de São Paulo em 1985 -seu pior revés político-, foi senador até 1992. Fundou o PSDB em 1988 e foi chanceler de Itamar Franco por poucos meses, até assumir a Fazenda em 1993 e entrar para a história.

Apesar da trajetória incomum e brilhante, FHC diz ter sido "um presidente acidental". O cargo -ele tenta convencer o interlocutor- nunca o obcecou.

Talvez com isso queira marcar um contraponto entre o seu jeito maleável de lidar com a política e os acasos da existência e a ideia fixa de uma vida inteira, encarnada por seu amigo José Serra. "Eu não sou um político tradicional, não vivo da política. E talvez nem para a política, na acepção weberiana, da vocação. O lado intelectual é forte em mim. O lado provocador, de arriscar, de flertar com posições de vanguarda." MACONHA Fernando Henrique vem desempenhando de um ano para cá um papel que não é nem o do intelectual, nem o do político, embora ambos nele convivam. Aos 80, adotou a causa da descriminalização da maconha e se tornou uma espécie de ativista global, pesquisando e discorrendo sobre o assunto mundo afora. O protagonismo no documentário recém-lançado "Quebrando o Tabu", do diretor Fernando Grostein Andrade, deu a FHC uma nova notoriedade. Na prática, ele passou a se dirigir a uma geração que hoje tem 18 anos e estava nascendo ou engatinhava quando ele se elegeu presidente.

O engajamento de FHC nessa questão parece funcionar como um arremate progressista em sua biografia, em sintonia com o lugar que ele sempre quis ocupar.

"É um tema mais fácil para um político fora do jogo eleitoral, como eu, que nem político no sentido convencional sou", diz. Para ele, seu partido, o PSDB, por ora deve ficar fora da discussão, para não atrapalhar: "As pessoas reclamam, dizem 'ah, o PSDB não está dando apoio', mas é melhor que não se meta. Se for se meter, vai se meter com o preconceito. Quando na sociedade houver uma coisa mais clara, opções reais, aí os políticos entram". Ele acredita que a sociedade brasileira, conservadora nessa matéria, ainda não está madura para influenciar os políticos, e os políticos não vão na vanguarda. Esses, ele diz, entusiasmado, são "temas de vanguarda", que "têm conexão" com a vida real.

"Anda comigo na rua para você ver se não tem", provoca, quase brincando, depois de dizer que outro dia o porteiro de um prédio vizinho o abordou para elogiar sua posição.

SOCIALISTA Já é meio-dia e o jornalista pergunta se FHC algum dia foi, de fato, socialista. A resposta vem assim:

"Nunca fui militante no sentido estrito. Eu era estudioso. Na altura do seminário do Marx [entre os anos 50 e 60], ninguém era ligado a partido. E nunca me entusiasmei com a luta armada. Mas até hoje eu acho o sistema capitalista extremamente difícil de tragar. Pessoalmente, não aceito desigualdades. Tenho horror a prerrogativas."

E exemplifica: "A mim me constrange, por exemplo, não entrar numa fila. Eu primeiro vou para a fila.

Depois alguém pode me tirar, mas eu vou. No instituto, eu fico na fila para entrar no elevador. Não suporto 'entourage'. Ao contrário do que muita gente pensa, meu ser não é afim com esse sistema. Sou mais igualitário, como sentimento. Agora, sou realista."

De certa forma, o político FHC "realizou" o que o intelectual Fernando Henrique escreveu -muito mais, por exemplo, do que Lula cumpriu o que falava até chegar à Presidência

"O pressuposto de que olhar para as classes emergentes te empurra para a direita não tem sustentação. A direita pode estar em outro lugar. Inclusive entre os mais pobres."

"As pessoas reclamam, dizem 'ah, o PSDB não está dando apoio' [à descriminalização da maconha], mas é melhor que não se meta. Se for se meter, vai se meter com o preconceito."

FONTE ILUSTRÍSSIMA/FOLHA DE S. PAULO

'Com sigilo, democracia fica bastante capenga', diz Miro Teixeira

Roberto Maltchik

BRASÍLIA - Na última semana, a discussão sobre o sigilo de documentos ultrassecretos causou polêmica no país. E a sinalização da presidente Dilma Rousseff em favor do segredo constrangeu a Câmara, que aprovou projeto no sentido oposto. O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) disse que a disputa serve para "enterrar no Senado" a proposta de uma Lei de Acesso à Informação Pública. E que "beira o ridículo" sustentar que a divulgação de documentos é institucionalizar o WikiLeaks no país, como disseram os senadores e ex-presidentes José Sarney e Fernando Collor.

Qual a implicação de escolher documentos que poderão ficar para sempre escondidos?

MIRO TEIXEIRA: A preocupação é com o silêncio. O poder do silêncio é brutal. Aqueles que detêm o conhecimento exclusivo dos fatos passam a exercer o poder sobre um conjunto enorme de pessoas. E, aí, a democracia fica bastante capenga.

Acha que isso é uma cortina de fumaça para retardar uma Lei de Acesso à Informação?

MIRO: Sim. Que interessa àqueles contrários à aprovação da nova lei. Não existem documentos absolutamente secretos. Não vejo razão de natureza pública e democrática que sustente a tentativa de ocultação dos fatos.

O projeto da Câmara traz risco à segurança nacional?

MIRO: Ele é um bom texto, não é perfeito, mas protege a sociedade. A classificação de 25 anos, prorrogáveis por mais 25 anos, a obrigação de definir quem faz a classificação e tornar isso público protege a sociedade. O que o Senado pretende introduzir é altamente nocivo. A argumentação beira as raias do ridículo.

Qual argumento é ridículo?

MIRO: O argumento de que vamos transformar os nossos documentos em um WikiLeaks é um duplo desconhecimento. Primeiro, WikiLeaks não é fonte oficial. Quando nós falamos de documentos públicos brasileiros, nós estamos tratando da verdade dos fatos. Segundo, não há nada mais problemático para os Estados Unidos, por exemplo, do que a guerra do Vietnã, e você tem a divulgação desses documentos com a preservação, sim, de dados que interessam ao estado. Como se faz isso: com o documento divulgado com breves tarjas pretas.

Com a brecha para o sigilo eterno, o senhor acredita que poderá haver uma grande concentração de documentos classificados como ultrassecretos?

MIRO: O esforço para criar essa categoria indica que sim. A lei poderá ser burlada, a rigor, dessa forma.

É ponto pacífico que os documentos sobre violações aos direitos humanos na ditadura serão revelados de qualquer forma?

MIRO: A argumentação apresentada pelo Sarney e pelo Collor sempre remonta a Guerra do Paraguai e a incorporação do Acre ao Brasil. Isso me parece que é uma fórmula de evitar a discussão concreta do que se passa. Sem o acesso pleno, podemos ter 100% de certeza de que haverá ocultações graves. Se não houvesse intenção de ocultar, não teríamos a preocupação de criar o instrumento da ocultação.

Politicamente, qual é o futuro da tramitação desse projeto?

MIRO: Estamos dispostos a lutar para o Senado deliberar. Que votem o que quiserem, mas votem. A manobra que está sendo feita é para enterrar o projeto no Senado e impedir que retorne à Câmara.

Quais lacunas, além da ditadura, estão mal esclarecidas na história do país e que poderiam ser reveladas?

MIRO: As principais são de fatos relacionados à ditadura. A participação de civis na repressão, como ocorreu na Operação Bandeirante (Oban, grupo organizado em São Paulo na ditadura para investigar integrantes da resistência). Esse é um caso simbólico. A participação de civis, de empresários, ainda é muito enigmática. E muitos deles estão por aí, pontificando...

O foco hoje está sobre documentos do poder Executivo. Existe transparência em relação s aosocumentos do Legislativo e do Judiciário?

MIRO: Nós temos que investigar muitas coisas também dos poderes Legislativo e Judiciário. São mais ocultados do que os documentos do Executivo. O Legislativo e o Judiciário são caixas-pretas. De repente, a tentativa de ocultação é mais de documentos lá do Senado. O silêncio é que mete medo.

FONTE: O GLOBO

Dilma e o sigilo

http://chargistaclaudio.zip.net/

Teoria e prática:: Merval Pereira

Publicado na mais recente edição de Opinião Pública, revista de ciência política da Unicamp, um trabalho do cientista político Octavio Amorim Neto, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas do Rio, o geógrafo Bruno Cortez, do IBGE, e Samuel Pessôa, economista do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE), da FGV-Rio oferece uma proposta de reforma do sistema eleitoral da Câmara dos Deputados.

Embora mantendo o sistema de representação proporcional com lista aberta, a proposta o altera em dois aspectos-chave: reduz o número de cadeiras disputadas nas circunscrições eleitorais, que são redesenhadas com esse objetivo, e estabelece uma regra proporcional de distribuição de cadeiras entre partidos coligados.

Os autores consideram que nosso sistema eleitoral favorece demasiadamente o quesito representatividade, a ponto de termos uma das legislaturas mais fragmentadas do mundo.

Ainda que não seja o caso de se abandonar a representação proporcional, consideram imperativo facilitar a vida do eleitor, oferecendo-lhe um quadro partidário mais compacto e nítido por meio da redução do número de partidos.

Para reduzir o número de partidos, existem dois métodos principais: a imposição de uma rigorosa cláusula de barreira e a redução da magnitude média das circunscrições eleitorais.

Neste artigo, os autores defendem a segunda alternativa, mas desaconselham a sua forma mais radical, a adoção de distritos uninominais ou suas variantes.

A ideia é reduzir moderadamente a magnitude existente por meio de um novo desenho das circunscrições eleitorais do país (os estados), além de propor uma regra proporcional de alocação de cadeiras dentro das coligações eleitorais.

Segundo estudos, nosso presidencialismo de coalizão, apesar das suas mazelas, pode ser efetivo, mas os autores desse trabalho defendem a tese de que "não precisa sê-lo a um custo tão alto, custo gerado, em boa medida, pela alta fragmentação legislativa".

A proposta do trabalho mantém inalterado o peso de cada estado da Federação na Câmara dos Deputados. Assim, os autores procuram criar circunscrições as mais homogêneas possíveis, de acordo com o que acreditam ser a principal clivagem política do país, a socioeconômica.

As circunscrições eleitorais a serem criadas para cada uma das 12 unidades da Federação que têm mais de 16 cadeiras na Câmara, e passariam a ter de oito a 12, são as seguintes: São Paulo, oito (sendo duas no município de São Paulo); Minas Gerais, seis; Rio de Janeiro, cinco (sendo duas no município do Rio de Janeiro); Paraná, três; Santa Catarina, duas; Rio Grande do Sul, três; Bahia, quatro; Pernambuco, três; Ceará, duas; Maranhão, duas; Goiás, duas; Pará, duas.

A proposta advoga a manutenção do instituto das coligações partidárias para as eleições legislativas, mas altera a regra de distribuição das cadeiras de modo a torná-la proporcional.

A distribuição das cadeiras intracoligações seria proporcional à votação de cada partido integrante das alianças eleitorais.

Ou seja, como as coligações, sob as regras atuais, favorecem os pequenos partidos, que, por si só, não conseguem atingir o quociente eleitoral, sob a regra proposta deixa de existir o estímulo espúrio para que os pequenos partidos predem os grandes que aceitem com eles se coligar.

Por último, a proposta mantém as coligações porque elas podem ser úteis para adiantar o processo de construção da base de sustentação dos governos antes do primeiro turno das eleições presidenciais, oferecendo também uma compensação aos pequenos partidos pelo aumento dos quocientes eleitorais gerado pela redução na magnitude das circunscrições eleitorais.

O artigo também apresenta os resultados de um exercício de simulação feito com base nos dados das eleições de 2006, por meio do qual se recalcula a composição partidária da Câmara dos Deputados a partir das regras preconizadas.

O exercício mostra que o novo sistema reduz moderadamente a fragmentação partidária. Os quatro maiores partidos ganharam cadeiras. Todas as demais bancadas, com a exceção do PSB, que ganhou três cadeiras, perderam.

Os maiores perdedores são o PP pela direita, que perde sete cadeiras; o PTB pela centro-direita, que perde oito cadeiras; o PDT pela centro-esquerda, que perde nove cadeiras; e o PC do B, pela esquerda, que perde sete cadeiras.

Os autores consideram, do ponto de vista acadêmico, que a alteração na regra eleitoral não mudaria o equilíbrio político no Congresso. Esquerda e direita, liquidamente, nem perdem, nem ganham. Os partidos nanicos praticamente desapareceriam e os partidos intermediários teriam o seu tamanho reduzido. Caso interessante é do PV, que perde somente uma cadeira.

Mas, do ponto de vista político, a teoria na prática é outra. Como se vê, na vida real é praticamente nula a chance de uma alteração desse tipo ser aprovada pelo Congresso, qualquer que ele seja, mesmo que organize melhor nosso sistema político-eleitoral.

FONTE: O GLOBO

A alma do negócio::Dora Kramer

O argumento do governo para tentar legitimar o sigilo sobre os orçamentos das obras da Copa do Mundo e da Olimpíada é muito parecido com a justificativa apresentada pelo então ministro Antonio Palocci para conferir legitimidade à recusa de abrir as informações sobre as atividades de sua empresa de consultoria.

Ambos alegaram que todos os dados estariam “à disposição dos órgãos de controle”. Nem Palocci nem Dilma convenceram com seus peculiares raciocínios a respeito, primeiro, do que seja o preceito da publicidade exigida na administração pública e, segundo, da capacidade do público de acreditar em sofismas.

Dar publicidade aos números após a conclusão das licitações, e ainda assim apenas aos “órgãos de controle” com restrição para divulgação, está longe de ser uma conduta de quem preza a transparência como quis fazer crer a presidente na sexta-feira ao tentar transformar em “mal-entendido” o que foi muito bem compreendido.

Dificilmente a medida provisória que institui aquela e outras barbaridades conseguirá passar pelo Senado da forma como passou pela Câmara, com autorização para empreiteiras aumentarem de forma ilimitada os custos das obras e extensão das facilidades de correntes do Regime Diferenciado de Contratações para cidades onde não haverá jogos da Copa em 2014 nem competições da Olimpíada de 2016.

As reações contrárias servirão para, pelo menos, minorar os óbvios efeitos perniciosos da MP.

Evitá-los é impossível já que o governo, embora tivesse tido tempo suficiente para ter dado início ao processo pelas vias normais, preferiu deixar tudo para a última hora.

Custa crer que o tenha feito de propósito, justamente para, na pressão, afrouxar os controles e, quando menos se esperava, ainda procurar o abrigo no sigilo a fim de evitar o cotejo entre os orçamentos iniciais e os custos finais.

Pagamos agora a conta da inépcia. Mais à frente, quando a malandragem produzir suas consequências, pagaremos a conta da má-fé na forma do escândalo certo desde já contratado pelo sigilo de hoje que resultará na CPI de amanhã.

Intenção e gesto. A boa educação é sempre bem-vinda, embora nem sempre seja praticada. Daí as saudações à manifestação benfazeja da presidente Dilma Rousseff ao “acadêmico inovador, o político habilidoso, o ministro arquiteto de um plano duradouro de saída da hiperinflação”, Fernando Henrique Cardoso. Mais que votos de feliz aniversário, Dilma, segundo auxiliares, pretendeu oferecer-se à distensão.

A civilidade e a reverência à realidade também são sempre bem vindos, embora nem sempre sejam praticados.

Notadamente quando a necessidade impõe comportamentos distintos, conforme se constata no exame de declarações feitas durante a campanha eleitoral, e já depois, com Dilma na Presidência. Eis algumas.

“Tínhamos diante de nós [na transição entre governos Lula e FH] um país que era o reino das desigualdades” (abril de 2010).

“Não havia [no governo FH] planejamento estratégico, não havia crescimento de investimento público, não havia parceria com a iniciativa privada” (março de 2010).

“Os tucanos venderam R$ 100 bilhões do patrimônio público e elevaram a dívida pública para R$ 600 bilhões. Que grande gestão financeira eles fizeram?” (agosto de 2010).

“Eu tenho sido acusada de querer ganhar a eleição antes da hora, de sentar na cadeira antes da hora. Quem sentou na cadeira antes foi o ex-presidente da República. Por dois motivos não faço isso: porque respeito o voto popular e porque acho que dá azar e ficou visível que deu azar” (agosto de 2010).

“É fácil (governar o Brasil) quando a gente compara a situação de hoje com o país que encontramos em 2003: uma inflação absolutamente fora do controle, sem reservas, dependente do Fundo Monetário”. Esta última em entrevista ao escritor português Miguel Sousa Tavares, em 28 de março de 2011, menos de três meses antes da carta enviada ao “querido presidente, que contribuiu decisivamente para a consolidação da estabilidade econômica”.

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Tremeliques na área externa :: Eliane Cantanhêde

Dilma Rousseff estava à vontade e de calças jeans no longo voo até a China, depois de avisada pelo Itamaraty de que não haveria nenhuma autoridade à sua espera. No desembarque, Antonio Patriota volta ao avião, esbaforido, para dizer que ninguém menos que o vice-presidente chinês fora recebê-la. Dilma ficou uma fera e deu uma bronca no chanceler. Quem haverá de lhe tirar a razão?

Mais adiante, Patriota se reuniu com Hillary Clinton nos EUA, e juntos deram uma entrevista coletiva em que o chanceler foi pródigo em obviedades e econômico em informações relevantes. Conclusão: não saiu nada na primeira página dos jornais brasileiros. Um espanto. Alguém consegue imaginar um encontro de Celso Amorim com a secretária de Estado dos EUA passando em branco?

É assim que Patriota, pianista, estudioso de música clássica, que fala fluentemente várias línguas e é o típico primeiro de turma, vai deslizando da condição de invisível para a de insignificante. Política externa se faz por gestos, atos e palavras. Não mudo, imóvel, nos bastidores. Dilma não está gostando.

Em dois tremeliques, porém, não se debite a culpa a Patriota: na desfeita com a Prêmio Nobel da Paz Shirin Ebadi, a iraniana que foi esnobada pela presidente, e no silêncio ensurdecedor do Itamaraty diante da crise com a Itália pela não extradição de Cesare Battisti.

Os anfitriões de Ebadi foram para o ataque, reclamando publicamente que Dilma não a incluíra na agenda. A presidente se sentiu pressionada e bateu pé: "Ah, é? Agora é que não recebo mesmo".

No caso Battisti, a posição vem desde Amorim: se Lula se deixou levar por Tarso Genro, que passou por cima do Itamaraty e da Justiça para manter o italiano no Brasil, a diplomacia tirou o time de campo e opera no vestiário. Amorim fingiu que não era com ele, Patriota foi atrás. Aí, inverte-se o jogo: quem haverá de lhes tirar a razão?

FONTE: FOLHA DE S. PAULO

Sigilos que nos governam:: José de Souza Martins

Dilma não recuou só na questão dos documentos secretos, mas também na outra até mais grave da discutível anistia a torturadores

Em conjuntura histórica de descrença em mandatos políticos, desgastados por escândalos e apurações malfeitas, a legitimidade de muitos representantes do povo está aquém do mínimo necessário para propor, defender e assegurar razões de Estado na manutenção de documentos públicos como secretos. Mesmo que não existam, é difícil acreditar que uma dose de razões pessoais não busque abrigo nas do segredo de Estado.

Num país em que nem sempre as razões de Estado são do Estado, em que público e privado se mesclam impunemente, como temos visto nos mensalões da vida, o debate sobre o tema corre o risco de cair num ofensivo cinismo. Quando se vê que estão envolvidas na querela sobre documentos secretos algumas das figuras envolvidas há algum tempo na dos atos secretos do Senado e foram cúmplices do regime dos decretos secretos da ditadura, não se pode deixar de ter dúvidas sobre o modo como a questão está sendo conduzida.

Os atos secretos do Senado acobertavam nomeações irregulares de parentes e amigos de parlamentares para cargos públicos. Eram secretos, disseram, porque por distração deixaram de ser publicados no Diário Oficial. Já não nos importamos com a enormidade da justificativa desrespeitosa. Essa simpatia por governação secreta dá o que pensar e temer.

Dizer que é preciso manter secretos os documentos relativos à incorporação ao Brasil do território do Acre, que antes pertencera à Bolívia, é supor que somos, além de ingênuos, ignorantes. Só essa declaração de um senador já causa mais danos às relações entre o Brasil e a Bolívia do que a abertura do segredo de Estado relativo ao que foi, de fato, uma transação comercial. O Brasil comprou o Acre à Bolívia, para resolver uma situação de fato, do mesmo modo que os Estados Unidos compraram o Alasca à Rússia.

Dizer, ainda, que os documentos de determinado governo estão abertos à consulta pública numa fundação em São Luís do Maranhão tampouco diz algo que deva ser levado a sério. Esses documentos são basicamente cartas enviadas ao presidente da República pelos cidadãos. Porém, os documentos de Estado, que possam ser objeto de segredo, não estão lá.

Não só pode haver razões pessoais até discrepantes das razões de Estado no adiamento do acesso aos documentos protegidos pelo segredo, mas também razões de grupos e partidos que, tendo um dia dito uma coisa, agora dizem outra, literalmente oposta a convicções proclamadas e esperanças cultivadas.

Desgraçadamente, a história da Nova República, assim batizada por Tancredo Neves para definir o regime que sucedeu ao regime militar, tem tido seus episódios de estelionato eleitoral, em que se promete uma coisa e se entrega outra, oposta à de direito esperada com base em programas e públicas profissões de fé.

Nos debates destes dias, o alvoroço de políticos em assegurar que se mantenham secretos documentos que podem até dizer respeito à violação de direitos dos cidadãos enfraquece ainda mais o próprio regime político, precocemente desgastado. No mínimo porque aí nos descobrimos mal representados e, sobretudo, expostos e sem direitos quanto a medidas de governo em cuja lisura nem sempre se pode acreditar. Aquela parcela da população dotada da lucidez política tão necessária ao exercício e à sustentação da democracia não poderá deixar de avaliar criticamente suspeitas decisões e suspeitas orientações quanto ao tema.

Convém ter em conta que o regime autoritário foi vencido em nome de valores que deveriam estar nos alicerces do regime atual. Particularmente em relação ao PT, que se proclamou partido ético, embora não fosse o único, e radicalmente quis demarcar sua diferença em relação ao regime militar em nome da vítima.

No entanto, neste episódio dos documentos secretos, o recuo do governo é notório e injustificável. O que é uma aparente confusão vai se revelando mais um jogar verde para colher maduro e, em face da reação adversa, fazer a mal conduzida e confusa manobra de retirada. Mas ficou na opinião pública a dúvida quanto às verdadeiras intenções dos envolvidos, e isso não tem conserto. O cidadão tem o direito de saber o que fizeram com ele e, ao que parece, continuam fazendo.

A presidente Dilma Rousseff não só recuou na questão dos documentos secretos, mas recuou ainda em relação à questão até mais grave da discutível anistia aos torturadores, atuantes no regime ditatorial. Escorando-se numa decisão do STF, acaba de declarar que não pretende propor uma revisão na Lei de Anistia. Desde a campanha, Dilma vem recuando nessa questão e em outras questões relativas ao que foi um dia a bandeira que fazia do PT um partido novo e diferente. Já não o é. Pelas alianças feitas, pelas posições tomadas em questões referenciais para uma nova democracia no Brasil, desde Lula o PT vem negociando o inegociável e recuando para as concepções mais deploráveis de nossa história política e para o fisiologismo cujo repúdio, não nos esqueçamos, justificou a Revolução de Outubro de 1930.

José de Souza Martins, professor emérito da Universidade de São Paulo, é autor de A sociabilidade do homem simples (Contexto)

FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO

A serviço de quem?:: José Álvaro Moisés

No segredo dos custos de obras da Copa e da Olimpíada mora o risco de desvio de dinheiro público

As prerrogativas do Estado de Direito autorizam os governos democráticos a impor o sigilo de suas ações à sociedade que representam? Admitindo-se, como quer o governo da presidente Dilma Rousseff, que algum sigilo possa se justificar, quais são seus limites? A segurança do Estado (e das suas autoridades) pode contrariar os direitos fundamentais de informação e de transparência que a democracia assegura aos seus cidadãos? E, em caso de sigilo de matérias que envolvam o uso de recursos públicos, a quem cabem as tarefas de fiscalização e de controle para se evitar os riscos conhecidos de corrupção e fraude?

A controvérsia não é nova, já tinha aparecido nas tentativas do ex-presidente Lula de limitar as competências do Tribunal de Contas da União na avaliação e julgamento das ações do governo federal. Ela reapareceu agora com mais força diante do reconhecimento do governo Dilma de que está atrasado no que se refere às obras e serviços da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016. Para enfrentar o que os críticos consideram ser um atestado de sua incompetência, o governo enviou ao Congresso Nacional uma medida provisória que institui regras especiais para a realização de obras e serviços relacionados com os dois eventos internacionais.

Embora não haja notícia de que a MP aprovada pela Câmara tenha sido submetida ao exame de urgência e relevância exigido pela Constituição, o texto flexibiliza as exigências da Lei de Licitações para as obras da Copa e dos Jogos. Tentativas anteriores do governo do PT para mudar a lei esbarraram na resistência da oposição, mas com a esmagadora maioria conquistada em 2010, a situação mudou e a proposta foi aprovada por 272 deputados contra 76. O texto ainda pode ser alterado quando da votação de destaques ou quando for examinado pelo Senado, mas a realidade da coalizão governista majoritária não sugere que isso seja possível.

O novo Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) autoriza o governo a manter em segredo os orçamentos de órgãos da União, Estados e municípios para as obras da Copa e da Olimpíada – e aqui está o risco de desvio do dinheiro público. Antes dessa alteração, a lei exigia que a administração pública divulgasse no edital de concorrência sua estimativa de custos da obra ou serviço. O cálculo era feito com base em tabelas oficiais de preços ou em pesquisas de mercado e o valor balizava o julgamento das propostas, mas o governo alegou que a divulgação estimulava a formação de cartéis e a manipulação de preços e o propôs o sigilo para enfrentar o problema, sem examinar alternativas.

O RDC contém outros pontos polêmicos, como a possibilidade de se aumentar o valor de um contrato de obras sem limite em uma mesma licitação. Pela regra atual, esses aditivos estavam limitados a 25% em caso de obras novas e a 50% em caso de reformas. A MP ainda estabeleceu que os orçamentos prévios só serão disponibilizados aos órgãos de controle a critério do governo, e suspendeu a garantia de acesso regular às informações por esses órgãos. Na prática, o governo está autorizado a revelar os valores das obras da Copa e das Olimpíadas apenas após sua conclusão, sem compromisso de manter a sociedade informada a respeito dos seus custos.

A iniciativa levanta várias questões sobre a natureza republicana do sistema político brasileiro. A ministra Ideli Salvatti, das Relações Institucionais, tentou justificar o sigilo em nome do “interesse do Estado e da sociedade”, mas omitiu o fato de que o Artigo 5º. da Constituição estabelece os direitos dos cidadãos à informação sem margem a dúvida, apenas ressalvando os casos imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado. A questão aqui consiste em saber em que a segurança da sociedade pode estar ameaçada pelas obras previstas. O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, considerou “absurda, escandalosamente absurda”, a MP aprovada e sinalizou com a possibilidade de a decisão ser barrada pela interposição de uma ação direta de inconstitucionalidade.

O episódio mostra que talvez tenha chegada a hora de o País reexaminar as condições em que está funcionando o presidencialismo de coalizão. A governabilidade é importante, sem duvida, mas não pode operar ao custo da autonomia do Legislativo e dos partidos políticos. Queiram ou não, os líderes democratas terão de enfrentar questões espinhosas se quiserem resolver o dilema. Primeiro, as exigências de governabilidade podem impor limites ao direito da sociedade de saber o que o governo está fazendo em seu nome? Segundo, o Congresso Nacional pode se submeter sempre tão docemente à coalizão majoritária, abrindo mãos de suas funções de fiscalização e de controle do Executivo, sem se dar ao cuidado de examinar os riscos de corrupção e fraude? E, finalmente, diante de sua condição de força minoritária, a oposição pode limitar seu protesto ao âmbito do Congresso?

Para resgatar a política dos desvios a que ela foi submetida nos últimos anos, talvez tenha chegado a hora de os políticos democratas levarem o debate para as ruas, as organizações profissionais e as universidades. A experiência internacional mostra que, quando os problemas chegam ao ponto a que chegaram no Brasil, a pressão da sociedade é uma saída benéfica.

José Álvaro Moisés é professor titular do Departamento de Ciência Política da USP

FONTE: ALIÁS/ O ESTADO DE S. PAULO

Governar com inimigos:: Renato Lessa

Vale lembrar: no jogo entre governo e base aliada pesa o fato de que o líder desta é indemissível

Em entrevista a um programa de televisão, nessa última semana, o governador do Ceará, prócer do Partido Socialista Brasileiro - componente da assim chamada "base aliada" do governo -, deu sua versão a respeito do princípio da gratidão na política. Segundo seu contributo doutrinário, a presidente Dilma Rousseff deveria retribuir o apoio dado a sua eleição pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, lançando-o candidato a sua sucessão no ainda longínquo ano de 2014. O estímulo à gratidão alheia, para os pessimistas, pode ser considerado um traço não incomum da natureza humana. Não será, com efeito, difícil encontrar em François La Rochefoucauld ou em Jean de La Fontaine, moralistas do saudoso século 17, suporte para tal sentimento.

Há, contudo, além de desencanto antropológico, sinais de patologia política na coisa. Um aliado contribui para a reativação de uma das suspeitas lançadas durante o processo eleitoral, a de que se preparava, na altura, um interregno. Suspeitar é humano, mas se plano havia, há que se suspeitar também de parvoíce, pois haveria que combinar as coisas com os eleitores, com quatro anos de antecedência, e apostar na possibilidade de um cenário no mínimo curioso: Dilma Rousseff deveria fazer um governo à la Quincas Borba: a vida não sendo tão boa, não é de todo má. Segundo a prescrição emanada do Cosme Velho, seu governo não deveria ser nem muito bom e nem uma ruína, capaz de macular as chances futuras do seu patrono.

De qualquer forma, antecipar a sucessão parece ser coisa de inimigos. Tem-se aí um indício de que algo está fora de lugar. O gesto do governador pode ser tomado como um estímulo para refletir a respeito da distinção entre amigos e inimigos. De modo menos abstrato, pode-se pôr a coisa nos seguintes termos: o que é e faz a oposição, e quem a exerce?

A seguir o manual do bom senso, a oposição é uma prerrogativa dos derrotados em 2010. Derrotados curiosos, pois, apesar da imensa popularidade do principal apoiante da candidata vitoriosa, foram capazes de amealhar suculentas dezenas de milhões de votos, com vitórias em pontos importantes do País. Passado o pleito, a oposição oficial nunca esteve à altura de sua façanha. Ganhou notoriedade com a exibição de suas querelas internas, foi assaltada pela razia imposta pelo prefeito de São Paulo e desapareceu. Não estivessem vigentes os institutos constitucionais de 1988, dir-se-ia que os tipos foram para a clandestinidade. Fica à espreita dos deslizes comportamentais dos vitoriosos que, por não serem infrequentes, dão-lhe algum oxigênio. Ignora-se o que pensa a respeito do País e o que tem a dizer à multidão de seus eleitores.

É da natureza dos sistemas políticos com alguma dose de competição a existência de oposições. Sabemos que as há mesmo em sistemas de baixa - ou nula - competitividade. Que dirá do nosso, cuja competitividade é sempre decantada por numerologia ufanista?

A oposição real pode ser encontrada onde era suposto que ela não estivesse. A "base aliada" é um celeiro de descontentes e, o que é mais grave, ambiente assolado pelo princípio da chantagem. A base do modelo político em curso sustenta-se na necessidade da grande coalizão parlamentar e partidária de apoio ao (ou, agora, à) presidente. Por maior que seja a magnitude da vitória eleitoral presidencial, a diversidade brasileira, acolhida pelos fundamentos do sistema eleitoral (nada de errado com isso, em princípio) torna pouco provável a eleição concomitante de maioria parlamentar comparável. Aqui, como alhures, a inevitabilidade das coalizões se faz presente, como condição de - com perdão antecipado pelo uso do termo - "governabilidade". Até aqui, nada de patológico ou de preâmbulo para danação eterna.

Há diversas ordens de problemas, presentes no arranjo implantado no País após a redemocratização da década de 80; um arranjo emergencial, cuja "teoria" ou "doutrina" lhe foi posterior na ordem do tempo. Há ali um dilema que lhe é inerente, a consistir no fato de que "governabilidade", tal como a ideia é veiculada, está associada à formação de maiorias parlamentares disciplinadas, sem considerar o dano infringido pelo processo ao programa substantivo de governo, tal como sufragado pela maioria dos eleitores. Há, pois, uma tensão entre a busca de docilidade parlamentar e a capacidade de execução do governo. Governar cada vez mais se converte em exercer "coordenação política" sobre uma base ampla e de baixa confiabilidade.

O dilema aprofunda-se no governo atual. A principal força de oposição potencial e real está instalada na "base aliada". Com um agravante: seu líder incontestável ocupa posição indemissível, posto que no exercício da Vice-Presidência da República. A quebra da coalizão, mais do que risco político, o que é da vida, pode configurar problemas mais graves de natureza institucional. O camarada Lenin, a certa altura e com brilho, designou a confusão como "dualidade de poder". Ele gostava da coisa, mas, cá entre nós, trata-se de algo que sempre acaba mal.

Como se bem diz em Portugal, o sarilho está posto. Para isso é que se elegem governos? Para que despendam a maior parte de seu tempo e energias a tentar governar a si mesmos? Para fazer da "coordenação política" sua principal atribuição? Há que pensar nos limites dessa forma de governar, segundo a qual a busca de apoio para executar um programa exige sua descaracterização. O "presidencialismo de coalizão" é a forma institucional do arcaísmo, instalado no processo político de condução do País. Como é possível que um dos personagens mais sinistros da história republicana tenha papel relevante na definição da política de sigilo de documentos? Enquanto isso, o Supremo Tribunal Federal educa a República e dá lições a respeito da importância da liberdade pessoal (essa frase é séria). Assim não dá.

Renato Lessa é professor titular de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense, pesquisador associado do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e presidente do Instituto Ciência Hoje

FONTE: ALIÁS/O ESTADO DE S. PAULO

Às cegas:: Ferreira Gullar

Faz algumas semanas, cometi o atrevimento de tentar demonstrar como o Lula e o PT terminaram por ocupar, na vida política brasileira, o lugar do partido que era o seu principal adversário, o PSDB. Não havia nada de desconhecido nessa metamorfose, faltava apenas enunciá-la, e foi o que eu fiz: demonstrei como Lula e seu governo, depois de combaterem ferozmente o governo FHC e seus programas, entenderam que, se insistissem nessa postura, jamais alcançariam a presidência da República. Mudaram e ganharam as eleições. E mais: ao assumir a chefia da nação, sem nenhum projeto, Lula viu que, se não seguisse o rumo do governo anterior, levaria o país ao desastre. E assim foi que, conforme disse naquela crônica, o lobo vestiu a pele do cordeiro, isto é, o PT virou PSDB. E a metamorfose continua, pois, agora, depois de satanizar, durante as últimas eleições, a privatização, Dilma decide privatizar os principais aeroportos do país.

Disso resultou que o PSDB não conseguiu fazer oposição de fato ao governo petista, já que para isso teria que se opor a tudo o que defendera e implantara no país. E essa situação se mantém, e de tal modo, que o PSDB, desde então, mergulhou numa apatia que vinha se agravando a cada dia. E, com a cara de pau que o caracteriza, Lula afirmou que isso ocorre porque o partido de FHC não tem programa...

A verdade é que Lula - e agora Dilma -, tendo se transformado em autores dos projetos e programas que combateram, aliaram às medidas saudáveis do governo anterior -que liquidaram com a inflação e mantiveram estável a economia- outras abertamente populistas, visando conquistar o maior número possível de pessoas carentes.

Com isso, Lula garantiu a seu governo e seu partido uma popularidade de que jamais gozariam se tivessem persistido na pregação radical que sempre os caracterizou. Além do mais, aparelhou órgãos e empresas estatais, pondo-os todos a serviço da propaganda oficial. De tudo isso resultaram o enorme crescimento do PT nas últimas eleições e a inabalável popularidade de Lula, que assim pôde eleger para a presidência uma senhora que jamais disputara qualquer pleito eleitoral. Ela governa o país, seguindo o mesmo plano populista de seu inventor, com ampla aprovação popular.

Que perspectiva viável terá um partido de oposição, como o PSDB, em face de semelhante situação? Essa pergunta de difícil resposta tem levado muitos opositores de Lula e do petismo à indecisão e à imobilidade.

É verdade que alguns fatos recentes deram certo alento à oposição, como a derrota do governo na votação do Código Florestal e, sobretudo, o escândalo que envolveu Antonio Palocci e resultou em sua saída da chefia da Casa Civil. Mas esses episódios, se revelam a verdadeira natureza do governo petista, não bastam para afirmar a oposição como alternativa de governo. Isso só acontecerá quando os líderes oposicionistas se dispuserem a refletir sobre a situação do país, visando construir um projeto de nação.

Para concebê-lo seria necessário entender que a estabilidade econômica, se é um fator positivo, não basta para definir o futuro e garantir a melhoria real da vida das pessoas, particularmente daquelas menos equipadas para crescer socialmente. Esse projeto, o PT não é capaz de criar.

E não o é porque ele não tem nem nunca teve plano de governo. Esse tipo de partido, por acreditar que todo o mal da sociedade decorre do domínio da burguesia, imagina que basta tirá-la do poder para resolver todos os problemas. Foi por isso que, para governar, o PT teve que transformar-se em PSDB. Mas continua sem projeto próprio.

Isso significa que, não o tendo, improvisa a cada dia um novo lance populista, como o recente Brasil sem Miséria, mais um slogan do que um programa de governo. Esses programas assistenciais não são capazes de alterar qualitativamente a vida das pessoas, especialmente dos jovens, cujo futuro depende da educação de qualidade.

São previsíveis os problemas que as novas tecnologias poderão criar em nosso país, no qual seu uso se estende de forma célere sem que a isso corresponda à formação de quadros técnicos aptos a fazê-lo funcionar. Enfim, o Brasil precisa de um projeto de nação.

FONTE: ILUSTRADA/FOLHA DE S. PAULO

FHC aos 80:: Celso Lafer

Fernando Henrique Cardoso chega aos 80 anos em grande forma e na plenitude das qualidades que dele fizeram um grande intelectual e um grande homem público. É o nosso elder statesman e a sua palavra tem prioridade na agenda de discussão nacional. Tem prioridade porque é dotada de autoridade, que se caracteriza por ser menos que um comando, mas mais do que um conselho, na definição de Mommsen. Essa autoridade é fruto do seu percurso e do seu legado, que aqui destaco celebrando o seu aniversário e, ao mesmo tempo, contrapondo-me à damnatio memoriae com a qual o presidente Lula, o PT e os seus simpatizantes, inclusive no mundo acadêmico, buscaram infligir à sua trajetória.

A damnatio memoriae é um instituto do Direito Romano por meio do qual um sucessor condenava a memória do seu antecessor, buscando apagar a sua imagem e eliminar o seu nome das inscrições, considerando-o um inimigo ou uma vergonha para o Estado romano. No Brasil, esse é o objetivo da retórica da "herança maldita", tal como persistentemente aplicada à qualificação da sua gestão presidencial por seu sucessor e acólitos. Ressalvo que dessa postura se afastou a presidente Dilma Rousseff, ao saudar com civilidade republicana os 80 anos de FHC e ao identificar os seus méritos.

Fernando Henrique é um raro caso, no Brasil e no mundo, de um grande intelectual que foi bem-sucedido na política, alcançando a Presidência da República no primeiro turno, por voto majoritário, em duas sucessivas eleições. Usualmente os intelectuais, na medida em que se interessam pela política, ou se dedicam à crítica do poder ou a assessorar o poder. FHC, além de ter desempenhado esses dois papéis, exerceu o poder no vértice do sistema político brasileiro. Logrou alcançar e exercer o poder em função de certas características de personalidade que merecem o elogio, e não a condenação de uma ressentida damnatio memoriae.

FHC foi afirmando a sua liderança desde os tempos da universidade, o que lhe valeu o reconhecimento dos seus pares. São componentes do modo de ser da sua liderança a agilidade e a rapidez da inteligência, que os gregos qualificam de anquinoia, e o dom de gentes, da prazerosa civilidade do seu trato com as pessoas..

A política requer coragem, que é uma "virtude forte" necessária para o ofício de governar e vai além das virtudes requeridas para lidar com as necessidades da vida e as exigências da profissão. É o sentimento de suas próprias forças, como a define Montesquieu. É saber manter a dignidade sob pressão, nas palavras de Hemingway, no confronto com o perigo e as dificuldades. Coragem, nos precisos termos das definições acima mencionadas, nunca faltou a FHC, como posso testemunhar ao tê-lo visto enfrentar seja a aposentadoria compulsória na USP por obra do arbítrio do regime militar e o bafo da repressão nos momentos iniciais do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), seja, em outro plano, no exercício da Presidência, a desestabilizadora crise do câmbio de 1999, que pôs em risco o Plano Real. Teve, para dar outro exemplo, a coragem de assumir o Ministério da Fazenda, no governo Itamar Franco, para enfrentar o imenso desafio de debelar anos de uma inflação desenfreada e corrosiva. A coragem também passa pela firmeza de lidar com temas controvertidos e se contrapor ao seu grupo político e à tendência majoritária da opinião pública. É a nota do seu empenho atual na discussão do problema das drogas, que mostra que os anos não enfraqueceram a sua vocação de combate.

O juízo político é a capacidade de perceber as características que singularizam um contexto. Beneficia-se da visão geral que o conhecimento oferece, mas requer a competência para identificar, numa dada realidade, as particularidades do que pode ou não resultar. FHC, na sua trajetória, foi capaz de olhar o distante e observar o perto, nas palavras de Goethe. Desse modo, como intelectual apto a se orientar na História, sempre teve visão global para entender o conjunto das coisas no Brasil e no mundo e, por obra da qualidade do seu juízo político, a sensibilidade para captar o espaço do potencial das conjunturas com que se confrontou. Pôde, assim, exercer, para falar com Albert Hirschman, a sua íntegra "paixão pelo possível".

Assegurou, na sua Presidência, republicanamente, a governabilidade democrática de um país complexo como o Brasil, por meio de uma liderança aparelhada por um superior juízo político que soube dosar harmonização com inovação e transformação. Logrou, desse modo, orientar o País a partir do Estado e mudar a sociedade brasileira, pois guiado pelo seu sentido de direção construiu um novo patamar de possibilidades para o nosso país.

FHC transformou a sociedade brasileira com o Plano Real, que, com a estabilidade da moeda, assegurou a previsibilidade social das expectativas e promoveu a redistribuição de renda. Impôs racionalidade administrativa com a legislação da responsabilidade fiscal e as privatizações. Garantiu a solidez do sistema bancário com o Proer. Inaugurou o novo alcance das redes de proteção social com o Bolsa-Escola. Empenhou-se na institucionalização da democracia, no fortalecimento da cidadania e na valorização dos direitos humanos. Deu destaque à agenda ambiental. Elevou, com as suas realizações e sua presença pessoal, o alcance do papel do Brasil no mundo. Em síntese, o seu legado é o de um grande homem público que promoveu a ampliação do poder de controle da sociedade brasileira sobre o seu destino, de que se vem beneficiando, de maneira duradoura, o nosso país.

Celebrar o seu aniversário é uma oportunidade de celebrar a sua obra e a sua pessoa e, no meu caso, de afirmar que é um privilégio fruir a sua convivência e, assim, saudar, com amizade e admiração, os seus jovens, sábios e democraticamente bem-humorados 80 anos.

Professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC

FONTE: O ESTADO DE S. PAULO

Charge: Marcha da liberdade

Miguel/ Jornal do Commercio (PE)

Lula volta a criticar a mídia em evento do PT no interior de SP

SUMARÉ - O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a criticar a mídia neste sábado durante evento político no interior de São Paulo. Em discurso a militantes do seu partido no Encontro das Macro Regiões Estaduais do PT de São Paulo, em Sumaré, Lula disse que, pelo teor do noticiário dos grandes veículos de comunicação, jamais teria deixado a presidência com 87% de aprovação popular.

- Se dependesse da primeira página dos jornais, eu só iria perder pontos no Ibope - afirmou.

O ex-presidente falou da estratégia de seu governo de privilegiar os pequenos veículos de comunicação do interior do país, as chamadas mídias regionais, para se comunicar com o eleitorado.

- Consegui criar outra forma de conversar com as pessoas que não fosse através dos grandes meios de comunicação, passando a falar nas rádios e jornaizinhos locais. Essa gente (do interior) não lê os grandes jornais, o que vale é a imprensa local, a rádio local - ensinou.

" Se dependesse da primeira página dos jornais, eu só iria perder pontos no Ibope "

O petista lembrou que essa bem sucedida mudança na comunicação oficial envolveu também a redistribuição das verbas publicitárias do governo. Segundo Lula, essas verbas eram destinadas a cerca de 378 veículos no início de sua gestão. E no ano passado eram oito mil veículos (entre rádios, jornais, revistas e TVs) que repartiam essa verba.

Falando aos militantes logo depois de Lula, que deixou o evento após discursar, o ex-ministro e deputado cassado José Dirceu disse que hoje a mídia "faz o papel da oposição" no país, organizando a agenda e pautando as ações da oposição.

- O partido precisa responder aos ataques que já está sofrendo e vai sofrer. Se tem problema de corrupção, que se investigue - disse.

Segundo Dirceu, o partido não deve permitir o "uso político" dessas denúncias.

- Se hoje temos o Ministério Público e a Polícia Federal investigando, isso foi por conta do nosso governo. Por isso, não vamos permitir que se faça uso político desse tipo de denúncia.

FONTE: O GLOBO

Revista: Mercadante autorizou dossiê aloprado

Ex-diretor do BB dis que petista foi mentor da compra de documentos contra José Serra na eleição de 2006

Petista Expedito Veloso quebra pacto de silêncio e revela quem foram os mentores e os arrecadadores do dinheiro que financiaria uma das maiores fraudes eleitorais da história brasileira

Em 2006, às vésperas do primeiro turno das eleições, a Polícia Federal prendeu em um hotel de São Paulo petistas carregando uma mala com 1,7 milhão de reais. O dinheiro seria usado para a compra de documentos falsos que ligariam o tucano José Serra, candidato ao governo paulista, a um esquema de fraudes no Ministério da Saúde.

O episódio ficou conhecido como escândalo do Dossiê dos Aloprados.

Nas investigações sobre o caso, a PF colheu 51 depoimentos, realizou 28 diligências, ordenou cinco prisões temporárias, quebrou o sigilo bancário e telefônico dos envolvidos, mas não chegou a lugar algum.

Reportagem de VEJA desta semana desvenda o mistério cinco anos depois. A revista teve acesso às gravações de conversas de um dos acusados do crime, o bancário Expedito Veloso, atual secretário adjunto de Desenvolvimento Econômico do Distrito Federal.

Procurado pela reportagem, Expedito confirmou o teor das conversas, ao mesmo tempo em que se mostrou surpreso com o fato de terem sido gravadas. "Era um desabafo dirigido a colegas do partido", disse.

VEJA demonstra que o mentor e principal beneficiário da farsa foi o ex-senador e atual ministro da Ciência e Tecnologia Aloizio Mercadante. Não é a primeira vez que o nome do ministro surge na investigação.

A PF chegou a indiciá-lo por considerar que era o único beneficiado pelo esquema. Mas a acusação acabou anulada por falta de provas. "Agora surgem elementos mais do que concretos para esclarecer de uma vez por todas a verdade sobre o caso", diz a reportagem.

Em seu "desabafo", Expedito conta que o ministro e o PT apostavam que a estratégia de envolver Serra num escândalo lhes garantiria os votos necessários para que Mercadante conquistasse o governo de São Paulo. Ele explica ainda que a compra do dossiê foi financiada por dinheiro do caixa dois da campanha petista e ainda, de maneira inusitada, pelo então candidato do PMDB ao governo paulista, Orestes Quércia.

“Os dois (Mercadante e Quércia) fizeram essa parceria, inclusive financeira”, revela o bancário. “Parte vinha do PT de São Paulo. A mais significativa que eu sei era do Quércia.” Tratava-se de um pacto. “Em caso de vitória do PT, ele (Quércia) ficaria com um naco do governo.” Procurado por VEJA, o ministro Mercadante não quis comentar o episódio.

VEJA mostra ainda que a investida dos aloprados contra Serra não foi a primeira. Esquema semelhante já havia sido testado anteriormente - dessa vez com sucesso - em Mato Grosso. E nem os próprios petistas a bruxaria poupou: quando candidata ao governo matogrossense, a atual senadora Serys Slhessarenko, do PT, foi abatida por um dossiê fabricado e divulgado pelos aloprados.

FONTE O GLOBO