quinta-feira, 19 de outubro de 2017

A malaise política no Brasil: causas reais e imaginárias | Marcus André Melo

- Journal of Democracy em Português, outubro, 2017.

Há duas narrativas rivais sobre o futuro da democracia brasileira. A primeira enxerga na crise atual a falência do modelo constitucional pós-1988. Esse diagnóstico hiper-institucionalista aponta para a necessidade de uma reforma ampla das instituições – incluindo mudanças no sistema de governo (presidencialismo) e nas regras eleitorais – como a terapia para a resolução de patologias e disfuncionalidades do atual modelo. A narrativa rival que é desenvolvida neste texto entende a crise atual como engendrada fundamentalmente por uma conjunção de eventos raros – choques econômicos e políticos. Nesta visão, a forma pela qual a atual crise se manifesta se deve ao fortalecimento das instituições políticas – não só das instituições de controle lato sensu – e não de sua falência.

Essa visão alternativa também reconhece e identifica patologias no modelo constitucional que estão na base da malaise institucional recente. Mas não lhes confere centralidade na explicação da crise. Essa perspectiva também se distingue de outras pelo otimismo – mitigado, decerto – , em relação ao futuro da democracia no país. Mais otimista porque enfatiza o aprendizado social como ingrediente essencial da mudança institucional. A malaise na democracia brasileira é ela própria produto do processo de mudança que o país vive. O enorme cinismo e desconfiança atual em relação às instituições representativas do país ancoram-se em parte na efetividade de controles democráticos até então inexistentes. O desencantamento público em relação à democracia parece ser parte da mudança e talvez seja até pré-condição para sua efetividade. Como afirma Rosanvallon, a confiança é faca de dois gumes: a desconfiança em relação aos ocupantes do poder é essencial para a vida democrática.1

Os desdobramentos do impeachment presidencial e, de forma ampla, da Operação Lava Jato não podem ser analisados sem o pano de fundo da mudança institucional mais estrutural ocorrida desde 1988. Diagnósticos que desconsideram o processo institucional de longo prazo levam a becos sem saída empíricos e teóricos. Privilegiam o acessório e não o essencial. Esse é o caso de leituras hiper-institucionalistas que atribuem a falhas das instituições políticas – ao presidencialismo de coalizão, especificamente – as causas da crise recente. O debate sobre se as “instituições estão funcionando” – em uma chave binária – é parte do mesmo equívoco interpretativo.

O pano de fundo da crise é dado por quase duas décadas marcadas por estabilidade institucional, equilíbrio macroeconômico e crescente inclusão social. E também por alternância de poder entre os principais contendores da disputa política em contexto de baixa polarização. Além de forte continuidade na política macroeconômica e social. As diferenças – mais de intensidade do que substantivas – localizam-se, nesse pano de fundo, em uma banda ‘normal’ de baixa variância entre posições no continuum ideológico, fenômeno que caracteriza historicamente democracias consolidadas em seu modo default de funcionamento. Ingrediente essencial e parcialmente opaco para muito observadores da mudança institucional estrutural é o lento e incremental robustecimento das instituições de controle, lato sensu, nas duas últimas décadas. O robustecimento dessas instituições aparece para a sociedade apenas na forma de escândalos. 2 É muito cedo para acreditar que o Brasil estaria escapando da armadilha do equilíbrio inferior – da corrupção sistêmica – e transitando para um “equilíbrio superior”, caracterizado pelo respeito à lei.3 Mas a conjectura deixou de ser considerada uma impossibilidade.

Exemplo de governança institucional que combinava inclusão e responsabilidade fiscal, o Brasil foi apontado por instituições internacionais como um role model para democracias emergentes. Para utilizar a linguagem de Castañeda, como modelo de esquerda responsável.4 A forte turbulência recente – a instabilidade que se inicia em 2013 e teve como desenlace o afastamento da Presidente Dilma Rousseff em maio de 2016 – e a marcada deterioração da economia brasileira – a maior em um século – exigem portanto uma explicação.

A crise política brasileira se inscreve no processo mais geral de tensões crescentes geradas pelo embate entre ganhadores e perdedores da globalização. Mas aqui o efeito foi distinto: a globalização e a ascensão da China provocaram entre nós um boom de commodities que teve efeitos brutais sobre o sistema político, uma vez que permitiram a adoção do redistributivismo e do populismo macroeconômico e criaram incentivos para a “bolha política” que se seguiu. A crise atual corresponde ao estouro dessa bolha.

O duplo choque
A débâcle econômica foi efetivamente produzida por uma conjunção inédita de dois choques – fundamentalmente exógenos – que solaparam o equilíbrio anterior alterando radicalmente a estrutura de incentivos dos atores econômicos e políticos. Esse equilíbrio estava baseado em crenças compartilhadas em favor de políticas de inclusão social com sustentação fiscal, que se consolidaram ao longo do período 1995-2006. Era esta, nos termos de Alston et al (2016), a dominant network. O primeiro choque a solapar esse equilíbrio se deu com a combinação de super-ciclo de boom de commodities e a descoberta do pré-sal no país. Como grande produtor de commodities, o país foi grande beneficiário do boom gerado pela expansão da China. Mas a descoberta do pré-sal magnificou seu impacto, levando ao lançamento de ações da Petrobrás na Bolsa de Valores de Nova York, o maior evento desse tipo na história. Os desdobramentos são bem conhecidos: inédito e vastíssimo programa de investimentos em petróleo e gás, em ambiente marcado por extensa politização e corrupção.

O segundo choque resultou da crise de 2008 nos EUA, que produziu o despertar do Leviatã, nas palavras da The Economist – com massiva intervenção dos bancos centrais nos mercados e assunção pelos Estados nacionais, em particular nos Estados Unidos, do controle acionário de centenas de empresas. No Brasil, o que foi temporário no neokeynesianismo americano tornou-se permanente. A coalizão de setores burocráticos e interesses empresariais que davam sustentação à reorientação da política governamental desloca a aliança que sustentara o equilíbrio anterior no interior da dominant network.5 O resultado foi um expansionismo fiscal inédito, consistente com um quadro clássico de natural resource curse, maldição dos recursos naturais, cujo caso mais dramático se deu no Rio de Janeiro.

A excepcionalidade da hecatombe econômica recente deve-se aos impactos fiscais do volume expressivo de desonerações e subsídios em processo protagonizado pelo BNDES e Petrobrás. Uma janela de oportunidade extraordinária – as Olimpíadas e a Copa do Mundo – criaram condições ótimas para a expansão fiscal acelerada, potencializando problemas estruturais da economia brasileira.

A crise brasileira é assim um cisne negro – a conjugação de dois eventos raros: uma crise econômica de grande envergadura e um escândalo de corrupção de proporções ciclópicas.

Iniciada em abril de 2014, a Operação Lava Jato levou à exposição pornográfica da corrupção sem paralelo em democracias pela sua magnitude e amplitude. As consequências eram previsíveis. Os efeitos políticos de escândalos de corrupção são conhecidos: é necessário que um limiar informacional seja alcançado e que a informação seja crível para que os escândalos adquiram robustez. No caso da Lava Jato, o tsunami informacional foi efetivo no curto prazo por sua intensidade e credibilidade, potencializando o efeito do estelionato eleitoral praticado com a reeleição da presidente Dilma.

Crise econômica e escândalo mantêm forte interação, potencializando seus efeitos.6 O impacto sobre a popularidade presidencial foi colossal: depois de reduzir-se à metade após as jornadas de junho 2013 e recuperar-se ao longo de 2014, a popularidade de Dilma declinou monotonicamente até atingir um dígito em março de 2015. O resultado foi um enfraquecimento inédito do Poder Executivo, mobilização de ruas e esfacelamento da base de sustentação parlamentar do governo, para o que concorreram adicionalmente outros fatores também examinados neste texto.

Leituras hiper-institucionalistas ignoram o cisne negro (a excepcionalidade da crise), e fazem tábula rasa da estabilidade institucional que lhe antecedeu. Ao proceder dessa maneira, atribuem a derrocada econômica e política a falhas intrínsecas às instituições políticas existentes. E mais: ignoram o papel que essas mesmas instituições tiveram em criar as condições estruturais para que o processo subsequente, que culminou no jogo do impeachment, se desse sem ruptura da ordem institucional. Reconhecer essas condições – de fragilização inédita do Executivo e de autonomização das instituições de controle lato sensu – não implica ignorar a dimensão estratégica do jogo do impeachment. Pelo contrário: não há nada nas condições estruturais que produziriam inexoravelmente o desfecho ocorrido.

Visto da perspectiva do cisne negro, o impeachment presidencial não se deveu a uma trivialização dessa “arma pesada e de difícil manuseio” do “museu de antiguidades constitucionais”. 7 Nem tampouco representou uma canônica crise Linziana8. Afinal a presidente Dilma não implementou uma agenda unilateral, nem produziu crise constitucional ao confrontar decisões judiciais ou legislativas, como nos casos clássicos descritos por Juan Linz. Nem muito menos representou um problema de legitimidade dual – em que, como assinala Linz, presidente e Legislativo a invocam para si em confronto com o outro – frequentemente deflagrando a intervenção de terceiros atores. Na verdade, quando Dilma Rousseff perdeu o apoio da base parlamentar, instaurou-se a coabitação entre um ersatz (imitação) de primeiro-ministro (Eduardo Cunha) apoiado pelo Parlamento e uma chefe do Executivo à deriva. Produziu-se mais propriamente a semipresidencialização de nosso sistema do que uma crise presidencialista. E mais: a chefe do Executivo resignou-se à arbitragem da Corte Suprema e às escolhas do Congresso. A presidente acatou as decisões da corte constitucional (o STF) que agiu provocada pelos participantes do jogo – inclusive por ela própria – assim como se resignou ao próprio juízo expresso pelo Senado, que a afastou definitivamente do cargo.

O impeachment constituiu-se no desenlace da interação estratégica entre o presidente da Câmara dos Deputados e a presidente da República em um contexto excepcional: uma presidente constitucionalmente forte que se encontrava excepcionalmente vulnerável devido ao efeito combinado da crise econômica e da Lava Jato.

A narrativa alternativa que melhor explica o jogo do impeachment privilegia os fatores que produziram um choque exógeno no equilíbrio que mantinha de pé o jogo do não enfrentamento. É importante assinalar que, se o cisne negro engendrou as condições estruturais para o impeachment, não havia nada de inexorável em seu desenlace. Ou seja, o impeachment não resultou de uma falha constitutiva do presidencialismo de coalizão brasileiro. O impedimento foi produzido por uma interação estratégica entre os atores, sob condições extraordinárias. A bomba atômica não era para ser usada: era só arma dissuasória – para atores como o PSDB – ou de extração de rendas – para o PMDB – em típica lógica hospedeiro- parasita. Mas a barganha não prosperou, entre outras razões, pela incapacidade do Executivo em oferecer promessas críveis de que podia conter a Lava Jato.

O enfraquecimento inédito do governo se alimentou da queda vertiginosa da popularidade presidencial, que foi à lona por várias razões: o tsunami informacional da Lava Jato, que catapulta a corrupção à preocupação central dos brasileiros; a desaceleração espantosa da economia; o encolhimento da bancada do PT para meros 13% da Câmara; o estelionato eleitoral (o assombroso policy switch ocorrido entre o que Dilma pregou na campanha e o que adotou ao se iniciar o seu segundo mandato); os custos sociais brutais decorrentes do ajuste fiscal. E sobretudo da estratégia mal sucedida do Executivo de confrontar e solapar o principal parceiro da coalizão – o PMDB –, estimulando a criação de novos partidos de centro e de direita. E mais o confronto, seguido de derrota, no embate para a eleição à presidência da Câmara dos Deputados, vencida por Eduardo Cunha.

O afastamento da presidente Dilma pela Câmara em maio de 2016, deu lugar a um governo (sob presidência de Michel Temer) que enfrentou o mesmo dilema em relação à Lava Jato: a impossibilidade de oferecer um compromisso crível de que poderia controlá-la. Mas a estrutura de incentivos se tornou inteiramente distinta. A ameaça que a Lava Jato representa promove agora a coesão da base aliada: a estratégia dominante é apoiar o governo. O sucesso do governo é a tábua de salvação da base parlamentar. O quadro é de ilegitimidade dual – ambos poderes têm agudo déficit de legitimidade em virtude de amplo envolvimento em ilícitos.

O impeachment não reflete assim a falência do sistema constitucional, mas o contrário. Como discutido a seguir, o episódio revela dois desenvolvimentos fundamentais: pela primeira vez na história, o STF emerge como árbitro do conflito constitucional e as instituições de controle lato sensu assumem grande protagonismo no processo institucional.

O presidencialismo de coalizão e suas patologias reais e imaginárias
Afirmar que a crise atual representa o esgotamento do presidencialismo de coalizão é um truísmo. Examinado com cuidado, esse argumento é apenas retórico. Presidencialismo de coalizão tornou-se sinônimo de arranjo institucional brasileiro e semanticamente o conceito alargou-se desmesuradamente. A rigor, dois terços das atuais democracias são presidencialistas ou semi-presidencialistas e são tipicamente governadas por coalizões multipartidárias. Desde o início da chamada terceira onda da democracia, os países democráticos foram governados por coalizões durante mais da metade do tempo (52% no período 1974-2013). 9 Entre os países com regime parlamentarista, a proporção de tempo de predomínio de governos de coalizão eleva-se a
80%. Assim governo de coalizão é a forma modal na democracia contemporânea, e o presidencialismo de coalizão está longe de constituir-se em especificidade brasileira.

A rigor, as democracias presidencialistas, em sua vasta maioria, adotam a representação proporcional e também esse arranjo – são governos multipartidários de coalizão com presidentes diretamente eleitos. Escrevendo em 1949, no entanto, Afonso Arinos apontou corretamente a excepcionalidade brasileira (naquele momento de fato uma excepcionalidade). Afinal, o Brasil foi um dos pioneiros na adoção do presidencialismo de coalizão que chamou, em texto clássico de 1949, de “presidencialismo de transação”:

“As relações do presidente com o Congresso tem de ser na base da coligação, porque nós praticamos um sistema talvez único no mundo: o presidencialismo com representação proporcional, de onde emergiram partidos fortes. É uma experiência nossa, que temos de resolver com nossos próprios elementos”. 10

O novo arranjo, continua Arinos, é o produto do que chamou de “única verdadeira revolução política operada no Brasil: a revolução eleitoral com a instituição dos partidos nacionais, do voto secreto, da representação proporcional e da Justiça Eleitoral”.11 O impacto no sistema político dessa inovação foi estrutural: “Com a revolução eleitoral, as relações do presidente da República com os governadores e com o Congresso tiveram que se estabelecer em forma absolutamente distinta das conhecidas na Primeira República, em bases de coligação partidária”.12 O nosso presidencialismo sofre assim grande transformação: “O presidente da República passou a se aproximar mais dos chefes de estado do parlamentarismo europeu do que do presidente dos EUA”. 13

O presidencialismo imperial da República Velha estava morto. “Com a Constituição transacional de 1946, os partidos nacionais, a representação proporcional, os ministros congressistas, e sua responsabilidade conjunta com a do presidente, fizeram do nosso presidencialismo algo de muito diferente do que conhecemos daquele presidencialismo morto em 30”.14 Assim a democracia de massas no país foi inaugurada sob a égide desse arranjo institucional.

Com a redemocratização (que trouxe o fim do bipartidarismo imposto pelo regime militar), o mesmo arranjo institucional ressurgiu dando lugar a um multipartidarismo exuberante, como notou de forma pioneira Sérgio Abranches15 em instigante análise comparativa, já com o aparato conceitual da ciência política contemporânea. Escrevendo em 1988, Abranches argumentava que “não existe, nas liberais-democracias mais estáveis, um só exemplo de associação entre representação proporcional, multipartidarismo e presidencialismo”.16 E concluía: “o Brasil é o único país que, além de combinar a proporcionalidade, o multipartidarismo, e o “presidencialismo imperial”, organiza o Executivo com base em grandes coalizões”. De fato naquela conjuntura ainda cabia a referência à singularidade brasileira.

A crítica do autor dirigia-se àqueles que enxergavam no sistema partidário e na representação proporcional as raízes dos nossos males. O dilema institucional do presidencialismo de coalizão em sua visão referia-se à inexistência de uma instância de arbitragem dos conflitos entre o Executivo e o Legislativo, uma vez que crises na coalizão levam a um “conflito indirimível” entre os dois polos fundamentais da democracia presidencialista: “Nos Estados Unidos, a Suprema Corte tem poderes que lhe permitem intervir nos conflitos constitucionais entre Executivo e Legislativo. No Brasil da República de 1946 e no Brasil pré-constituinte da Nova República, precisamente os casos mais claros de presidencialismo de coalizão, este mecanismo inexiste”. No que evoca a conclusão de Arinos em 1958: “Nunca o Supremo Tribunal Federal pôde exercer a sua missão específica de árbitro da legalidade, contendo os excessos do Executivo”. 17

Essa lacuna, como já assinalado, passou a ser preenchida pelo STF, que se tornou o protagonista a partir de delegação expressa da Carta de 1988, em um contexto de competição política que a viabilizou.

As virtudes do presidencialismo de coalizão como arranjo institucional permanecem as mesmas no período pós-constituinte. Se o objetivo principal perseguido pelos defensores da representação proporcional era quebrar a hiper-dominância histórica do Poder Executivo – o chamado “poder pessoal” do presidente, que antes fora do imperador – e fortalecer o Poder Legislativo, o objetivo foi amplamente atingido. Foi sob esse arranjo, após 1988, que os desafios históricos de consolidação da democracia, inclusão social e estabilidade macroeconômica foram superados.

O multipartidarismo é um dos ingredientes centrais do que Lijphart chamou desenho constitucional consociativo ou consensual, que se distingue dos sistemas majoritários por características propícias à difusão da autoridade política. Entre essas características estão: governos de coalizão, equilíbrio nas relações Executivo-Legislativo, federalismo, Constituições rígidas, controle da constitucionalidade das leis, bicameralismo etc. Na nova democracia brasileira o consocialismo se expressa em pluralismo, inclusividade e mecanismos institucionais de power sharing (compartilhamento do poder) para a resolução de conflitos.

Mas todo desenho institucional contém trade offs. Governos multipartidários – e de forma ampla as democracias de consenso ou proporcionalistas – trazem benefícios mas, junto com eles, acarretam perdas. No Brasil, estas se tornaram proibitivamente elevadas. Tais perdas ou patologias já foram amplamente discutidas na literatura.18 No Brasil adquiriram forte intensidade no período recente em virtude de mudanças ocorridas no funcionamento do sistema. Essas mudanças decorreram do duplo choque da crise econômica e do Petrolão. Decorrem também de outros fatores: novos padrões de gerenciamento de coalizões (caracterizados, no governo Dilma, por menos power sharing do que nos governos anteriores) e mudanças legais e judiciais que levaram a uma acelerada hiperfragmentação partidária.

A existência de mega distritos é a principal causa da hiperfragmentação. No Brasil os três maiores partidos (PMDB, PT, e PSDB) juntos detêm 32,3% das cadeiras da Câmara. Nosso escore no ENPP alcança 13,4 – a mais elevada já registrada na história das democracias (com a exceção da Rússia sob Iéltsin). Em segundo lugar, as regras excessivamente generosas e permissivas de acesso ao fundo partidário, além de sua própria magnitude. Em terceiro lugar, o acesso a um recurso escasso e valioso: horário eleitoral gratuito, mercadoria em barganha durante a formação de coalizões eleitorais. Em quarto lugar, a legislação permissiva quanto às coligações em eleições proporcionais, que viabiliza a barganha em torno de tempo de TV. Em quinto, o segundo turno em eleições majoritárias, sobretudo para governador. Finalmente, decisões judiciais do STF incentivaram a criação de partidos – como, por exemplo, a que autorizou a migração partidária para partidos novos ou proibiu cláusulas de barreira. Governos do PT também tiveram papel relevante na última década ao patrocinar ativamente a criação de partidos para reduzir a PMDB – dependência

As coalizões implicam em trade offs entre accountability e representatividade. Se por um lado permitem ganhos de representatividade – pela incorporação de forças políticas adicionais ao governo –, por outro produzem déficit de accountability. Tais ganhos não são lineares e podem se tornar negativos caso as coalizões sejam superdimensionadas e com elevada heterogeneidade política. A história da última década no país fornece exemplos paradigmáticos destes problemas.

A hiperfragmentação do sistema partidário sob os governos do PT e práticas agressivas de formação de coalizões superdimensionadas e com fortíssima heterogeneidade ideológica produziram um quadro de cinismo cívico generalizado. A malaise institucional que levou às manifestações de 2013 – portanto antes que a crise recente tivesse se instalado – já prenunciava esse quadro. A prática de ampla cooptação de forças políticas levou a alianças de baixa inteligibilidade para setores importantes do eleitorado – o acordo com Paulo Maluf nas eleições municipais de 2012 é exemplar a esse respeito. Na formação de gabinetes sob os governos do PT, as práticas de montagem de amplas coalizões – que envolveram partidos de direita e extrema direita como o PSC, PR e PP – e a busca pela redução da PMDB-dependência através do patrocínio da criação de novos partidos de centro provocaram impactos importantes sobre a legitimidade democrática dos governos.

A diluição do valor do party brand é a mais importante das consequências dessas práticas. Como assinalou Lupu, 19 práticas inconsistentes com a identidade programática de partidos – como alianças com rivais programáticos ou adoção de suas políticas macroeconômicas – é a principal causa da débâcle de partidos importantes na América Latina. A “virada” de políticas (policy switch) da presidente Dilma em seu segundo mandato só veio reforçar o desgaste produzido pela política de aliança perseguida desde o segundo mandato do presidente Lula. Finalmente a eclosão de dois escândalos de corrupção de grande magnitude sob governos do PT erodiram a bandeira ética que marcou seu party brand. Muitos analistas atribuíram estes fenômenos unilateralmente ao presidencialismo de coalizão, que se tornou assim equivocadamente entendido como sinônimo das patologias que afetam o sistema político.

Registre-se também que desenhos consociativos tipicamente sofrem de problemas de clareza de responsabilidade e de baixa identificabilidade. 20 Os defensores de desenhos constitucionais majoritários entendem que a clareza de responsabilidade é a principal virtude desses arranjos. Maior clareza de responsabilidade significa maior capacidade para punir e premiar por parte dos eleitores. Governos de coalizão são associados a problemas de blame shifting por que a responsabilidade por maus resultados pode ser atribuída a outros membros da coalizão. A responsabilidade difusa estimularia assim a corrupção e também impediria seu combate.

A identificabilidade de governos também fica prejudicada porque o nexo entre voto e governo se torna tortuoso em governos de coalizão. A escolha do eleitor deixa de ter repercussões diretas em termos de quem irá governar ou que programa será implementado porque as promessas
de campanhas têm que ser acomodadas em coalizões formadas após as eleições, num processo de barganhas interpartidárias feitas à revelia do eleitor.21 A expressão corrente “não se sabe quem irá ganhar as eleições, mas sabemos que Romero Jucá será o líder do governo”, amplamente repetida, aponta para a inexistência de nexo entre as escolhas dos eleitores e a formação dos governos. A constatação de que o voto não tem consequências é o fundamento último da malaise institucional. Coalizões no nível subnacional com oligarquias políticas frontalmente incongruentes com as identidades programáticas – Sarney, Renan Calheiros e Helder Barbalho - produzem o mesmo resultado.

O gerenciamento de coalizões também pode implicar em custos de transação crescentes, com perda sistêmica de eficiência administrativa. Trata-se das chamadas “perdas de agência” (agency losses) na delegação administrativa. Delegar implica criar assimetrias de informação entre quem tem a autoridade delegada (o presidente e o núcleo duro do governo) e quem a recebe (os membros da coalizão nomeados para ministérios, empresas públicas etc.). Essas “perdas de agência” tendem a ser tanto maiores quanto maior a distância ideológica entre o presidente e o núcleo duro do governo e os demais membros da coalizão. Se os ministérios são concedidos a estes últimos “de porteira
fechada” – em quadro de corrução sistêmica – as perdas podem ser exponenciais.

Por outro lado, desenhos consociativos podem produzir estabilidade de decisões coletivas e baixa volatilidade nas políticas públicas. E maior legitimidade nas decisões públicas. A questão de base são as condições sob as quais os malefícios passam a ser maiores que os benefícios de desenhos consociativos. Essas condições não são necessariamente típicas do presidencialismo de coalizão, mas das distorções no seu funcionamento, que abundaram na última década no Brasil, conforme apontado anteriormente.

Essas patologias agudizaram-se sob dois governos com presidentes extremamente vulneráveis – Dilma e Temer. Este, um governo caretaker – que exerce um mandato tampão – , é também marcado por escândalos de enorme gravidade. Isto tem levado ao diagnóstico equivocado de que há um problema sistêmico no presidencialismo de coalizão e estimulado propostas maximalistas de terapia institucional envolvendo mudança do sistema de governo (adoção do parlamentarismo ou de um sistema semipresidencialista) e/ou abandono da representação proporcional (com a adoção do voto distrital ou do chamado distritão).

Sob Temer o problema da identificabilidade assumiu proporções inéditas – o ocupante da presidência é apenas a solução constitucional para a crise do impeachment, não tem mandato popular claramente definido. O problema mudou assim de natureza e se tornou crítico na medida que as evidências de envolvimento de membros do alto escalão do governo com a corrupção se acumulam. No entanto, os problemas de clareza de responsabilidade se reduzem devido ao caráter congressual de seu governo. Este é apoiado por uma coalizão amplamente majoritária, de baixa heterogeneidade ideológica e fortemente coesa, entre outras razões pelo temor da Lava Jato e pela gestão proporcionalista da coalizão, na qual os parceiros assumem posições no ministério consistentes com sua força legislativa. Malgrada a hiperfragmentação do Congresso, essas características têm permitido ao governo Temer implementar uma agenda legislativa ambiciosa. Este dado por si só sugere que as abordagens hiper institucionalistas não dão conta de explicar a crise: a fragmentação não obstaculizou a aprovação de reformas que muitos analistas assumiam como impossíveis, como a trabalhista e a PEC do Teto de Gastos.

Finalmente uma das patologias do presidencialismo de coalizão que se exacerbaram no período recente é o enfraquecimento do controle parlamentar sobre o Executivo. A prática de coalizões de governo cria uma estrutura de incentivos que milita contra a prática de fiscalizações
e monitoramento do Executivo. E engendra mecanismos de proteção dos governos por parte de maiorias parlamentares – que é universal e não se restringe ao Brasil. Como discutido a seguir, a
principal razão para a inefetividade do controle parlamentar decorre da proeminência do Poder Executivo no sistema político. Este, com a Constituição de 1988, passou a contar com dispositivos que lhe garantem o controle da agenda parlamentar. A inefetividade do controle causa mal-estar na democracia.

O choque do boom de commodities e a bonança fiscal impactaram o processo de formação de maiorias parlamentares de forma significativa: o preço relativo do apoio de quaisquer partido ou facção parlamentar se reduziu. Apoios podiam ser comprados a baixo custo porque os benefícios de aderir ao governo aumentaram exponencialmente.

Nesse quadro, as instituições de controle lato sensu – Judiciário, Ministério Público, contramajoritárias por definição – encontraram condições ótimas para se desenvolver. Como discutido a seguir, o enfraquecimento do controle parlamentar – através de CPIs dentre outras modalidades – cria incentivos para o fortalecimento daquelas instituições. Que se tornam a última linha de defesa contra o abuso de poder. O resultado do enfraquecimento do controle parlamentar é semelhante ao produzido por coalizões heterogêneas e superdimensionadas: o cinismo cívico.

Por que as instituições de controle se fortaleceram? “Coleira curta para cachorro grande”
O fortalecimento das instituições de controle inscreve-se no processo de mudança institucional estrutural em curso no país desde a década de 90. Não se restringe, portanto, aos últimos governos, em que pese o fato de que as manifestações mais explícitas de autonomia e independência dessas instituições tenham surgido no período recente, e em certas narrativas são tidas, equivocadamente, como a causa da própria crise. A Lava Jato representa a parte visível e mais impactante de mudança estrutural ocorrida na democracia brasileira nas ultimas décadas. No limite, ela representa um choque no equilíbrio de baixa qualidade da corrupção sistêmica (mudança descontínua ou big bang).

É necessário estabelecer uma distinção entre o movimento de delegação de significativa autoridade a tais instituições, cujo ‘momento constitucional’ foi a Constituinte de 1988, e as condições estruturais de sua efetivação. Foi a competição política, de um lado, e a formação
de crenças e expectativas ancorando o trabalho dessas instituições, de outro, que viabilizaram o seu efetivo fortalecimento.

O dilema enfrentado pelos deputados constituintes em 1987-88 consistiu fundamentalmente em conciliar o fortalecimento simultâneo do Poder Executivo e das instituições de controle. A primeira dessas tarefas foi produto de uma agenda forjada, na década de 50, em resposta à crise de 1954, que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas. No diagnóstico que juristas e parlamentares fizeram à época, aquela crise representou a derrocada de um presidente constitucionalmente fraco. Era, portanto, fundamental fortalecer o Poder Executivo. Arinos apontou em refinada análise que a fortaleza de Vargas – assentada em seu poder pessoal – obscurecia a fraqueza do Poder Executivo.

Os debates travados na década de 1950 ecoavam discussões ocorridas em regimes parlamentares, em torno dos problemas de instabilidade governamental e da necessidade de um Executivo forte para superá-la. Na França, a discussão resultou na reforma constitucional de De Gaulle, que inaugurou a V República em 1958. A Constituição de 1946 introduzira dispositivos – em particular o artigo 36 que proibia a delegação de poder legislativo ao Executivo – voltados para controlar o poder despótico do presidente. Mas nos debates entre os constitucionalistas e a elite parlamentar insistia-se numa nova separação de poderes, que já ocorrera nos EUA22 e em outros países da Europa, em reconhecimento à nova realidade do Estado moderno: um Estado com mandato ampliado para intervenção na esfera econômica e social, o que exigia capacidade de resposta mais rápida e eficiente do Executivo.

O fortalecimento do Executivo foi amplamente reclamado pela comissão de reforma constitucional criada pelo ministro Nereu Ramos em 1956. 23 Dentre as propostas apresentadas pela comissão, estavam dispositivos que seriam integrados à Carta Constitucional de 1988:
medida provisória (tratada como questão de delegação de poderes), poderes ao presidente para requerer urgência na tramitação de projetos de lei no Congresso presidencial, áreas de política pública sob iniciativa exclusiva do Poder Executivo e tramitação acelerada de matéria orçamentária.

Em 1987-88, a delegação ampliada de poderes às instituições de controle lato sensu – além das já citadas, os tribunais de conta – representou uma fórmula para o dilema institucional dos constituintes: alargar os poderes do Executivo e ao mesmo tempo ampliar os controles sobre esse poder. Essa fórmula implicava criar uma “coleira forte para um cachorro grande”. 24 Mas não é apenas a vasta delegação originária de poderes a instituições de controle que explica seu fortalecimento desde a década de 90. Elas só se fortaleceram porque encontraram condições estruturais para que isso ocorresse: forte competição política e fragmentação de poder, de um lado, e uma opinião pública capaz de dar sustentação política ao trabalho dessas instituições.

O resultado é conhecido. “Poucos textos constitucionais terão confiado tanto no Poder Judiciário e nele, em particular, o Supremo Tribunal Federal”, afirmou o então Procurador Geral da República Sepúlveda Pertence e ator importante no processo decisório da Constituinte . 25 A autonomização da Suprema Corte brasileira pode ser identificada em índices comparativos de independência do Judiciário. O Brasil aparece em segundo lugar (muitas vezes empatado com outros países nesta posição) em seis de sete estudos existentes a esse respeito.26 Os tribunais de contas adquiriram grande autonomia embora permaneçam parcialmente tolhidos pela lógica majoritária que governa o seu processo decisório (eles são órgãos de assessoramento do Poder Legislativo, que indica a maioria de seus membros). Nos rankings comparativos quanto à capacidade institucional, o Tribunal de Contas da União supera seus congêneres italianos e espanhóis em rankings comparativos. Seu protagonismo no processo de impeachment deve-se ao seu fortalecimento e à grande independência do Ministério Público de Contas. O mesmo pode-se dizer sobre a autonomia adquirida pelo Ministério Público, que tem poucos paralelos no plano internacional.27

A contrapartida do fortalecimento das instituições de controle foi o declínio do controle parlamentar. 28 O controle parlamentar na República de 1946 foi muitíssimo mais efetivo que no contexto pós-constituição de 1988.29 O trade-off implícito na Constituinte de 1988 – em outras palavras, a fórmula que permitiu conciliar o fortalecimento do Poder Executivo e das instituições de controle acima referidas– implicou o enfraquecimento do Poder Legislativo. Enfraquecimento “relativo”, é importante sublinhar, porque algumas de suas prerrogativas subtraídas pelo regime militar foram restauradas. Trocamos CPIs facilmente domesticadas pelos “presidentes de coalizão” por instituições contramajoritárias robustas. O resultado é o novo protagonismo dos controladores. A última barreira para a hegemonia avassaladora do presidente e sua maioria manufaturada, neste contexto, passaram a ser as instituições judiciais. O recente processo de impeachment capitaneado pelo Poder Legislativo parece contradizer esse argumento geral. Mas o episódio só ocorreu em virtude do enfraquecimento inédito do Executivo em circunstâncias excepcionais – o cisne negro, como discutido anteriormente.

A literatura fornece amplos argumentos teóricos e empíricos que são consistentes com a experiência brasileira.30 Só sistemas políticos com algum grau de fragmentação do poder e competição política geram incentivos para o controle. Cruzadas morais ou jacobinismo judicial em um vácuo de expectativas tornam-se irrelevantes. A lógica é a de James Madison: não são os sentimentos morais que fortalecem o controle da corrupção e previnem o abuso, mas o desenho institucional voltado para maximizar os incentivos para o controle. A defesa contra o abuso de poder e a corrupção é um desenho institucional que leve à contraposição de interesses, produzindo incentivos para o controle mútuo. A autocontenção moral é insuficiente porque o moral hazard (risco moral) é alto: governo algum tem interesse em expor suas próprias mazelas. Pelo contrário, tem incentivos para acobertá-los.

A intuição é madisoniana: a maioria parlamentar que dá sustentação ao governo não está interessada em se autocontrolar. Só a oposição alimenta esse interesse. Isto explica porque as CPIs no Brasil têm baixa ou nula efetividade, porque controladas pelo governo e sua maioria. Os episódios raros em que surtiram efeito se explicam apenas porque puderam dar vazão a conflitos no seio de famílias políticas ou em decorrência de “fogo amigo” entre desafetos, ou ainda porque resultaram de investigação pela mídia independente do governo.

A fragmentação de poder partidário entre os poderes constituídos gera incentivos para a autonomização do Judiciário, como argumentam Chavez, Ferejohn and Weingast.31 Como são altos os custos de coordenação para o Executivo intervir no Judiciário, a menos que ele tenha controle sobre o Congresso, os juízes têm incentivos para atuar de forma independente quando o Congresso está dividido ou controlado por forças de oposição. O argumento se aplica também quando há mídia independente, controle de governos subnacionais pela oposição ou divisões no âmbito do próprio Judiciário ou instituições de controle.

A alternância de poder é outro fator positivo para a independência das instituições de controle através do chamado efeito-seguro. A incerteza quanto ao futuro impele os atores políticos a delegar poder a agentes neutros, pois não sabem se no futuro estarão do lado da maioria ou em situação minoritária. A alternância gera também pluralismo na composição das instituições, o que robustece sua autonomia e independência.

A fragmentação ou divisão de interesses também produz maior delegação de atribuições ao Judiciário. Ao omitir-se de tratar certos temas, as elites governamentais e legislativas buscam estrategicamente empurrar o problema para o Judiciário. Esta estratégia é eficiente quando estão em pauta temas que opõem grandes grupos sociais tais como o aborto, ou quando não há consenso. Nas decisões que implicam perdas importantes para expressivos grupos de interesse haverá maior propensão à adoção de tal estratégia. 32

O STF e o Ministério Público Federal tiveram seus papéis expandidos na sociedade brasileira por todos esses fatores: fragmentação, competição política, alternância de poder. No caso do STF, a expansão foi ainda maior porque o tribunal passou a funcionar como instância recursal em ações penais e como árbitro de disputas entre os Poderes Legislativo e Executivo. Na realidade, o elevado grau de fragmentação política tem produzido mais que autonomização institucional. Tem produzido, dentro de cada uma dessas instituições, uma propensão
ao protagonismo individual de seus integrantes.

A interferência direta do Poder Executivo ou Legislativo nas instituições de controle tem um custo reputacional: ele é tanto maior quanto mais independente for a mídia e mais forte a oposição. Assim os limites à interferência nas instituições de controle são dados pela opinião pública, sobretudo nas democracias maduras. Há um equilíbrio – estabilidade em um quadro de autonomia institucional – quando os custos de tolerar a oposição e os controles tornam-se maiores que os de reprimi-los. A intervenção nessas instituições tem custos que em alguns contextos democráticos podem ser proibitivos: os eleitores punem nas urnas governos que ataquem tais instituições.

Este é claramente o cenário brasileiro, no qual a Lava Jato é irreversível porque ancorada em fortes expectativas e crenças. O apoio da opinião pública é massivo : superior a 90% em pesquisas realizadas pelo IPSOS em 2016.

O futuro da democracia brasileira
Se no plano global, a globalização produziu deslocamentos sociais – declínio e crise de antigas regiões industriais, violento recrudescimento da imigração para os países ricos – engendrando uma crise de representação política e populismo – no Brasil e na América Latina, em geral, o efeito foi outro. A globalização e a ascensão da China provocou entre nós um boom de commodities que teve efeitos brutais sobre o sistema político. No plano da representação política, aqui as questões redistributivas não foram eclipsadas pelas identitárias. Não ocorreu revolta de globalization losers. Pelo contrário: foi sob a égide do redistributivismo que sobreveio um desvario fiscal de amplas consequências. A aliança social que nos países ricos ocorreu entre setores da tecnologia de informação e finanças, aqui envolveu o agronegócio, empresas estatais e setores com grandes contratos com o Estado, em especial as grandes empreiteiras. Aqui o Estado foi protagonista, não o mercado financeiro e a bolsa de valores. A corrupção foi a marca maior dessa aliança protagonizada pelo Estado.

A crise da democracia brasileira tem esse pano de fundo, mas não se reduz a ele. A crise brasileira combina elementos de excepcionalidade, como assinalado. A magnitude dos problemas e desafios é superlativa: na economia, na política ou no plano institucional mais amplo, com a exposição sem paralelos de corrupção sistêmica. No entanto, não houve crise constitucional: o afastamento da presidente ocorreu segundo as regras institucionais, sem recursos a meios violentos. Da mesma forma, o sistema institucional tem garantido sanções aos agentes envolvidos em ilícitos. Foram punidos membros da elite política e econômica em um padrão inédito mesmo para países que são democracias consolidadas. E o processo de punições – que deverá estender-se no tempo - tem ocorrido conforme o previsto constitucionalmente. 

O processo não é linear e há retrocessos. Afora a absolvição pelo TSE no caso da acusação de abuso de poder econômico nas eleições de 2014 (no qual o acusado se defrontou com a possibilidade excepcional de nomear julgadores nas vésperas de decisão), não há eventos ou decisões coletivas anômalas pelas cortes superiores. O saldo líquido, portanto, é positivo.

A crise produziu intenso protagonismo do STF e das instituições de controle. Isso pode gerar uma sensação de arbítrio e jacobinismo, mas é melhor do que se tivesse desencadeado as forças das baionetas. É assim nas democracias. Os perdedores recorrem aos tribunais e acatam o resultado do jogo, num “equilíbrio autoimposto (self-enforced)”: é menos custoso acatar o resultado desfavorável.

Um exercício contrafactual que joga luz sobre o estado da democracia no país consiste em considerar qual seria o estado de coisas se não houvesse ocorrido o impeachment da presidente Dilma Rousseff nem as punições a membros das elites econômicas e políticas. A malaise atual daria lugar provavelmente a conflitos de grande magnitude.

Não se trata de uma crise Linziana: nem sob Dilma nem muito menos sob Temer, quando o conflito Executivo-Legislativo foi superado. Nem especificamente do presidencialismo de coalizão. Tampouco cinge-se a escândalos de corrupção. O dilema atual é de ilegitimidade dual: Executivo e Legislativo perderam legitimidade. E esta só será parcialmente restaurada com as eleições de 2018.

A crise resulta de um novo padrão global de rule of law – ele próprio produto de uma mudança estrutural ancorada em novas crenças e no ambiente político competitivo e pluralista que permitiu a emergência desse padrão desde a década de 90. A crise é resultado de mudanças positivas – quem sabe assemelha-se às dores de parto de uma nova ordem social.

Pela amplitude de seus desdobramentos e pela simultaneidade com outras mudanças, esse novo padrão parece se inscrever num movimento mais amplo: um big bang, uma mudança institucional de larga envergadura capaz de alterar o equilíbrio inferior da corrupção sistêmica.

Notas
1. Pierre Rosanvallon, Counterdemocracy: politics in the age of distrust.
Cambridge University Press, 2008.
2. Marcus André Melo e Carlos Pereira, Making Brazil work: checking the
president in a multiparty system, New York, Palgrave, 2013. Discuto a corrupção
política em Marcus André Melo, “Crisis and integrity in Brazil”, The Journal of
Democracy, 27, 2, 2016.
3. Bo Rothtein, “Corruption: the indirect big bang approach”, International
Political Economy Review, 18 (2), 2011.
4. Jorge Castañeda, “Latin America’s left turn”, Foreign Affairs, may-June , 85,
3, pp 28-43, 2006.
5. Cf Alston, Lee, Marcus Melo, B Mueller e C Pereira, Brazil in transition:
beliefs, leadership and institutional change, Princeton University Press, 2016.
6. Ryan E. Carlin, Gregory J. Love, Cecilia Martínez-Gallardo, “Cushioning the
Fall: Scandals, Economic Conditions, and Executive Approval”, Political Behavior,
(March) 2015, 1, pp. 117-130.
7. A expressão é de Silvio Romero, Presidencialismo ou parlamentarismo na
República brasileira. Cartas aos conselheiro Rui Barbosa, 1893.
8. Juan Linz, “The perils of presidentialism”, The Journal of Democracy, 1990 (1).
9. Cf Timothy Power and Paul Chaisty, (no prelo), “Flying Solo: Explaining
Single-Party Cabinets Under Minority Presidentialism”, European Journal of Political
Research. Presidentes minoritários que se defrontam com partidos majoritários no
Legislativo são situações encontradas neste período apenas nos EUA e em anos
isolados em El Salvador e Colômbia.
10. Afonso Arinos e Raul Pilla, Presidencialismo ou parlamentarismo, Brasília,
Senado Federal, Conselho Editorial, 1999, p. 92. A citação é do parecer de 1949
reproduzido no texto.
11. Ibid. p. 89.
12. Ibid. p. 90.
13. Ibid. p. 92.
14. Ibid. p. 93.
15. Sérgio Abranches, “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional
brasileiro”, Dados Revista de Ciências Sociais, 1988, 31, 1, p.
16. Ibid. p. 19
17. Abranches, p. 30; Arinos, p. 5.
18. Na realidade este é um tema clássico da política comparada. Cf Arend
Lijphart, Patterns of democracy: majoritarian and consensus governments in thirtysix
democracies, Yale University Press, 1984 e G. Bingham Powell, Elections as
instruments of democracy: majoritarian and proportional visions, Yale university
Press, 2000. Pippa Norris, Do power sharing institutions work?, Cambridge University
Press, 2008. Octavio Amorim Neto, “O Brasil, Lijphart e o Modelo Consensual de
Democracia”, in Magna Inácio e Lucio Renno, (Org.). Legislativo Brasileiro em
Perspectiva Comparada. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009, p. 105-131.
19. Noam Lupu, Party Brands in Crisis: Partisanship, Brand Dilution, and the
Breakdown of Political Parties in Latin America, New York: Cambridge University
Press, 2016.
20. Marcus André Melo, “Political malaise and the new politics of accountability:
representation, taxation and the social contract”, in Ben R Schneider (ed.), New Order
and Progress: development and democracy in Brazil, New York, Oxford University
Press.
21. Powell 2000, 77-81.
22. “A prática das delegações legislativas é normal nos regimes presidenciais,
inclusive no americano… Trata-se de delegações de colaboração e não de delegações
renúncia” . Cf Ministério da Justiça e Negócio Interiores. Reforma constitucional.
Sugestões para a Reforma Constitucional apresentada ao Ministro Nereu Ramos,
pela Comissão de Juristas, constituída em março de 1956. Rio de Janeiro, Imprensa
Nacional, p. 26. A comissão também referia-se ao aumento desmedido de vencimentos
e cargos recentemente aprovados e que não tinham viabilidade fiscal. Ibid. p. 24. A
crítica volta-se para o Legislativo como fonte de irracionalidades com que o Executivo teria que arcar.
23. A comissão era integrada por Carlos Medeiros (futuro presidente do STF).
Aliomar Baleeiro, Hermes Lima (futuro ministros do STF), dentre outros membros
destacados da elite judiciária sob o regime militar. Para os trabalhos da Comissão cf.
Hermes Lima, Travessia. Memórias, José Olympio, 1974, 166-170.
24. O argumento é analisado em detalhes e estendido para outros países latinoamericanos
em Marcus André Melo e Carlos Pereira, “The surprising strength of
checks and balances in Brazil”, paper apresentado no Annual Meeting da American
Political Science Association, Chicago, 2014.
25. Citado por Emília Viotti da Costa, O Supremo Tribunal Federal e a construcao
da cidadania, São Paulo, Editora UNESP, 2006, p. 188.
26. Cf Ríos-Figueroa, Julio and Jeffrey K. Staton, “An Evaluation of Cross-
National Measures of Judicial Independence.” Journal of Law, Economics and
Organization, 30, 1, 2014.
27. Para detalhes Melo e Pereira, ibid.
28. Na Câmara dos Deputados, das 239 propostas de CPIs no período 1990-2015
apenas um quinto (61) foi instalada e apenas 49 concluídas. No Senado, a situação
foram propostas 47 CPIS no período em pauta, das quais apenas 28 foram instaladas e
apenas 17 foram concluídas. No período 1946-64, das 169 CPIs propostas no período,
a quase totalidade (161, ou 95%) foi instalada, e 60% concluiu os trabalhos. Mas as
taxas de conclusão das CPIs dos primeiros mandatos de Dilma Roussef e Lula – de
12% – é a menor de qualquer governo na série histórica que compreende 68 anos (de
1946 a 2014).
29. Evidências surgidas da Lava Jato mostram como as comissões parlamentares
tornaram-se vulneráveis a práticas corruptas. Às grandes CPIs dos governos
Kubitschek e Goulart, à CPI do PC Farias – que resultou no impeachment de Collor
– se seguiram CPIs que atestam o fim melancólico do controle parlamentar. Este é o
caso da CPI mais diretamente imbricada com o caso do impeachment da presidente
Dilma Rousseff: a CPI da Petrobrás. O relatório vexaminoso apresentado pelo relator
Marcos Maia (PT), após uma enxurrada de evidências de corrupção trazidas à baila
pelas instituições de controle, foi emendado às pressas a ponto de se tornar tão
patentemente inócuo (não indiciou ninguém) que evidencia o colapso do controle
parlamentar. Como se isso não fosse pouco, governo orquestrou um ensaio para que os depoentes soubessem de antemão as perguntas que os parlamentares governistas
fariam em umas sessões dessa CPI.
30. Sobre o papel de crenças e expectativas, cf Rothstein op. cit. Jeffrey K Staton,
Judicial Power and Strategic Communication in Mexico. New York: Cambridge
University Press, 2010; Miriam Golden e Ray Fisman, Corruption: what everybody
needs to know, Oxford University Press, 2017; Gretchen Helmke. 2010. “Public
Support and Judicial Crises in Latin America”, Journal of Constitutional Law.
13(2):397-411.
31. Rebecca Chavez, John Ferejohn and Barry Weingast, “A Theory of the politically
independent judiciary”, paper presented at the Annual Meeting of APSA, 2003.
32. Ocorre que as elites judiciais também são atores estratégicos e podem também
omitir-se ou – num duplo blame shifting – remeter as decisões de volta à coalizão
governamental e sua base legislativa.

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Marcus André Melo - é professor titular de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ph.D em ciência política pela Sussex University, no Reino Unido, fez o pós-doutorado no Massachusets Institute of Technology. Foi professor visitante ocupando a Cátedra Coca-Cola Company na Universidade Yale. Foi também residente scholar na Rockefeller Foundation, tendo sido
premiado com o Guggenheim Award na área de ciência política, na categoria América Latina. Foi consultor do PNUD, BID, Banco Mundial, UNRISD, Unesco e DFID. É autor dos livros Reformas
constitucionais no Brasil: Instituições políticas e processo decisório (2002) e Brasil in transition: beliefs, leadership, and institutional change [Brasil em transição: crenças, liderança e mudança
institucional] (2016), entre outros.

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