domingo, 20 de agosto de 2017

Armas nucleares | Celso Lafer *

- O Estado de S.Paulo

O tratado adotado em julho comunica que não é um padrão aceitável de conduta mantê-las

No mundo contemporâneo, a escala e a intensidade dos conflitos passam pelo potencial destrutivo das armas. Estas vêm adquirindo letalidade crescente por obra da aplicação militar de inovações trazidas pela contínua ampliação do conhecimento científico-tecnológico. O marco inaugural de uma inédita letalidade foi dado pelas armas atômicas.

O emprego da bomba em Hiroshima e Nagasaki evidenciou seu potencial de extermínio, impacto devastador do meio ambiente e terríveis consequências para a vida dos que sobreviveram à catástrofe.

Desta nova realidade se deram conta, desde a primeira hora, os cientistas nucleares, a recém-criada ONU e os pensadores que se debruçaram sobre a matéria, refletindo sobre o seu significado histórico. Em razão do horizonte das armas nucleares, como observou Hannah Arendt, as guerras deixaram de ser “tormentas de aço” que limpam o ar da política, como observara Ernst Jünger à luz da sua experiência como piloto na 1.ª Guerra Mundial – o que ecoa, lembro eu, a crítica de Hegel ao Projeto de Paz Perpétua de Kant. As guerras também não podem ser mais consideradas a continuação da política por outros meios, como avaliou Clausewitz ao pensá-las. Podem constituir-se em tremendas catástrofes, cujo alcance é capaz de transformar o mundo num deserto e a Terra em matéria sem vida.

A consciência dos riscos inerentes ao potencial destrutivo das armas nucleares para a humanidade traduziu-se na importância de valorizar a paz e conter a guerra por meio do que Bobbio denominou de um pacifismo ativo. Este tem entre as suas vertentes o pacifismo instrumental voltado para proscrever, eliminar e ir reduzindo a quantidade e a periculosidade das armas de destruição em massa, coarctando os meios técnicos de extermínio da condução da guerra no mundo contemporâneo.

É neste contexto do desenvolvimento progressivo do direito internacional de desarmamento que se situa a adoção, em 7 de julho passado, do texto negociado e aprovado por 122 membros da ONU de Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares. O tratado mereceu decidido apoio do Brasil. Está em consonância com a Constituição, que circunscreve a atividade nuclear a fins pacíficos.

Insere-se na linha de coerência da diplomacia brasileira, pois nosso país é parte de todos os instrumentos internacionais de não proliferação nuclear e consistentemente vem manifestando preocupação com a persistência das armas nucleares para a segurança internacional. A relevância do tratado foi devidamente destacada pelo chanceler Aloysio Nunes Ferreira no artigo Rumo a um mundo sem armas nucleares, publicado na Folha de S.Paulo de 17/7/2017.

O tratado, no entanto, foi boicotado pelos nove Estados nucleares e pelos aliados dos EUA que estão sob o amparo da defesa do seu guarda-chuva nuclear – os membros da Otan, o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália. A justificativa para o boicote é a de que o tratado é incompatível com a política da dissuasão nuclear que tem sido essencial para manter a paz no mundo há mais de 70 anos.

A dissuasão nuclear diferencia-se da defesa. Baseia-se no equilíbrio do terror, proveniente do medo das armas nucleares. Pressupõe uma discutível definição comum de racionalidade e razoabilidade de conduta que seria compartilhada pelos detentores das armas nucleares. É inerentemente precária, pois o seu fundamento, como observou Raymond Aron, é o de construir a segurança internacional no ilimitado crédito, sem saque possível, do potencial de extermínio das armas nucleares. Foi a consciência dessa precariedade que estimulou o recém-elaborado tratado.

O tema dos riscos das armas nucleares continua na ordem do dia, como as discutíveis racionalidades das posturas da Coreia do Norte evidenciam e as reações dos EUA de Trump realçam.

A proscrição legal de outras armas de destruição em massa – as biológicas em 1975 e as químicas em 1997 – é antecedente do tratado de 2017, que abre inovador espaço aos aspectos humanitários relativos ao uso de armas nucleares e seu efeito sobre o meio ambiente.

A fonte material que levou ao novo tratado provém da inconformidade dos países não detentores de armas nucleares, inclusive os que detêm capacitação científico-tecnológica para fabricá-las, com o não cumprimento pelos detentores de armas nucleares, na condição de Estados-parte do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP), da sua obrigação, contemplada no artigo VI. Este prevê a negociação de boa-fé de tratado de desarmamento geral e completo sobre estrito e eficaz controle internacional. Essa obrigação, conforme o Parecer Consultivo de 1996 da Corte Internacional de Justiça, não é só uma obrigação de conduta diplomática, mas uma obrigação de resultado voltada para levar a termo estas negociações. Sua importância se explica em razão da precariedade e dos riscos da lógica da dissuasão nuclear.

O TNP, que congrega a totalidade dos Estados não nucleares, foi prorrogado indefinidamente no pós-guerra fria em 1995 na expectativa de que as negociações de um abrangente desarmamento nuclear prosperassem. Elas continuam na estaca zero. Daí a posição dos 122 Estados que negociaram o texto do novo tratado de 2017.

São funções do Direito Internacional informar aos Estados qual é o padrão aceitável de conduta e indicar qual é a provável conduta de outros Estados. O boicote assinala que, no momento, a provável conduta dos seus defensores não é a de assegurar um mundo livre de armas nucleares. O tratado, no entanto, comunica – pela ação majoritária da comunidade internacional – que não é um padrão aceitável de conduta manter armas nucleares. É uma deslegitimação dotada de peso jurídico da continuidade da dissuasão nuclear e representa meritória contribuição para a “ideia a realizar” de livrar a humanidade do flagelo do potencial de extermínio das armas nucleares que ameaça a vida na Terra.
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* Professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP, foi ministro das Relações Exteriores (1992; 2001-2002)

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