domingo, 19 de março de 2017

O legítimo e o criminoso nas doações | Sérgio C. Buarque

- Revista Será? (PE)

A doação de empresas a partidos e políticos para financiamento de campanha eleitoral é uma prática corrente, amplamente aceita e utilizada por todos, mas que evoluiu para uma grande promiscuidade entre o público e o privado. Entretanto, neste momento em que se multiplicam as denúncias e as investigações de doações e corrupção na política brasileira, é importante distinguir dois aspectos dessa relação, que separam a legalidade do crime: a origem do dinheiro e a forma de registro da doação. A combinação destes dois aspectos permite criar uma tipologia da relação, como mostra o quadro abaixo, para classificar as acusações, avaliando e julgando os políticos e governantes de modo a evitar a generalização e a condenação de todos os homens públicos brasileiros à vala comum da criminalidade:

Na história politica do Brasil tem havido, ao longo dos anos, financiamento legal de empresas (sem superfaturamento e corrupção), que os políticos (ou partidos) registram como doação oficial na sua contabilidade (valor e doador) apresentada à justiça eleitoral.

O chamado “Caixa 1” é uma operação legal e legítima, praticada por vários e respeitáveis políticos. Claro que, embora seja um financiamento voluntário, a empresa tem a expectativa de facilitar acesso e mesmo solicitar eventuais favores futuros do parlamentar ou governante. Mas a doação em si não constitui nenhum ilegalidade. Existe, contudo, uma variante criminosa desta modalidade, quando, mesmo contabilizado pelo político (ou partido), o recurso transferido pela empresa é oriundo de corrupção com superfaturamento. Esta modalidade – “Caixa 3” – envolve um crime de corrupção praticado pela empresa e, principalmente, pelo ordenador da despesa vinculada ao referido contrato.

O registro na contabilidade do partido tenta disfarçar o ato criminoso anterior: a doação condicionada à assinatura de um contrato superfaturado, funcionando como uma propina e uma retribuição pelo privilégio na concorrência. Esta corrupção contabilizada tem sido uma prática amplamente utilizada no esquema do chamado Petrolão, como atestam várias denúncias da Operação Lava Jato.

O “Caixa 2” é o financiamento de campanha eleitoral “não contabilizado”, como dizia o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Quando a doação for voluntária e legítima, e não uma propina gerada por corrupção de governo e empresas estatais, o “Caixa 2” constitui apenas um crime eleitoral, pode cassar o mandato do político mas não leva ninguém à prisão. O pior expediente desta promíscua relação de empresas e políticos é uma variante deste “Caixa 2” – chamemos de “Caixa 2.1” – que combina crime de corrupção (fonte ilegal) com crime eleitoral (doação não contabilizada). 

Em qualquer dos dois casos, parece muito obscuro para o cidadão comum que um político ou um partido não declare doações de empresários para financiamento da disputa eleitoral. Por que um empresário aceita entregar dinheiro vivo para os políticos? É estranho que no mundo altamente informatizado e com um sistema bancário integrado, a empresa mande alguém sacar milhões de reais no banco, enchendo malas de dinheiro, e transportar pelas ruas cheias de bandidos, para entregar a um intermediário dos políticos. Por que (e de quem) os doadores e os receptores querem esconder esta transação?

Ao doador não interessa. O doador submete-se de bom grado, pelos termos do acordo, para ganhar o contrato, já tendo embutido no valor total a parcela correspondente à propina. Mesmo quando o dinheiro transferido para o político for resultado de corrupção, será contabilizado pela empresa doadora, na medida em que constitui uma parte diluída no faturamento total das obras e serviços prestados. 

No seu depoimento ao TSE-Tribunal Superior Eleitoral, Marcelo Odebrecht afirmou que uma parte das doações ao PT e ao PMDB foi entregue em dinheiro vivo e, portanto, não contabilizado. Por que? Se o dinheiro está devidamente “lavado” pela contabilidade da empresa, por que a doação não foi totalmente oficial, com uma simples transferência bancária, que o partido ou o político registraria na sua contabilidade? Seguramente porque os políticos e os partidos pretendem fazer uso ilegal deste recurso: compra direta de adesão e apoio de outros partidos, políticos ou simples cabos eleitorais, compra de parlamentares com mesada direta para apoio a projetos governamentais, além de apropriação pessoal para enriquecimento ilícito que, evidentemente, não podem declarar como renda à Receita Federal.

Mais que um ato criminoso, estas compras de voto e de apoio político são um grave atentado à democracia, levando à completa degradação da vida política brasileira. E quando combinadas com a corrupção (“Caixa 2.1”) – combinação perversa de fonte corrupta e uso ilegal dos recursos – constituem também um saque aos cofres públicos, agravando a crise fiscal e, portanto, a capacidade de investimentos e gastos públicos, para promover o desenvolvimento e atender às necessidades da população.

*Sérgio C. Buarque é economista

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