sexta-feira, 16 de março de 2018

MARIELLE PRESENTE

- O Globo

Multidão homenageia vereadora, e comoção toma conta do país

Nas ruas e nas redes sociais, a revolta contra o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes mobilizou o Brasil. A hashtag #MariellePresente dominou o Twitter, com 600 mil menções. Cerca de 50 mil pessoas no Rio e 30 mil em São Paulo participaram de protestos contra as mortes. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, veio à cidade e defendeu que a apuração do crime não fique apenas na esfera estadual.

Um crime, 46.502 votos, milhares de brasileiros

“Muita tristeza pelo assassinato de Marielle. Muita tristeza pela situação crítica em que chegamos e pela ineficácia do poder público”
Marisa Monte
Cantora

“Acreditava na força política dela. Mulher iluminada. Todos temos que estar na rua. A morte dela não pode ser em vão”
Igor AngelKort
Ator, que participou da manifestação

“A única certeza é a morte. Enquanto ela não vem, a gente tem que lutar por um mundo justo”
Silvia Mendonça
Ativista do Movimento Negro

Um dia antes, ela deixou no ar a frase que marcaria sua despedida da vida: “Quantos ainda vão ter que morrer?”. Cria da Maré, maior complexo de favelas do Rio, Marielle Franco passou as últimas décadas repetindo essa pergunta, que começou a fazer aos 19 anos, quando começou a militância política. Anteontem, os sonhos da ativista, mulher negra da favela, foram abatidos a tiros. A Marielle que inquiria, que cobrava as autoridades, virou a razão da pergunta. Milhares de pessoas foram ontem para as ruas do Rio e de São Paulo, Brasília, Salvador e Belo Horizonte exigir uma resposta para a execução da vereadora do PSOL, de 38 anos. Revolta, dor e a sensação de que chegamos a um limite intransponível tomaram conta de todo o país.

— Marielle, presente! — gritava a multidão que se reunia em frente à Câmara de Vereadores, onde o corpo de Marielle chegou, sob aplausos, por volta das 14h30m. A palavra de ordem era “Justiça! Justiça! Justiça!”.

Os gritos ecoaram forte no estado, avançaram pelo país e mobilizaram intelectuais e artistas. Insone, Caetano Veloso tocou “Estou triste”, de sua autoria, ainda na madrugada de ontem, nas redes sociais, para ela, Marielle. Jornais do mundo inteiro deram destaque para o caso, organizações de defesa de direitos humanos se mobilizaram, e a ONU pediu uma investigação “minuciosa e transparente” para as mortes da vereadora e de seu motorista, Anderson Pedro Gomes, de 39 anos. Marielle deixa uma filha de 20 anos e Anderson, um bebê.

Uma resposta rápida para o crime brutal também passou a ser um desafio para a intervenção federal, que assumiu a segurança do estado — a primeira vez que isso acontece no Brasil desde a Constituição de 1988. O assassinato é investigado pelas polícias fluminenses, pela Polícia Federal, pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e pelas Forças Armadas. Fundamentalmente, apurar a morte de Marielle virou uma questão de honra, uma questão de todos. O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, que esteve no Centro Integrado de Comando e Controle do Rio, foi categórico ao dizer que os responsáveis por tamanha brutalidade serão encontrados e punidos.

A investigação ganha assim status federal, embora esteja sob a responsabilidade da Polícia Civil do Rio. Para os que estudam os fenômenos que afetam a segurança, o assassinato da vereadora Marielle Franco, ao se transformar numa causa coletiva, aumenta o peso da responsabilidade do general Walter Braga Netto, dando voz aos que, desde o início, são contrários à intervenção no estado ou validando-a, o que vai depender dos resultados da investigação.

Por seus sonhos, suas atitudes e sua origem, Marielle — quinta vereadora mais votada na cidade — é símbolo de importantes bandeiras e demandas sociais. No ano passado, mais de seis mil pessoas foram assassinadas no estado, e a maioria das vítimas era negra e pobre. Um passivo grande, tensionado e acumulado ao longo de anos, que só precisava da gota d’água para extravasar. As imagens da Avenida Rio Branco, com 50 mil pessoas, e da Avenida Paulista, com 30 mil, segundo os organizadores, falam por si. O que elas querem dizer é que mataram Marielle, mas não os 46.502 votos que recebeu em 2016, muito menos a vontade de cariocas que se juntaram e se levantaram, indignados, contra a barbárie que nos ameaça e apequena o Rio.

Comoção nas ruas do Rio e de todo o país

Milhares de pessoas se despedem de vereadora e motorista e participam de protestos pelas duas mortes

“O Estado deve garantir uma investigação imediata e rigorosa do assassinato da vereadora Marielle Franco” Anistia Internacional Organização não-governamenta

“Ficamos chocados com essa notícia. Nesses momentos a sociedade sofre muito, mas não se cala, nem há de se calar” Ministro Luiz Fux Presidente do Tribunal Superior Eleitoral 

“É inaceitável, inadmissível, como os demais assassinatos que ocorreram no Rio. É um atentado ao estado de direito e à democracia” Michel Temer Presidente da República

A mobilização começou pouco depois da morte de Marielle Franco, na noite de quarta-feira. Após se reunirem no local do assassinato, dezenas de amigos da vereadora e militantes dos movimentos negro e de mulheres seguiram, ainda em choque, para o Centro do Rio, prometendo virar a noite em vigília. A indignação, visível no rosto de cada um, explodiu na manhã de ontem, quando milhares de pessoas, muitas vestidas de preto, começaram a chegar à Cinelândia para acompanhar o velório, na Câmara Municipal, de Marielle e de Anderson Pedro Gomes, que dirigia o carro da parlamentar e também foi assassinado a tiros. Protestos tomaram também várias cidades do país e até mesmo o Parlamento Europeu. Na Câmara dos Deputados, em Brasília, parlamentares, com girassóis na mão, fizeram um ato pelas vítimas.

A comoção foi ainda mais forte no Rio, onde Marielle nasceu, cresceu e virou voz de mulheres negras e faveladas. Quando os corpos chegaram à Câmara, em caixões fechados, carregados por amigos, entre eles o deputado Marcelo Freixo, padrinho político de Marielle, a multidão aplaudiu. Não houve um minuto de silêncio. Os manifestantes preferiram entoar palavras de protesto: “quem mexeu com a Marielle atiçou o formigueiro” e “Marielle, presente!”.

— As balas atingiram a todos nós. E todos morremos, todos os que lutam, todos os que sonham, todos os pretos morremos. Mas todos ressuscitaremos na luta — disse padre Geraldo, da Paróquia de Manguinhos, após entoar o “Grito dos Aflitos”.

Durante o velório, fechado ao público, a multidão não se dispersou. Assistiu à saída dos caixões para os sepultamentos. O de Marielle foi realizado no Cemitério São Francisco Xavier, no Caju. O de Anderson, no Cemitério de Inhaúma. Depois dos enterros, a mobilização carioca não parou. Cartazes com o rosto de Marielle e frases ditas pela vereadora foram espalhados por ruas do Centro da cidade, com tinta vermelha por cima, simbolizando sangue. No final da tarde, um ato, que partiu da Assembleia Legislativa, arrastou milhares de manifestantes em direção à Cinelândia. Cinquenta mil, de acordo com os organizadores. Entre os manifestantes, Zulmira Batista, de 70 anos. Ela estava no restaurante Calabouço, em 1968, quando o estudante Edson Luís foi assassinado:

— Estou aqui para prestar solidariedade à vereadora. Ela era muito guerreira, e nós temos que mostrar que estamos descontentes — afirmou.

Em São Paulo, também no fim da tarde, cerca de 30 mil pessoas tomaram a Avenida Paulista, na altura do Museu de Artes de São Paulo (Masp). Bandeiras do PSOL, partido de Marielle, se misturavam a cartazes de coletivos feministas e do movimento negro. Em Rio Branco, Belém, Teresina, Natal, Recife, Brasília, Salvador e Belo Horizonte, grupos também empunharam cartazes com os dizeres “Marielle Presente!”.

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