quinta-feira, 15 de junho de 2017

Em nome da lei, o arbítrio – Editorial | O Estado de S. Paulo

É mais que hora de a Suprema Corte preservar as garantias do mandato parlamentar

Anuncia-se para a próxima terça-feira, dia 20, o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) dos recursos relativos ao caso do senador Aécio Neves, afastado de suas funções parlamentares e de “qualquer outra função pública” por ordem do ministro Edson Fachin. É mais que hora de a Suprema Corte restabelecer o respeito à Constituição, preservando as garantias do mandato parlamentar.

Sejam quais forem as denúncias contra o senador mineiro, não cabe ao STF, por seu plenário e, muito menos, por ordem monocrática, afastar um parlamentar do exercício do mandato. Trata-se de perigosíssima criação jurisprudencial, que afeta de forma significativa o equilíbrio e a independência dos Três Poderes. Mandato parlamentar é coisa séria e não se mexe, impunemente, em suas prerrogativas. Por força da experiência dos anos de ditadura militar, a Constituição de 1988 é contundente a respeito das garantias parlamentares.

Em maio do ano passado, o País assistiu a uma ordem judicial similar, expedida pelo ministro Teori Zavascki, contra o então presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Na ocasião, sem poder contar com fundamentos jurídicos mais sólidos, Zavascki
simplesmente alegou que se tratava de “situação extraordinária, excepcional e, por isso, pontual”.

Certamente, o caso envolvendo Cunha era de excepcional gravidade, como apontavam as denúncias contra o ex-deputado, cassado depois pelo plenário da Câmara. Ao invés, no entanto, de justificar uma aplicação menos rigorosa da lei, tal circunstância recomenda estreita observância do que dispõe o Direito, sem dar margens para eventuais nulidades ou outros questionamentos processuais. Na ocasião, o plenário do STF preferiu apoiar a medida excepcional, cujo fundamento mais parecia estar ancorado na opinião pública contrária a Cunha do que nos mandamentos da Constituição.

O caso que deveria ser excepcionalíssimo e único foi usado sem maiores cerimônias como precedente pelo ministro Edson Fachin para o caso do senador Aécio Neves, que não tinha qualquer semelhança com o que lhe serviu de modelo. Assim, mais um passo foi dado na direção de flexibilizar coisas que deveriam ser inflexíveis. Se era evidente o caráter exótico da decisão do STF envolvendo Eduardo Cunha, ainda mais a ordem contra o senador mineiro. Cabe ao plenário da Suprema Corte restabelecer a vigência da Constituição.

Se alguém tem dúvida a respeito dos perniciosos efeitos desse tipo de interpretação abusiva, basta ver a atuação de alguns agentes da lei, que, diante de cada concessão que se faz à lei, parecem ainda mais estimulados a buscar novas exceções ao bom Direito. Ceder no que não se pode ceder só faz aumentar a tentação do jeitinho de ganhar, por fora da lei, a batalha contra a impunidade.

Na sexta-feira passada, o procurador Deltan Dallagnol, que integra a força-tarefa da Operação Lava Jato, disse, em sua conta no Twitter, que o senador Aécio Neves deve ser preso, caso o Senado não cumpra a ordem de afastá-lo do mandato. “O afastamento (determinado por Fachin) objetiva proteger a sociedade. Desobedecido, a solução é prender Aécio, conforme pediu o procurador-geral da República Janot”, afirmou Dallagnol.

Além de desconhecer os fatos – o Senado não está descumprindo ordem judicial, tendo enviado pronta resposta ao STF –, as palavras do procurador Dallagnol revelam o grau de confusão mental de alguns agentes da lei. Sem atentar para a evidente fragilidade da decisão de Fachin, o procurador ainda defende a prisão de uma pessoa, por ato de terceiro, isto é, pelo suposto descumprimento da ordem judicial pelo Senado. As palavras do procurador fazem parecer que é o arbítrio que dita as condições para a decretação de uma prisão.

Urge combater a corrupção. Mas tal tarefa não é motivo para essa estranha hierarquia, que vem se tornando cada vez mais frequente e desinibida, de fazer prevalecer o arbítrio pessoal sobre o que dispõe a lei. O que se espera de um Estado Democrático de Direito é que todos, também o STF e o Ministério Público, cumpram a lei.

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