quarta-feira, 15 de março de 2017

É hora de rever o crédito direcionado - Cristiano Romero

- Valor Econômico

Direcionado reduz eficácia da taxa Selic e promove distorções

Um dos maiores desequilíbrios da economia brasileira, agravado durante os governos Lula e Dilma, está no sistema de crédito. Do volume de crédito existente no mercado, 50% - R$ 1,541 trilhão - diz respeito a crédito direcionado, isto é, a empréstimos concedidos a taxas subsidiadas. Esta é uma das razões, senão a principal, das altas taxas de juros com as quais o país convive há décadas.

Não é difícil entender o porquê do problema. O Banco Central (BC) tem na taxa básica de juros (Selic) o principal instrumento para combater a inflação. Por meio da Selic, o BC controla a demanda da economia via mercado de crédito - há outros efeitos, como os incidentes sobre o canal de expectativas, que afeta as decisões dos agentes econômicos; e o canal da taxa de câmbio, uma vez que o juro alto atrai fluxos de capitais do exterior, valorizando a moeda nacional, barateando as importações e, desta forma, constrangendo reajustes de preços no mercado interno.

Os economistas Daniela Cunha de Lima e Fernando Honorato Barbosa, do Bradesco, atestam, em estudo que deve ser divulgado hoje, que os juros afetam o canal de empréstimos tradicional e o canal do balanço patrimonial. No primeiro caso, a taxa Selic eleva os custos de captação dos bancos e, assim, os juros de empréstimos e depósitos.

"Com o aumento do risco de inadimplência, há aperto nas condições de crédito, amplificando a contração da demanda agregada frente à alta dos juros", diz o estudo. No canal do balanço patrimonial, a alta da Selic altera o valor das dívidas e ativos de empresas e famílias e, desta forma, a capacidade de tomar e pagar empréstimos.

Embora alguns analistas ainda insistam na tese absurda de que os juros não derrubam a inflação, inúmeras pesquisas realizadas aqui mesmo, no meio acadêmico brasileiro, provam o contrário. Elas mostram a importância do canal de crédito na transmissão da política monetária. Mais recentemente, alguns estudiosos se dedicaram a medir o impacto do crédito direcionado e dos bancos públicos na eficácia da política de juros do Banco Central.

Citados pelos economistas do Bradesco, dois autores - Bonomo e Martins, em trabalho de 2016 - estimam que, para empresas que não têm acesso a crédito direcionado, a elevação de um ponto percentual da taxa Selic reduz em 3% o crescimento dos empréstimos. Estudos econométricos realizados por Lima e Honorato revelaram que, para um choque de um desvio padrão na Selic, o crédito com recursos livres, em que os juros são flutuantes e bem mais altos que os da modalidade subsidiada, a resposta é quase três vezes maior que a do crédito direcionado.

"O impacto da Selic no crédito direcionado ocorre de forma indireta via desaceleração (ou expectativa de) da atividade econômica e consequentemente menor apetite por investimento, justamente pelo fato de que a taxa de juros para o tomador final pouco se altera. Por outro lado, o choque na Selic afeta diretamente o custo de captação e empréstimo do crédito livre. Desta forma, o impacto da política monetária é direto e maior no crédito com recursos livres", sustentam os dois economistas.

Reside aí uma das maiores injustiças da economia brasileira. Como a classe política se recusa a promover as reformas necessárias ao ajuste estrutural das contas públicas, que as tornem sustentáveis ao longo do tempo - a reforma da previdência é uma delas, a tributária e as privatizações são outras -, o juro básico no Brasil é muito alto (neste momento, está em 12% ao ano, 5,1% em termos reais). Para enfrentar o problema sem resolvê-lo, os sucessivos governos instituíram formas de crédito direcionado, instrumento que, além de criar uma série de distorções na economia, promove uma enorme injustiça do ponto de vista da distribuição da renda.

As principais modalidades de crédito direcionado são: empréstimos do BNDES (40% do total), imobiliário (38%), rural (15%) e microcrédito (0,3%). A maioria dos clientes do BNDES são grandes empresas, que podem captar recursos por meio da colocação de ações no mercado ou da emissão de papéis de dívida. Podem, ainda, buscar no exterior. Ocorre que o dinheiro barato do BNDES é um enorme incentivo para as companhias não se aborrecerem com processos de abertura de capital e que tais - depois, muitos dizem não entender por que o mercado de capitais brasileiro é tão acanhado...

Como metade do crédito existente no Brasil é direcionado e, portanto, pouco sensível à variação da taxa Selic, o BC é obrigado a aplicar uma hiperdose de juros sobre a outra metade para ter o mesmo efeito na inflação. Quem está na outra banda do mercado de crédito? Ora, o cidadão que usa cheque especial, o rotativo do cartão de crédito ou o crédito direto ao consumidor, todos concedidos a juros escorchantes; e as pequenas e médias empresas sem acesso ao dinheiro subsidiado do BNDES e de outras fontes oficiais.

Não precisa ser gênio para deduzir que esse, entre tantos outros, é mais um mecanismo concentrador de renda. Em novembro, o diferencial de taxa de juros entre o crédito com recursos livres e a taxa Selic estava próximo de 40% ao ano. Já o diferencial entre o direcionado e a Selic estava negativo em 3,4% ao ano. Dados do Banco Central informam que, em janeiro, o custo médio das operações no crédito livre atingiu 52,8% ao ano, enquanto o do direcionado foi 11,3%. O Brasil é, definitivamente, um país que sabe tratar muito bem as suas elites...

"Além de reduzir a efetividade da política monetária, o crédito direcionado ainda cria potenciais distorções no mercado. Um dos principais problemas gerados por esse tipo de crédito é a seleção adversa. Por ser um crédito mais barato e mais restrito, é possível que alguns credores escolham os melhores pagadores e projetos, deixando no mercado de recursos livres os piores pagadores. Com maior risco de inadimplência, há elevação nos preços do crédito livre para todos os demais tomadores de crédito", explicam Lima e Honorato no estudo.

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