terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Os burros n’água - Arnaldo Jabor

- O Estado de S. Paulo

Estamos começando do quase zero, fazemos só o conserto, a recauchutagem do óbvio

Não sei o que se passa hoje no Brasil. Só vejo expectativas, nenhuma clareza. Nosso último acontecimento foi o impeachment de Dilma. Jornais batalham para ter um assunto concreto. A Lava Jato é intocável, todos dizem, principalmente os mais citados por ela.

A Lava Jato foi uma grande conquista. Mas, pergunto, e depois que julgarem e prenderem, em que ela vai desembocar? Haverá por exemplo uma grande campanha para acabar com a espantosa burocracia do País? Seria importantíssimo. A burocracia não é apenas uma aporrinhação; ela é a capa que protege a corrupção e faz a manutenção do eterno patrimonialismo que nos assassina.

O Brasil é uma região interior de nossa cabeça e, do lado de fora, só há uma confusa paisagem destroçada, feita propositadamente para não funcionar. Isso. Fomos colonizados para dar sempre com os burros n’água. O governo Temer por exemplo faz uma tentativa de modernização (que está funcionando com bons executivos) e uma vida política de velhíssimas raposas chafurdando na lama de sempre. As caras e bocas de nossos representantes retratam a loucura de nossa vida – um desfile com as caras de gente como Sarney, Jucá, Renan, o inesquecível corno do Waldir Maranhão, o extraordinário rostinho operado do Eunício ou a carranca fantasmática do Lobão mostram nosso destino atual.

A história de minha vida política sempre oscilou entre dois sentimentos: esperança e desilusão. Cresci ouvindo duas teses divergentes: ou o Brasil era o país do futuro ou era um urubu caindo no abismo. Além disso, dentro dessa dúvida, havia outra: UDN ou PTB? Reacionários da “elite” ou o “povo”? Comecei a me interessar por política quando votei em Jânio. Confesso. Eu tinha 18 anos e não me interessei por Lott, aquele general com cara de burro, pescoço duro. Jânio me fascinava com sua figura dramática, era uma caricatura vesga, cheia de caspa e dava a impressão de que ele, sim, era de esquerda, doidão, “off”. Meses depois, estou no estribo de um bonde quando ouço: “Jânio tomou um porre e renunciou!”. Foi minha primeira desilusão. Eleito esmagadoramente, largou o governo como se sai de um botequim. Ali, no estribo do bonde, eu entendi que havia uma grossa loucura brasileira rolando por baixo da política, mais forte que slogans e programas. Percebi que existia uma ‘sub-história’ que nos dirigia para além das viradas políticas. Uma anomalia secular que faz as coisas ‘desacontecerem’, que criou ‘um país sob anestesia, mas sem cirurgia’, como diagnosticou M.H. Simonsen.

Nos dois anos seguintes, vivi a esperança de um paraíso vermelho que ia tomar o País todo, numa réplica da rumba socialista de Cuba, a revolução alegre e tropical que acabaria com a miséria e instalaria a grande pátria da justiça e da beleza, que seria replicada aqui, pelo presidente Jango e sua linda mulher. Eles fundariam a ‘Roma tropical’, como berrava Darcy Ribeiro em sua utopia. Não haveria golpes, pois o ‘Exército é de classe média e, portanto, a favor do País’ – nos ensinava o PCB. Dá arrepios lembrar da assustadora ingenuidade política da hora.

No dia 31 de marco de 64, estou na UNE comemorando a ‘vitória de tudo’.

Havia um show com Grande Otelo, Elsa Soares, celebrando a ‘vitória do socialismo’. Um amigo me abraçou, gritando: “Vencemos o imperialismo norte-americano; agora, só falta a burguesia nacional!”. Horas depois, a UNE pegava fogo e, no dia seguinte, materializou-se a figura absurda de Castelo Branco, como um ET verde-oliva. Acho que virei adulto naquela manhã, com os tanques tomando as ruas. Eu acordara de um sonho para um pesadelo.

No entanto, os tristes dias militares de Castelo ainda tinham um gosto democrático mínimo, que até serviu para virilizar nossa luta política. Contra ele, se organizou uma resistência cultural rica e fértil, que se refinou e perdeu o esquematismo ingênuo pré-64. As ideias e as artes se engrandeceram. Nossa impotência estimulou uma nova esperança. A partir daí, as passeatas foram enchendo as ruas, num movimento que acreditava que os militares cederiam à pressão das multidões. Era ilusão.

Ventava muito em Ipanema, dezembro de 68, enquanto o ministro Gama e Silva lia o texto do Ato #5 na TV, virando o País num sinistro campo de concentração. Com uma canetada, o Costa e Silva, com sua cara de burro, instado pela louca ‘lady Macbrega Yolanda’, fechou o País por mais 15 anos.

Vieram os batalhões suicidas das guerrilhas urbanas. Nos anos do milagre brasileiro, os jovens românticos ou foram massacrados à bala ou caíram no desespero da contracultura mística, enquanto os mais caretas enchiam o rabo de dinheiro nos ‘milagres’ de São Paulo. O bode durou 15 anos.

“Quando vier a liberdade, tudo estará bem!”, dizíamos.

Na verdade, a democracia voltou por causa das duas crises do petróleo, que acabaram com a grana que sustentava os militares no poder. Isso nos devolveu a liberdade na hora de pagar a conta da dívida externa.

Vitória de Tancredo. Nova esperança! Aí, veio um micróbio voando, entrou no intestino do homem e mudou nossa história. Entrou outro micróbio no poder.

No período Sarney, tudo piora. Nossos velhos vícios reapareceram. Apavorado, vi que a democracia só existia de boca, não estava entranhada nas instituições que passaram a ser pilhadas pelos famintos corruptos.

Daí para frente, só desilusão e dor: inflação a 80% ao mês (lembram?) , o messianismo de Collor, montado no cavalo louco da República, vergonha e horror.

Depois, nova esperança com o impeachment de Collor.
Depois, mais esperança com o Plano Real, vitória da razão reformista com FHC, juntamente com o Brasil no tetra, céu azul, esperança sem inflação. Nunca acreditei tanto na vida.

O governo de FHC foi o único momento da democracia em que o Brasil foi governado por pessoas sensatas e cultas.

E agora, estamos começando do quase zero. Fazemos apenas o conserto, a recauchutagem do óbvio, das regras mínimas de gestão que o PT e Dilma especialmente destruíram. Só nos resta esperar, olhando o vazio.

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