sexta-feira, 18 de maio de 2018

José de Souza Martins: O 13 de Maio e nós

Eu &Fim de Semana | Valor Econômico

Nossa memória coletiva só acorda nos aniversários de números redondos. As outras datas são as do esquecimento. Neste ano, o 13 de maio nos lembra que a Lei Áurea foi assinada há 130 anos. Por ela, para alguns, teve fim a escravidão no Brasil; para outros, a data que merece respeito é a do aniversário da morte de Zumbi, senhor do quilombo de Palmares, em Alagoas. Zumbi deu sentido a um anseio de liberdade de alguns e para alguns, mas não de todos nem para todos. E tampouco a lei da princesa Isabel quis ir tão longe.

Os cem anos de resistência dos quilombolas palmarinos, no século XVII, não foram uma antecipação dos ideais de liberdade, que só teriam sentido na Revolução Francesa. Na prática, a lei de 13 de maio de 1888, se não libertou de fato e plenamente os brasileiros ainda sob sujeição, fossem eles negros ou pardos, africanos ou indígenas, tornou a escravidão ilegal. Abriu, data venia, uma larga brecha jurídica para um campo de luta pela liberdade que usamos mal e compreendemos pior.

Quando se fala em escravidão, a imagem que logo vem à cabeça de quase todos nós é a do negro preso ao tronco ou amarrado ao pelourinho recebendo as chibatadas de castigos desumanos. O que é verdade, mas não é a verdade inteira, pois o escravo era capital imobilizado em sua pessoa, não era tratado como animal para apanhar, mas animal a ser cuidado para trabalhar e dar lucro.

A escravidão foi uma realidade complexa que, sociológica e politicamente, escravizou tanto os escravos quanto seus senhores, como nos lembrou Joaquim Nabuco. As pessoas se socializam reciprocamente, quem é mandado e quem manda, quem apanha e quem bate. A escravidão brutalizou o negro, mas brutalizou, também, o seu senhor. Uma dificuldade para superar, de fato, as sequelas da escravidão após o 13 de Maio, não foi jurídica, foi social e psicológica. A lei dizia que o negro era livre, mas a personalidade e a consciência dos antigos senhores, pela escravidão aleijadas, não lhes permitiam compreender e reconhecer nas relações pessoais o que fora determinado no plano jurídico. Até hoje muitos ainda não sabem qual é a diferença entre ser juridicamente livre e ser socialmente subjugado.

Tudo se complica porque tivemos, pelo menos, duas escravidões: a do índio administrado, durante muito tempo chamado de pardo ou "negro da terra" (que são hoje a maioria do povo brasileiro, esquecidos, abandonados e humilhados), e a do negro africano ou de origem africana, chamado simplesmente de escravo ou negro (sem contar que temos ainda a terceira escravidão, a da peonagem, que inclui muitos brancos).

Cada um desses grupos étnicos tinha suas enormes diferenças culturais e linguísticas internas. Ambos também envolvidos na captura e venda de seus inimigos como escravos, tanto aqui quanto na África. A escravidão era uma instituição presente tanto nas diferentes sociedades africanas quanto em nossas diferentes sociedades indígenas. Nem sempre escravidão para o trabalho. Quando os europeus chegaram à África e descobriram a mina de ouro da escravização dos nativos, descobriram uma escravidão que já existia, há muito praticada pelos árabes com a cumplicidade dos próprios nativos, que, por meio dela davam curso aos seus conflitos intertribais. Com o índio aconteceu a mesma coisa.

Quando, designado pelo secretário-geral, me tornei membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da ONU contra as Formas Contemporâneas de Escravidão, em Genebra, à qual estive vinculado durante 12 anos, o primeiro caso que me tocou examinar foi o de uma denúncia de captura e escravização de pigmeus de Camarões pelos bantus do Sudão, a mesma nação de origem do nosso Zumbi dos Palmares. O último caso foi o de uma jovem do Níger, a quinta esposa de um muçulmano que, pelas regras de sua religião, só podia ter quatro esposas, sendo a quinta reconhecidamente escrava.

Há indícios muito fortes de um conformismo histórico, muito arraigado na estrutura de personalidade das vítimas do cativeiro, de superação difícil, que conspira todo o tempo contra os justos anseios de liberdade dos que a estimam e dela carecem, sejam negros, pardos ou brancos.

Sem Zumbi e sem Palmares e os muitos quilombos que houve em todo o Brasil, mesmo no território da cidade de São Paulo, nos séculos XVIII e XIX, atacados por dura repressão, a autoestima do negro e das vítimas da escravidão ficaria reduzida a melancólica e pouco verdadeira bondade do branco, ainda que haja, como tem havido, um número imenso de não negros que se sentem feridos por qualquer tipo de escravidão. Do mesmo modo, sem a Lei Áurea e a mediação das instituições, a liberdade advinda da resistência do negro não teria qualquer viabilidade.
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José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê Editorial).

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