quinta-feira, 21 de setembro de 2017

É preciso aperfeiçoar os acordos de leniência – Editorial | Valor Econômico

Há um preço a pagar pelo noviciado nas delações premiadas e acordos de leniência. Os percalços do grupo JBS, cujos controladores estão presos, mas ainda detêm o comando das empresas é só um exemplo da complexa rede de problemas inéditos que passaram a ser enfrentados pela Justiça e pelas companhias após a devassa promovida pela Operação Lava-Jato e a aplicação de novas legislações.

Em primeiro lugar, ajudaria muito se o Estado agisse de modo integrado e propusesse e negociasse em harmonia soluções no âmbito judicial e administrativo das empresas envolvidas em corrupção. Parece fácil, mas até hoje isso não foi feito. Por enquanto, o Ministério Público dá as cartas nos acordos de leniência, com homologação do Supremo Tribunal Federal. Outros órgãos terão de tratar do assunto e seu entendimento sobre os acordos propostos está longe de ser homogêneo - Advocacia Geral da União, Controladoria Geral da União, Tribunal de Conta da União e subsidiariamente o Cade. Disputas de poder no aparato de Estado ou pura inércia burocrática são inimigas tanto de punições adequadas como de acordos justos. A União não parece muito preocupada com essa diversidade, mas deveria.

Com o desenrolar da Lava-Jato parece claro que houve liberalidade excessiva quanto ao número de beneficiados pela delação premiada. Não há dúvida de que sem seu concurso talvez só fosse possível desvendar uma pequena parcela da viralização dos crimes na administração pública, na Petrobras, na CEF, no Congresso e nas empresas de construção, pontas de lança dos megaesquemas de corrupção. Da forma como o prêmio da delação está sendo concedido, porém, é possível que as penas acabem por ser relativamente brandas para os donos ou acionistas majoritários das companhias e relativamente mais pesadas para os elos subalternos da cadeia de ilícitos.

Há exageros no número de delatores aceitos e nas vantagens oferecidas a delatores. No primeiro caso, salta aos olhos a concessão de algum prêmio em relação às punições prescritas pela lei a 77 executivos do grupo Odebrecht - seguramente todos os que estavam no topo da hierarquia da empreiteira e mais gente. No segundo caso está a delação premiada dos irmãos Batista, que não previa qualquer sanção criminal e o pagamento indenizatório de R$ 10 bilhões, regateado com os controladores, que inicialmente acreditavam que pouco mais de R$ 1 bilhão resolveria toda a questão. Caso não fossem denunciados por si próprios, com uma inacreditável autogravação, os acionistas majoritários da J&F pagariam a multa e zerariam seu prontuário conhecido e declarado de irregularidades.

No caso do envolvimento de estatais e de políticos, os critérios para delações são vagos. Os líderes das "organizações criminosas" não teriam direito a ela, mas pelas denúncias feitas pelo Ministério Público há apenas dois até agora - o presidente Michel Temer e o ex-presidente Lula. Enquanto isso, aceitam-se colaborações de subordinados que queiram safar-se de longas anos de prisão. Até Eduardo Cunha achou que poderia ser um beneficiário, quando o ex-deputado foi um dos elos centrais da corrupção em escala industrial - e continua recebendo propina até na cadeia.

Com a gravidade dos crimes cometidos, sua capilaridade e magnitude não deveria se permitir que os controladores continuassem a exercer suas funções de comando nas companhias, como se nada tivesse acontecido, ou, dependendo do caso, até mesmo fosse compulsória a venda do controle acionário. A lei faz distinção operacional justa entre punição aos donos ou acionistas majoritários e preservação da função social da empresa (empregos, fornecedores etc).

No entanto, não aplica na prática essa distinção. Como aponta a advogada Ana Frazão, " a lei não prevê, no âmbito administrativo, sanções como a perda de bens ou direitos (...), assim como igualmente não admite, pelo menos de forma expressa, a possibilidade de que o acordo de leniência possa ensejar a perda do controle por aquele que dele abusou ao praticar atos de corrupção". Assim, qualquer "alívio" na obrigação de ressarcimento ao Estado que dê mais chances de a empresa sobreviver beneficiará também diretamente os controladores delinquentes.

Há assim necessidade de aperfeiçoamentos legais nos âmbitos penal e administrativo que façam jus ao trabalho investigativo inestimável da Lava-Jato. Não parece haver muito interesse nisso no Congresso.

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