quarta-feira, 23 de maio de 2018

Alberto Dines História de coragem e ética no jornalismo

Jornalista se destacou ao enfrentar censura e ao estimular e promover a crítica ao trabalho da imprensa

- O Globo

O jornalista, que enfrentou com coragem e criatividade a censura na ditadura militar, morreu em São Paulo. Ao longo de 63 anos, Alberto Dines teve uma das mais profícuas carreiras da imprensa brasileira, destacando-se principalmente pela coragem para driblar a censura na época da ditadura militar e, nas últimas décadas, pelo olhar crítico ao trabalho jornalístico. Profissional da “velha guarda” da imprensa, iniciou a carreira quando a televisão era incipiente no país e ainda se estava longe da criação da internet, mas soube como poucos fazer a própria transição para os meios eletrônicos.

O jornalista começou como crítico de cinema da revista “A Cena Muda”, em 1952, e também atuou na área de cultura na revista “Visão”. Passou à cobertura dos temas da política ainda no fim dos anos 1950, na revista “Manchete”. Passaria ainda pelos jornais “Última Hora”, “Diário da Noite” e “Tribuna da Imprensa”, e pela revista “Fatos e Fotos” antes de se tornar, em 1962, editor-chefe do “Jornal do Brasil”.

Permaneceu nesta função até 1973, período no qual foi responsável por edições que desafiaram a censura imposta pelo regime militar. Sua morte, ontem, ensejou a lembrança por amigos e admiradores de duas primeiras páginas do “Jornal do Brasil” que se tornaram exemplos até hoje citados em cursos de jornalismo. Em 14 de dezembro de 1968, dia seguinte à decretação do Ato Institucional Número 5, que endurecia a ditadura, uma pequena chamada no canto da primeira página se passava por informe meteorológico, e escapava da proibição de criticar o AI-5: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos”.

Cinco anos mais tarde, em 12 de setembro de 1973, quando um golpe de Estado depôs o presidente chileno Salvador Allende, os censores do regime brasileiro proibiram que os jornais publicassem como manchete os acontecimentos de Santiago. A solução bolada por Dines foi editar uma insólita primeira página sem manchete, apenas com o texto de uma reportagem dando informações sobre a crise no Chile e o suicídio de Allende dentro do Palacio de la Moneda.

DOS JORNAIS À INTERNET E À TV
Dines também foi importante na formação de cursos universitários de jornalismo. Foi professor na PUC-Rio entre 1963 e 1966, tendo ajudado a criar algumas cadeiras do curso. Nos anos 1970, criou na “Folha de S.Paulo” a coluna “Jornal dos jornais”, em que comentava o trabalho da imprensa. Foi um dos precursores na autocrítica e na crítica da atividade jornalística.

Ele sempre ressaltava a importância de os jornalistas debaterem o próprio trabalho, desde a faculdade. “A faculdade precisa dar História da Imprensa no currículo, para que se aprenda com os erros nas coberturas. Outra necessidade é discutir a imprensa na sala de aula. Se o jornalista não faz a crítica das coberturas, se não se discute o fazer jornalismo no dia a dia, este aluno não desenvolve sua matéria-prima, a informação”, argumentou, em entrevista ao “Jornal da Cidade” em 2015. “As pessoas têm de ser motivadas para saber o que está acontecendo no mundo. Para não serem carregadas para cá e para lá sem seu arbítrio”.

Nos anos 1990, responsável pelo laboratório de estudos em Jornalismo da Unicamp, criou o “Observatório da Imprensa”, que levaria para a internet em 1996 e para a televisão dois anos mais tarde. O programa, exibido pela TV Educativa do Rio (atual NBR), fazia uma análise crítica dos veículos de imprensa e dos temas da atualidade. Esteve no ar até 2016, período no qual recebeu presidentes da República, políticos, personalidades diversas e os principais jornalistas do país. “Você nunca mais vai ler jornal da mesma forma”, era o slogan do “Observatório”.

Dines também é autor da biografia “Morte no Paraíso — A Tragédia de Stefan Zweig" dedicada à memória do escritor austríaco e publicada pela primeira vez em 1981.

O jornalista Ricardo Kotscho, amigo próximo de Dines, destacou em seu blog que ele “passou a vida tentando melhorar a imprensa brasileira”. “Generoso e incansável na sua luta por qualidade e ética na prática deste ofício. (...) Era, acima de tudo, um grande sonhador, achava que o jornalismo poderia melhorar o mundo ao denunciar as suas mazelas e apontar caminhos para um convívio mais civilizado”, escreveu Kotscho.

O presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Daniel Bramatti, afirmou que “Dines promoveu, inspirou ou investigou em profundidade todas as transformações do jornalismo brasileiro. Uma rara referência tanto na teoria quanto na prática da nossa profissão”. Para a Associação Nacional de Jornais (ANJ), Dines “foi um mestre, que marcou época em um período em que o jornalismo era também um ato de resistência frente ao autoritarismo”.

Alberto Dines morreu ontem, aos 86 anos, mais de 60 deles dedicados à profissão. Depois de pegar uma gripe que evoluiu para pneumonia, ele estava internado há dez dias no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e não resistiu aos problemas respiratórios. Ele deixa a mulher, a jornalista Norma Couri, e quatro filhos.

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