sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Desemprego na economia dual | José de Souza Martins

- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

Cresce o número dos que estão ocupados, mas não cresce significativamente o número dos que têm emprego estável. Desempregados estão reentrando na economia por meio de ocupações precárias e provisórias. O cenário indica que cresce a importância numérica do trabalhador descartável. O que reflete a maior importância da máquina e da organização em relação ao trabalho humano propriamente dito.

Reflete também a persistência do caráter dual da economia brasileira: uma parte muito desenvolvida e até sofisticada e outra próxima do rústico, aquela em que o capital não tem interesse nem pode ter. Euforia com o crescimento da ocupação graças às transferências de trabalhadores para esse setor primitivo da economia é pura inocência. Apenas atesta que a economia vai mal e a consciência crítica que dela temos vai pior. O próprio conceito de trabalho está sendo alterado. Já estamos longe tanto de Karl Marx quanto de John Maynard Keynes. Quanto de nós mesmos.

No limite, a desvalorização e a marginalização do trabalho estão relacionadas com a tendência à sobreexploração do trabalhador e à busca do trabalho puro, o trabalho sem trabalhador. Em várias regiões do mundo, é o que tem levado ao ressurgimento da escravidão, a do trabalhador destituído do direito à vontade própria. Segundo a Organização Internacional do Trabalho, há hoje no mundo 21 milhões de pessoas nessa situação. Há escravidão no Brasil também.

A modernização descontrolada da produção, tanto industrial quanto agrícola, está gerando uma grande massa de trabalhadores marginalizados. Em decorrência das mediações e causações sociais, o urbano patológico das favelas e cortiços, dos moradores de rua, dos guetos desvinculados dos padrões de civilidade, uma sociedade de vítimas e não uma sociedade de cidadãos está nascendo e se robustecendo bem aqui.

Há ainda um segundo plano no drama do desemprego, que é seletivo. Os dados atuais indicam que, nas famílias, é maior quanto aos filhos do que quanto aos pais, maior quanto aos mais jovens do que quanto aos dos 30 anos. Atinge mais os jovens que estão na fase da constituição da família, justamente os que mais carecem de emprego e segurança social. Muitos gerarão os filhos da inclusão perversa, a inclusão lesada por privações e insuficiências, os filhos da inclusão no papel, na Constituição e nas leis, mas não na vida. Os filhos da hipocrisia e do cinismo políticos.

Há neste país, hoje, uma clara diferenciação de quem está de um lado ou de outro da economia dual. As preocupações e os problemas das famílias de um lado e de outro são muito diferentes entre si, excetuados os que têm meios próprios de sobrevivência, os que não trabalham para outrem porque tem quem trabalhe para eles, os de problemas tratáveis.

De um lado, estão os protegidos pelo contrato de trabalho, que assegura ao trabalhador e sua família direitos e meios de sobreviverem, a certeza da inserção estável na sociedade, a certeza do pertencimento. De outro lado, estão os que vivem na incerteza de que amanhã haverá na mesa o pão nosso de cada dia e na vida a paz de espírito e a segurança de quem sabe que é um membro da sociedade. A incerteza de ter acesso a tudo que é minimamente necessário a que o trabalhador e sua família se sintam integrados e amparados.

Nós não temos clareza sobre as consequências da insegurança laboral na vida de pais e filhos, nas relações de família, na visão de mundo e na consciência que os move em relação aos valores sociais. Nós intuímos, mas não sabemos quanto esses valores são corroídos pelo trânsito do estável para o instável, do emprego seguro para a ocupação insegura. É um engano supor que a vítima arca sozinha com o esfacelamento das condições corretas de sua sobrevivência. A sociedade é um sistema de intercomunicação e de recíproca determinação de benesses e também de adversidades.

O desemprego ou a ocupação precária que vitima uma pessoa, vitimará de diferentes modos a sociedade inteira. O medo e a incerteza, particularmente fortes na classe média, de vários modos já são consequência da anomia decorrente do desemprego e do subemprego. As adversidades de uns estão batendo à porta dos privilégios de outros.

Há uma enorme diferença entre uma situação e outra. A dualidade econômica que aí se manifesta é criadora de problemas sociais. Indica que a suposta vitória econômica do governo é apenas um fracasso social e político. Para mudar a situação, os cidadãos, normalmente, falam e agem através das organizações políticas. O noticiário de todos os dias e horas, cada vez mais, deixa claro que essas mediações estão arruinadas. E que a mediação política de nosso destino está nas mãos de suspeitos.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Uma Sociologia da Vida Cotidiana” (Contexto).

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