sábado, 25 de fevereiro de 2017

Outros carnavais

Para abrir os festejos que começam hoje, O GLOBO faz uma seleção de textos pouco conhecidos de escritores brasileiros sobre o tema

Mariana Filgueiras | O Globo

A primeira vez que Clarice Lispector teve uma fantasia de carnaval feita especialmente para ela, nos anos 1930, uma rosa, com as sobras de papel crepom de uma amiga, aconteceu um imprevisto e... provocou uma crônica comovente, escrita pela autora muitos anos depois. Quem também descreveu a sensação de sair às ruas fantasiado foi Mário de Andrade, em 1943, se lambuzando “com o zarcão da alegria”. Quando o escritor Raul Pompeia, ainda no fim do século XIX, viu pela primeira vez o cortejo de rua do Recife, escreveu um texto embevecido no jornal para o qual colaborava, o mesmo em que publicaria depois o seu clássico “O ateneu”. Já no início do século XX, um alegre Lima Barreto filosofaria sobre a importância de se deixar o tantã espancar “a tristeza que há nas nossas almas”.

Em 1954, o cronista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, contou, numa “metacrônica” de carnaval, que a melhor lembrança que tinha da festa era também a mais simples: sair, menino, batendo bumbo pela vizinhança.

Muitos autores brasileiros já escreveram sobre o carnaval. Selecionamos alguns textos menos conhecidos para embalar a folia que começa hoje.

“O carnaval no recife: impressões de viagem”, 1886 - Raul Pompeia
“Às quatro da tarde, começa. O povo alvoroçado derrama-se pelas ruas. Encarapitam-se às guarnições de ferro das pontes, formando verdadeiros cachos humanos, cujo aspecto caprichoso a placidez das águas reproduz em grandes manchas escuras incertas que o refluxo do rio não consegue dissolver. Apinham-se ao longo das calçadas e em toda a linha do cais; enchem as praças. Às janelas, de todos os andares de todos os prédios, as senhoras debruçam-se, olhando, sobre a multidão, massa preta confusa de ombros e chapéus que se agita, produzindo um vasto zumbir de vozes e passos. Pouco a pouco, começa a negra multidão a pentear-se de cores claras. Aqui vermelho, acolá verde, roxo àquela esquina, azul mais adiante, branco em muitos lugares. Multiplicam-se os pontos e as cores, surgem, na onda do povo, como estrelas, ao cair da noite, uns após outros, aos grupos, às porções, alinhados, dispersos.”

“O morcego”,1915 - Lima Barreto
“O carnaval é a expressão da nossa alegria. O ruído, o barulho, o tantã espancam a tristeza que há nas nossas almas, atordoam-nos e nos enchem de prazer. Todos nós vivemos para o carnaval. Criadas, patroas, doutores, soldados, todos pensamos o ano inteiro na folia carnavalesca. O zabumba é que nos tira do espírito as graves preocupações da nossa árdua vida. O pensamento do sol inclemente só é afastado pelo regougar de um qualquer “Iaiá me deixe”. (...) Essa nossa triste vida, em país tão triste, precisa desses videntes de satisfação e de prazer; e a irreverência da sua alegria, a energia e atividade que põem em realizá-la, fazem vibrar as massas panurgianas dos respeitadores dos preconceitos.”

“Rei Momo”, 1943- Mário de Andrade
“Também quis celebrar o Rei Momo e logo me vesti de azul e encarnado. Então me olhei no espelho e esmoreci. Não é que eu imagine indignidade desumana a gente estar se preocupando de alegria num momento como este, em que positivamente o mundo vai de mal a pior. Afinal de contas, eu já cheguei também àquele alto de montanha, muito avançado no caminho da experiência, para estar mais ou menos desconfiado de que sempre o mundo foi de mal a pior. E apesar disso ele ainda está aí, bastante ativo e um pouco perturbado. Talvez não faça mal que, de permeio a missões de SOS financeiro e leis de segurança para os governinhos bastante perturbados, a gente se enlambuze, por uma quarta-feira apenas, com o zarcão da alegria.”

“Memórias de um carnaval”, 1954 - Sérgio Porto
“‘Por que não escreves uma história de Carnaval?’ Olhem, até que não é má ideia. Claro que tomarei cuidado, nada de usar a palavra ‘fulgor’, ou combinar o adjetivo ‘estonteante’ com o substantivo ‘alegria’. É da máxima importância não dizer que ‘esta vida é um Carnaval’. Assim, evitando o lugar-comum, o assunto já me parece mais digno de ser abordado. Todos nós temos um Carnaval para recordar e todas as revistas uma enquete para fazer: qual o seu Carnaval inesquecível? (...) Tomadas todas as providências, saímos por aí. Eu tinha a meu cargo a batida do bumbo. Dentro de um terno velho, desprezado pela elegância paterna, com o paletó vestido pelo avesso, as calças enormes e uma gravata-borboleta minúscula, colaborava com um toque chapliniano para o sucesso do cordão.”

“Restos de carnaval”, 1968 - Clarice Lispector
“Nunca tinha ido a um baile infantil, nunca havia me fantasiado. Em compensação deixavam-me ficar até umas 11 horas da noite à porta do pé de escada do sobrado onde morávamos, olhando ávida os outros se divertirem. Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durarem os três dias: um lança-perfume e um saco de confete. (...) Foi quando aconteceu, por simples acaso, o inesperado: sobrou papel crepom, e muito. E a mãe de minha amiga — talvez atendendo a meu apelo mudo, ao meu mudo desespero de inveja, ou talvez por pura bondade, já que sobrara papel — resolveu fazer para mim também uma fantasia de ‘rosa’ com o que restara do material. Naquele carnaval, pois, pela primeira vez na vida, eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.”

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