quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Reforma (ou contrarreforma?) Política | Paulo Kramer

- Diário do Poder

Desde a reconstitucionalização do país – e olhem que já se vão três décadas! –, a cada ano ímpar, antecedente ao de uma eleição geral ou municipal, reacendem-se os debates (quase escrevo o papo furado...) sobre Reforma Política. As atenções e as energias de congressistas e comunicadores confluem para discursos, balões de ensaio, anteprojetos, debates, audiências públicas, entrevistas e manchetes, enfim, himalaias de palavras e textos que invariavelmente partejam miudezas legislativas do tipo: normas para distribuição de 'santinhos' e afixação de cartazes, proibição de brindes e showmícios, por aí.

Nada empolgante, mas não deixa de ser compreensível. Na condição de legisladores, os políticos profissionais desfrutam de uma latitude para autorregular seu trabalho de fazer inveja a corporações como o Crea dos engenheiros, o CRM dos médicos e a OAB dos advogados. Talvez por isso mesmo os reformadores prefiram quase sempre reformar o mínimo indispensável, para assegurar o que realmente interessa – a reeleição de cada um –, a colocar em pauta dilemas 'cabeludos', a exemplo daqueles que contrapõem representatividade a governabilidade, com seu cortejo de perguntas incômodas: como os votos se transformam em cadeiras parlamentares? Quem é inelegível (os analfabetos, mais de 14 milhões de brasileiros, continuam marginalizados)? Até que ponto as coligações eleitorais se convertem em coalizões parlamentares governistas e oposicionistas? Como tudo isso afeta as relações Executivo-Legislativo e o processo de implementação das políticas públicas? Afinal, não se mexe em time que está ganhando, mesmo sob regras do jogo viciadas e obsoletas.

Pois bem, no ano da graça de 2017 – em meio à pior depressão econômica da história brasileira e perante o pântano ético revelado pela Lava Jato –, o que chama atenção é a abrangência, até mesmo a aparente audácia, das modificações ao sistema eleitoral apreciadas por duas comissões especiais da Câmara, envolvendo propostas de emenda à Constituição (PECs 77/2003 e 282/20160), cujos relatores são, respectivamente, o deputado Vicente Cândido, petista de São Paulo, e a deputada Shéridan, tucana de Roraima. Cândido relata, ainda, outra comissão especial, com a tarefa de "analisar, debater e formular proposições relacionadas à reforma política", regulamentando-a no nível infraconstitucional mediante projetos de lei ordinária e complementar.

Não quero confundir a cabeça do leitor/eleitor com excesso de informações; por isso, vou concentrar o presente artigo somente no nível constitucional da reforma. O 'infra' ficará para um próximo ensaio.

O substitutivo de Vicente Cândido à PEC 77, foi apreciado semana retrasada pela respectiva comissão especial e discutido na semana passada pelo plenário da Câmara dos Deputados. Se for ali aprovado, em dois turnos de deliberação, por três quintos (308 deputados), o texto seguirá rumo ao Senado Federal, primeiramente para a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) e depois mais duas rodadas de deliberação em plenário, com mesmo quórum de três quintos (no caso, 49 senadores). De modo a valer para o pleito de 2018, conforme o princípio da "anualidade", a emenda constitucional deverá ser promulgada pela Mesa do Congresso Nacional até o próximo dia 7 de outubro.

A PEC 282, relatada por Shéridan, teve origem no Senado (numeração original: 36/2016), e lá seus dois primeiros signatários foram Aécio Neves (PSDB/MG) e Ricardo Ferraço (PSDB/ES). O primeiro relator foi outro senador tucano, o paulista Aloysio Nunes Ferreira, que, pouco depois, se licenciaria para assumir a pasta das Relações Exteriores. Caso o substitutivo da deputada de Roraima seja aprovado na respectiva comissão especial e, em seguida, no plenário da Câmara – novamente, dois turnos e três quintos –, retornará à Casa de origem, para que os senadores deliberem sobre as alterações votadas na Casa revisora, em mais uma corrida contra o tempo.

Mas, afinal, qual é o objeto de cada proposta de reforma política?

Barreira e fim das coligações proporcionais
Comecemos pelo relatório de Shéridan, que trabalha sobre o fim das coligações proporcionais e a introdução de cláusula de barreira (ou de desempenho), dois mecanismos que muitos analistas políticos – inclusive eu – consideram indispensáveis para conter a explosiva fragmentação do quadro partidário, caso seja mantido o atual sistema de representação proporcional com lista aberta. O número de partidos hoje representados na Câmara gira em torno de 30, número que varia conforme o ritmo em que suas excelências trocam de legenda. Isso fomenta o fisiologismo e o clientelismo nas negociações entre as bancadas parlamentares governistas e o Planalto, com escambo de apoio a votações de interesse do Executivo por verbas orçamentárias ou distribuição de cargos na administração publica federal aos afilhados dos políticos. A proliferação partidária obedece a dois incentivos poderosamente vantajosos, sobretudo para os dirigentes dessas agremiações: de um lado, o acesso ao dinheiro do Fundo Partidário, orçado neste ano em R$ 819 milhões, cujas cotas são proporcionais ao tamanho das bancadas federais, raramente abaixo de R$ 1 milhão por cota anual; de outro, a venda de tempo de propaganda eleitoral e partidária "gratuita" no rádio e na televisão pelas siglas nanicas aos partidos maiores. Gratuita, é claro, para as emissoras, que se beneficiam de isenção tributária correspondente ao período em que não veiculam mensagens comerciais. O governo se ressarce do subsídio sobretaxando todos os demais – e aqui vai mais um eufemismo – 'contribuintes', como se nos fora dado optar entre pagar e deixar de pagar impostos...

Barreira - A relatora prevê um mínimo de votos válidos obtidos tanto nacionalmente quanto em número considerável de unidades da Federação para que o partido faça jus a uma fatia do Fundo Partidário, ao horário de propaganda e ao "funcionamento parlamentar" (aí incluídos os benefícios à disposição das lideranças partidárias). Seu texto também proíbe as "coligações proporcionais", alianças multipartidárias para as eleições a deputado federal, deputado estadual e vereador que se desmancham no ar antes mesmo de concluída a apuração dos sufrágios, sem afinidade ideológica ou compromisso programático de espécie alguma entre os coligados.

Para a gradual implantação da cláusula de barreira, Shéridan propõe o seguinte calendário:

- nas eleições de 2018, o partido precisará obter mínimo de 1,5% dos votos válidos à Câmara dos Deputados, distribuídos entre pelo menos nove estados (com mínimo de 1% em cada estado, ou nove deputados federais eleitos em nove estados);

- nas eleições de 2022, mínimo de 2% dos votos válidos em pelo menos nove estados, com mínimo de 1% por estado (ou mínimo de 12 deputados federais distribuídos por nove estados);

- nas eleições de 2016, 2,5% dos votos válidos em pelo menos nove estados, com mínimo de 1,5% dos votos válidos em cada um deles (ou 15 deputados federais distribuídos por nove estados); e, finalmente,

- nas eleições de 2030, 3% dos votos válidos, distribuídos em pelo menos nove estados, com mínimo de 2% dos votos válidos em cada um deles (ou, pelo menos, 18 deputados federais distribuídos por nove estados).

Não é garantido prever que essa paulatina aplicação da barreira produza, ao fim e ao cabo, um sistema partidário de tamanho moderado, com algo como cinco ou seis partidos representados no parlamento, refletindo o cardápio relativamente limitado das opções presentes nas democracias avançadas, a saber: centro, centro-esquerda, esquerda, centro-direita e direita. Vale lembrar que o país já poderia ter superado o seu bizarro kama-sutra de posições políticas, não houvesse o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2006, declarado a inconstitucionalidade da cláusula de barreira já prevista na Lei nº 9096/1995. Mais um entre tantos exemplos de judicialização da política. Ou politização da Justiça.

Coligação X federação - Os substitutivos do senador Aloysio e da deputada Shéridan, ao mesmo tempo em que proíbem as coligações proporcionais, permitem aos partidos que não preencherem a cláusula de desempenho a alternativa de juntar-se em "federações", às quais será reconhecido o direito ao funcionamento parlamentar, desde que perdurem, no mínimo, até a eleição geral subsequente. Outra 'bondade' prevista: candidatos que, não obstante tenham sido eleitos, pertencerem a partidos incapazes de alcançar o desempenho mínimo, poderão trocar de legenda; essas novas adesões não serão computadas na distribuição do Fundo Partidário ou do tempo de rádio e TV. Nos demais casos, uma regra de fidelidade partidária punirá como perda de mandato o parlamentar que se desfiliar da sigla sob a qual tenha sido eleito, excetuados incidentes de discriminação pessoal ou persistente desvio do partido em relação aos compromissos consignados no seu programa.

O texto não propõe o fim das coligações majoritárias (eleição de presidente da República, governador ou prefeito).

Distrital misto, "fundão", "distritão" etc
A incorporação da cláusula de barreira e da proibição de coligações proporcionais – focos da PEC 282 – ao regramento eleitoral e partidário já possibilitariam aperfeiçoamento significativo do sistema político brasileiro, acabando, ou pelo menos tornando mais raros os casos em que o eleitor vota no que vê e elege o que não vê, aquela legião de desconhecidos que chega à Câmara dos Deputados, às Assembleias Legislativas e às Câmaras Municipais beneficiada pelas 'sobras' legadas por 'puxadores de legenda' como o comediante Tiririca, do PR, ou o médico Enéas Carneiro, já falecido, do também extinto Prona. Mais sobre essas sobras eleitorais logo adiante.

Já o trabalho de Vicente Cândido na PEC 77/2003 é consideravelmente mais ambicioso; equivale a uma reengenharia completa do sistema, com o abandono do voto proporcional em lista aberta, que vigora ininterruptamente, se bem que com inúmeras alterações acessórias, desde o fim da ditadura do Estado Novo (1945) e da promulgação da Carta liberal-democrática do ano seguinte, tendo passado pelo regime autoritário de 1964/85 até os dias atuais, estes marcados pelo esgotamento ético e fiscal do presidencialismo de coalizão – mais um fruto indigesto da Constituição de 1988. Em seu lugar, o relator propõe o voto conhecido como distrital misto, a partir de 2022, cujo mecanismo também procurarei esclarecer daqui a pouco.

Outra significativa novidade do substitutivo do petista é o Fundo Especial de Financiamento da Democracia, conhecido (im)popularmente como fundão eleitoral, sobre o qual também tentarei explanar em breve.

Ministros de tribunais, suplentes e vices - Igualmente acatada pela comissão especial foi a limitação a um período de 10 anos dos mandatos dos ministros dos tribunais superiores (STF, Superior Tribunal de Justiça-STJ, Tribunal Superior do Trabalho-TST, Superior Tribunal Militar-STM), cuja indicação passaria a depender da confirmação de três quintos dos senadores e não mais da sua maioria absoluta, o mesmo valendo para os ministros do Tribunal de Contas da União (TCU), que, apesar do nome, não pertence ao Poder Judiciário, mas é órgão de "controle externo" vinculado ao Congresso Nacional e encarregado de fiscalizar o Executivo (administrações direta e indireta). Hoje, esses ministros permanecem na ativa até os 75 anos de idade. Na Suprema Corte dos Estados Unidos, o posto de justice é literalmente vitalício, vagando apenas com a renúncia ou morte do ocupante. A crônica política está interpretando a proposta como 'troco' dos congressistas ao que consideram crescente ingerência do Judiciário e dos órgãos de controle nas prerrogativas parlamentares – proibição das contribuições financeiras de empresas às campanhas eleitorais pelo STF em 2015; "Dez Medidas de Combate à Corrupção", defendidas pelo Ministério Público etc.

No plenário, Vicente Cândido promete voltar à carga para resgatar dois itens derrotados pela maioria da comissão especial: o fim da 'chapa' de dois suplentes nas candidaturas ao Senado e a extinção dos cargos de vice-presidente, vice-governador e vice-prefeito. No primeiro caso, o relator propõe que o suplente de senador seja o deputado federal mais votado do mesmo partido. Em caso de vacância da cadeira no Senado (afastamento definitivo por renúncia, perda de mandato ou morte), ele apenas substituiria temporariamente o titular, sem sucedê-lo em definitivo. Esse sucessor seria escolhido na eleição mais próxima, geral ou municipal, para cumprimento do restante do mandato senatorial. No caso da supressão dos vices, a linha de substituição temporária – para presidente da República – seria a seguinte: presidente da Câmara, presidente do Senado e presidente do Supremo. Com o afastamento definitivo do chefe de Estado, se isso ocorrer nos três primeiros anos do quadriênio, a sucessão virá 90 dias depois, mediante eleição popular direta; se ocorrer no quarto ano, a eleição será indireta (Congresso Nacional).

Distrital misto (modelo alemão) - As modificações que despertam mais curiosidade e provocam maiores polêmicas se referem ao sistema de voto e ao financiamento público das campanhas. Como antecipado acima, a partir da eleição geral de 2022, vigorará o voto distrital misto para deputados federais, estaduais e distritais; de 2024 em diante, também para vereadores nos municípios com mais de 200 mil eleitores. Até esse número, os legisladores municipais passarão a ser escolhidos pelo sistema proporcional com lista fechada, outro dispositivo que comentarei logo a seguir.

A República Federal da Alemanha adotou pioneiramente o sistema distrital misto, juntamente com a já referida cláusula de barreira, ou desempenho, refletindo a dolorosa lição da República de Weimar (1919/33), cujo modelo eleitoral proporcional acarretara tamanho fracionamento entre os partidos liberais e democráticos que acabou por facilitar a ascensão da tirania do Führer nazista Adolf Hitler e o desencadeamento da Segunda Guerra Mundial. (Lá, a barreira é de 5%.)

A rigor, o distrital misto combina dois sistemas em um: o eleitor vota duas vezes – na primeira, pelo critério majoritário, escolhe o candidato do seu distrito (os estados e também os municípios são divididos em distritos, cada um deles com aproximadamente o mesmo número de habitantes), mandando para a Câmara Baixa aquele que conquistar o maior número de votos naquela e somente naquela circunscrição; o segundo voto, pelo critério proporcional, seleciona uma lista partidária preordenada ('lista fechada'), conforme hierarquia adrede definida nas convenções dessas legendas.nesse segundo voto, se o partido conquistar total de sufrágios que lhe dê direito a, digamos, três cadeiras, nelas serão empossados os três primeiros nomes da lista. Na Alemanha, metade das atuais 598 cadeiras do Bundestag, o parlamento federal, é ocupada pelos deputados eleitos nos distritos; a outra metade, pelos eleitos nas listas preordenadas. Da década de 90 do século passado para cá, muitos países que mudaram de sistema eleitoral, a exemplo do Japão e dos antigos satélites soviéticos na Europa oriental, adotaram o sistema alemão, que, se de um lado satisfaz ao cidadão que faz questão de eleger um rosto com o qual se identifique, de outro promove o fortalecimento dos partidos como estruturas de mediação entre o eleitor-cidadão e o poder político, além de condicionar o surgimento de um pluripartidarismo moderado.

O relator Vicente Cândido acolheu, e a comissão especial da PEC 77 aprovou outra característica da legislação eleitoral germânica, aquela que permite ao mesmo candidato concorrer simultaneamente a duas vagas – a primeira pelo distrito, a segunda pela lista. Além de disputar a eleição de 22 de setembro próximo no seu distrito, a chanceler Angela Merkel encabeça a lista da Democracia Cristã (CDU) no estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental. Seu risco de perder é zero.

Infelizmente, os limites impostos pelo espaço, pelo tempo e também pela santa paciência do leitor me impedem de abrir uma discussão pormenorizada, aqui e agora, sobre o dimensionamento desses distritos. Nos Estados Unidos, que, como outros países da anglosfera, adotam o sistema majoritário uninominal, mais conhecido como voto distrital puro, cada um dos 437 distritos corresponde a uma das 437 cadeiras na Câmara dos Representantes. Pelo tradicional princípio do "one man, one vote" (cada pessoa, um voto), todos os distritos devem conter aproximadamente o mesmo número de habitantes, o que resulta em maior número de cadeiras/deputados para os estados mais populosos – Califórnia, 53; Texas, 36 – e apenas um deputado para Montana ou Delaware, unidades com demografia extremamente rarefeita. Ora, no Brasil, o pacto federativo não escrito vigente desde a Constituição de 1946 estabelece que São Paulo jamais poderá acumular poder político equivalente à sua pujança econômica. Se aqui viéssemos a adotar 'a sério' o distrital puro, ou mesmo o misto, como prevê o substitutivo de Cândido, os paulistas deveriam ficar com mais de 100 e não somente os atuais 70 deputados federais, enquanto a Roraima caberiam bem menos que os oito de agora. E quem conhece as clivagens regionais do parlamento brasileiro sabe que isso dificilmente vai acontecer. Na hipótese de adoção do 'misto', é provável que se negocie um acordo de distritalização mantendo os atuais mínimo e máximo de deputados por unidade da Federação.

Distritão ou semidistritão? - Depois de passar meses a fio insistindo no sistema proporcional de lista fechada, vigente em países como Portugal e Espanha e preferido por boa parte dos petistas, o relator aceitou a solução do distrital misto, mas defendeu que na transição para este em 2022, os pleitos geral de 2018 e municipal de 2020 se regessem pelo presente sistema proporcional de lista aberta, de modo a que a Justiça Eleitoral tivesse tempo suficiente para desenhar/distribuir os distritos; o Congresso, de aprová-los; e o eleitor, de se informar sobre a novidade. Por motivos que espero venham algum dia a se tornar claros a este analista, a maioria da comissão especial da PEC 77 optou por diferente fórmula transitória, o chamado distritão, introduzido via emenda do veterano deputado Miro Teixeira (Rede/RJ), com apoio da bancada peemedebista. Que 'bicho' é esse?

Sistema fortemente majoritarista, o distritão, que também atende pelo nome científico de "single non-transferable vote " (SNTV), elege os candidatos mais votados, em valores absolutos, à Câmara dos Deputados, da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do DF – bem como os pretendentes às Câmaras Municipais. Exemplo: se um estado tiver direito a 20 deputados federais, ficarão com essas cadeiras os 20 mais votados, independentemente de partido. Simples assim, sem as fórmulas arcanas que presentemente distribuem essas cadeiras conforme o quociente partidário (QP), resultante da divisão do número de votos válidos conquistados por cada partido ou coligação proporcional pelo quociente eleitoral (QE), por sua vez obtido mediante a divisão do total de votos válidos para os candidatos a deputado (ou vereador) pelo número de cadeiras em disputa. As já referidas sobras eleitorais decorrem do número de vezes que a votação em um puxador de legenda – mais uma vez aqui exemplifico usando o caso Tiririca (deputado federal pelo PR/SP) – ultrapassa o QE, ensejando a eleição de uma comitiva de 'sem-votos'. Na sua estreia eleitoral (2010), o comediante conquistou mais de 1,3 milhão de sufrágios populares. Como o QE de São Paulo foi de 304.533 (resultado da divisão do total de 21.317.327 votos válidos dados aos candidatos à Câmara dos Deputados no estado pelas 70 cadeiras), isso possibilitou a eleição do próprio Tiririca e de mais três correligionários.

Falando sério, quantos eleitores conhecem essa fórmula e saberiam efetuar esses cálculos?

O distritão é adotado por países de pouca expressão internacional, como Afeganistão, Jordânia e duas ilhotas do Pacífico. Até os anos 90, o sistema vigorava no Japão, mas, como informado há pouco, o país agora adota o distrital misto. A despeito da simplicidade da sua fórmula operacional, o distritão é frequentemente criticado por enfraquecer os partidos e conferir vantagem injusta aos caciques políticos mais conhecidos pelo eleitorado e com fácil acesso aos cofres de suas legendas. Atrevo-me a relativizar essa sabedoria convencional. Em verdade, sempre me perguntei por que cargas d'água alguém como Michel Temer, um peemedebista de altíssimo coturno, mas poucos votos quando concorria a deputado federal por São Paulo, é entusiasta de longa data desse sistema. Verdade, também, que a 'lei' imperante na arena política e social é a das consequências inesperadas das decisões e ações humanas; por isso, é no mínimo arriscado tentar prever quais serão os efetivos resultados da introdução desta ou daquela regra do jogo eleitoral. O máximo que me atrevo a especular é que, sob o distritão, a caciquia tradicional poderia continuar exercendo nos bastidores o controle das suas máquinas políticas e escalar um esquadrão de figuras populares, quando não popularescas, para preencher suas listas de candidatos. Minha hipótese faz ainda mais sentido quando lembro que, neste exato momento, numerosos líderes políticos nacionais e regionais em crise com a opinião pública escolheriam se posicionar com máxima discrição em vez de enfrentar os holofotes midiáticos e a ira das redes sociais. Recente pesquisa do instituto Ipsos mostra que 94% dos brasileiros entrevistados não acreditam que os políticos que estão no poder representem a sociedade, e 86% desses mesmos respondentes declaram não se sentir representados pelos políticos em quem votaram.

Diante de múltiplas e veementes manifestações de rechaço ao distritão – dentro e fora do parlamento –, seus defensores estão propondo uma versão atenuada do sistema, na esperança de contarem com o apoio de grupos que têm liderado esses protestos, como as bancadas do PT e do Psol: o "semidistritão' (ou "distritão misto"), modalidade rigorosamente sem similar em nenhuma nação do planeta. O eleitor votaria em um candidato OU em um partido; o total dos votos dados a cada partido seria divididos em partes iguais entre todos os integrantes da lista da respectiva lista; o candidato vencedor (ou candidatos vencedores) seria aquele cujos votos nominais somados à sua quota de votos partidários totalizaria número suficiente de sufrágios para conquistar uma cadeira.

Um velho mestre, tão brilhante quanto ranzinza, do meu saudoso Colégio Pedro II, no Rio d'outrora, sentenciava que, "se só existe no Brasil e não é jabuticaba, deve ser safadeza". Será? Nós, professores, por menos que gostemos de admiti-lo, também cometemos erros de avaliação. Com a palavra final, você, leitor/eleitor. (Na hipótese, ainda incerta, de o distritão ou o distritão misto conquistar as robustas maiorias de três quintos nas duas Casas exigidas para 'emplacar' uma emenda constitucional, não ficarei de todo surpreso se, bem à brasileira, o 'provisório' se tornar permanente, confirmando o exotismo de Pindorama no contexto democrático internacional.)

Fundo eleitoral bilionário - Por último, mas de modo algum em último, o substitutivo do deputado Vicente Cândido à PEC 77/2003 prevê a instituição de nova e rica fonte de recursos para campanhas eleitorais, o Fundo Especial de Financiamento da Democracia. Se aprovado, o polêmico "fundão", constituído, basicamente, de 0,5% da Receita Corrente Líquida da União para o ciclo eleitoral do próximo ano e 0,25% da RCL nos ciclos seguintes, totalizará, de saída, R$ 3,6 bilhões. Seus defensores consideram-no indispensável para suprir o vazio financeiro que teria sido aberto com a proibição das contribuições empresariais. E, à observação de que as agruras econômicas do povo e o aperto das contas governamentais desaconselham este dispêndio neste momento, retrucam que o gasto ficará excluído "da base de cálculo e dos limites estabelecidos para as despesas primárias da União"... Pelo jeito, já tem gente esquecida de que a motivação formal do impeachment de Dilma Rousseff foram os contumazes exercícios de contabilidade criativa praticados pelo seu governo. A Transparência Internacional calcula que cerca de apenas 30 grandes grupos empresariais contribuíram com 63% dos fundos de campanha dos federais eleitos em 2014.

Nas condições atuais, seria muito mais razoável buscar alternativas que possibilitassem o drástico barateamento das campanhas eleitorais, algo que o sistema distrital misto, circunscrevendo a busca de votos a áreas geográficas bem menores que a superfície total de um estado, permitiria, ao reduzir os custos, por exemplo, do transporte e dos combustíveis. Os candidatos, a um tempo, poderiam e deveriam substituir as mentirosas e caríssimas campanhas do passado recente pela fórmula dos 4S (suor, saliva e sola de sapato), batendo de porta em porta e convidando o eleitor para um 'papo reto', cara a cara, 'na real'.

Infelizmente, como se queixava o saudoso ministro Hélio Beltrão, o óbvio, no Brasil, sofre de uma terrível falta de charme.

Em tempo: detalhes relevantes, como a regulamentação do fundão, sua alocação aos níveis nacionais e subnacionais dos partidos e limites de gastos para campanhas proporcionais e majoritárias, entre outros, são objeto da segunda relatoria de Vicente Cândido e serão comentados no meu próximo artigo. Até lá!
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Paulo Kramer é analista de risco político e professor aposentado de Ciência Política da Universidade de Brasília - UnB.

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