domingo, 11 de março de 2018

Vinicius Torres Freire: A guerra de mentira de Trump, o bárbaro

- Folha de S. Paulo

'Guerra comercial' é exagero; conflito causaria dano mais terrível agora do que nos anos 1930

Tristeza não tem fim. Estupidez também não. Não se deve dar de barato o dano colateral que a tolice autodestrutiva de Donald Trump pode causar. Ainda assim, parece demais dizer que a barreira americana à importação de aço vá provocar guerra comercial.

Para começar, o que seria uma guerra comercial? O comentário clichê lembra o caso dos anos 1930, quando os EUA, então um país protecionista, elevaram ainda mais suas tarifas de importação, provocando retaliações e outros danos que ajudaram a aprofundar a Grande Depressão. Mas 2018 não é 1934.

O comércio nos anos 1930 equivalia a um décimo das transações dos anos 2010 (medido como porcentual do PIB do mundo). A economia jamais foi tão mundializada: o volume relativo de comércio é maior e, também, cada produto é mais globalizado.

Nos anos 1930, 60% do comércio do mundo era feito de matérias-primas, combustíveis e produtos agrícolas. O resto das transações era de manufaturas, porém mais simples e em geral montadas em um ou poucos países. Eram trocas entre setores diferentes de países com especialização diferente (indústria versus commodities).

Neste século, manufaturas são 80% das transações. Há muito comércio dentro do mesmo setor (indústria com indústria), produtos montados a partir de partes e materiais fabricados pelo mundo. As tais "cadeias globais de valor".

E daí? Um conflito extenso no comércio seria muito mais destrutivo que nos anos 1930, pois a produção é ora mais entrelaçada de modo transnacional. Essa ameaça tende a criar alianças multinacionais de interesses prejudicados, dentro dos EUA inclusive. Daí pode vir oposição política a demências adicionais de Trump.

Um exemplo rudimentar e pequeno de conexões produtivas afetadas por Trump é o caso dos aços semiacabados que o Brasil vende para a decrépita siderurgia dos EUA fazer produtos mais elaborados. Para fabricar aço, por sua vez, o Brasil compra carvão americano. Imagine-se então o estorvo que seria uma guerra comercial para produtos como aviões, máquinas, eletrônicos, química complexa etc., feitos de pedacinhos comprados pelo mundo.

Trump alcançou alguns objetivos, decerto.

Com mais uma atitude tresloucada e limitada, deu satisfação a eleitores, "cumpriu seu programa". Até agora, sua única iniciativa de impacto extenso foi arrebentar as contas públicas a fim de dar dinheiro para ricos, baixando impostos, o programa selvagem e pirata dos republicanos faz 40 anos.

Trump também deu um jeito de fazer chantagem e de continuar na sua ribalta de "bully" e cafajeste, embora não se saiba bem o que vá querer em troca. Os países prejudicados fazem um beija-mão discreto para se livrar da tarifa ou tentam evitar conflito maior e imediato, ameaçando no máximo ir à OMC, um tribunal quase tão ágil quanto a Justiça brasileira.

Sim, caso Trump consiga barganhas, pode continuar atentando contra a ordem política e econômica mundial que seu país ergueu, um império também regulatório que, mesmo liberal, montou a arquitetura sem a qual mercados se tornam moendas mortíferas demais. Trump ignora regras e nunca sai de graça. Mas guerra comercial parece um exagero retórico.

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