segunda-feira, 15 de maio de 2017

Política e crime | Denis Lerrer Rosenfield

- O Globo

Durante o longo reinado lulopetista, o país sofreu um processo de intervenção estatal progressiva na seara econômica, sobretudo a partir do segundo mandato do presidente Lula, este processo aprofundando-se no período da ex-presidente Dilma.

Foi o Estado apresentado enquanto poder demiurgo capaz de qualquer realização, como se os seus recursos fossem ilimitados. A coisa pública poderia ser vilipendiada, pois sempre haveria uma reparação estatal de tipo financeira.

A Constituição e a lei seriam meros detalhes a serem considerados ou não conforme as conveniências políticas e os interesses particulares. Na perspectiva da encenação, as aparências democráticas seriam mantidas.

De forma decidida, o Brasil acentuou os traços de seu capitalismo de compadrio, evoluindo, podendo-se assim dizer, para um capitalismo de comparsas. O Brasil foi bloqueado e só agora começa a mudar graças às reformas conduzidas pelo governo Temer.

As distinções entre esquerda e direita perderam o sentido, na medida em que a política se criminalizou, com os atores tornando-se agentes de apropriação de recursos públicos e, igualmente, de desmonte progressivo das instituições.

A política criminosa desconhece limites, principalmente se sua retórica for a de uma esquerda que está operando uma grande transformação para os trabalhadores. As leis já não são respeitadas, apesar de guardarem essa aparência por intermédio de uma cobertura ideológica.

O PT, de partido, emergiu enquanto quadrilha com hierarquia de mando, sendo acompanhado por setores de outros partidos, que, por sua vez, armaram quadrilhas secundárias e, mesmo, coordenadas entre elas.

A noção de coisa pública desapareceu e veio a ser assim percebida pela sociedade. A classe política, em seu sentido genérico, passou a ser considerada como composta de criminosos e aproveitadores dos mais diferentes tipos.

Por sua vez, a imagem do Poder Legislativo foi, em muito, enfraquecida. Se uma questão coloca-se a respeito deste poder é a de que não mais exerce a função de representação política que deveria ser a sua.

O outro lado da política que se criminaliza é a do crime que se politiza. Uma vez os crimes perpetrados, coloca-se o problema de seu ocultamento. Se os crimes aparecessem pelo seu valor de face, a política simplesmente evaporar-se-ia, tornando-se um caso simplesmente de polícia. Isto seria o equivalente a um partido e a sua liderança política cometerem um ato de suicídio.

Considerando-se que se encontra fora de questão o PT fazer uma autocrítica, uma avaliação séria de seus crimes, o que significaria o afastamento de seus criminosos, o partido optou por colar-se aos que lideraram esse processo de destruição do país e, também, dele mesmo.

O comparecimento do ex-presidente Lula perante a Justiça, em Curitiba, foi emblemático. A estratégia do réu e de seu partido foi precisamente a de politizar o crime. Com total desfaçatez em relação aos fatos e, principalmente, em relação ao Brasil, os responsáveis por crimes e pelo descalabro nacional apresentaram-se enquanto “vítimas de uma perseguição política”.

Não se tratou, na visão deles, de um simples ato de um indivíduo devendo prestar contas à Justiça, mas do ato político de um combatente dos pobres. O aliado das empreiteiras, tendo se tornado um homem rico, teima em apresentar-se como alguém perseguido.

Contudo, o Lula aguerrido das lutas públicas apareceu no tribunal acanhando, nervoso e não sabendo bem o que dizer, dada a abundância de provas. Naquele recinto, tinha perdido o viço do líder populista de esquerda.

Sobrou-lhe apenas atribuir a responsabilidade de seus crime à sua falecida mulher. Não teve nenhum pudor, tal como não tinha tido no mensalão, jogando José Dirceu às feras e agora, também, fazendo a mesma coisa com João Vaccari. A moral é completamente descartada em sua concepção da política.

Acontece, porém, que a sociedade brasileira colocou os princípios de moralidade pública na agenda política. Não mais admite tergiversações a esse respeito. O mestre da enganação apresentou-se, diante do juiz Moro, totalmente desguarnecido. Como se a máscara tivesse caído.

Restou-lhe como ato derradeiro o comparecimento a um comício para os adeptos da fé petista e os convertidos. O comparecimento foi pífio, em torno de 10% do anunciado, apesar da ampla mobilização dos convictos de sempre, respaldados por suas fontes de financiamento.

A encenação, necessária tendo em vista a ocultação dos atos ilícitos que estão verdadeiramente em questão, pareceu nada mais ser do que uma reunião de militantes, dos que compartilham desta politização do crime.

A condição nacional tornou-se inusitada em termos conceituais. Lula e comparsas atuam em uma linha precisa, segundo uma organização claramente hierarquizada, dotada de uma ideologia, que tem como função velar os crimes cometidos.

Quando mais implicados estão na Justiça, mais acentuam o que poderia ser denominado de uma atitude insurrecional, procurando abolir as instituições representativas. Não bastasse o já feito no sentido de corrosão dessas mesmas instituições, é como se tentassem agora o golpe de graça, que seria o instrumento de uma nova conquista do poder.

Seu projeto não deixa de ser paradoxal. Procuram fazer com que o ex-presidente concorra à Presidência da República, sub judice, com o apoio possível de um ministro companheiro do STF através de uma liminar. Muito provavelmente, será Lula condenado em primeira e segunda instâncias, não se conformando, então, à lei e utilizando esse subterfúgio “legal”.

Seria a utilização da lei para suprimir a lei propriamente dita. A “lei” protegeria criminosos disputando o cargo máximo do país. Com efeito, como pode a sociedade espelhar-se em tais atores? Que exemplos oferecem à nação? Como poderia a sociedade estar satisfeita com a democracia se essa, em certo sentido, mostra-se como não-democrática?

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Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul

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