sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Memória cultural do país - Helena Severo

- O Globo

A necessidade de conservar, ampliar e democratizar o acesso aos acervos é, sem dúvida, o grande desafio enfrentado pelos gestores de bibliotecas nacionais

Costuma-se dizer que são os valores culturais que fundamentam nossas identidades nacionais. Um povo identifica-se enquanto povo a partir do compartilhamento de um conjunto de traços espirituais e materiais que abrangem artes e letras, modos de vida, sistemas de valores, tradições e crenças. Historicamente, as bibliotecas nacionais foram constituídas como instituições depositarias das tradições, da memória e da produção intelectual de um pais.

Tomando emprestado o conceito do historiador Pierre Nora de “lugar de memória”, nossa BN assume um protagonismo ímpar no âmbito da história e da cultura brasileira. Reunindo um vasto patrimônio bibliográfico e documental, é considerada pela Unesco uma das dez maiores bibliotecas nacionais do mundo, sendo a maior da América Latina. Sua formação remonta aos primórdios da emancipação do Brasil da condição de colônia de Portugal. Fundada por Dom João VI em 1810, quando da transferência da corte para o Rio de Janeiro, seu acervo teve origem na valiosa Real Biblioteca da Ajuda de Lisboa. Entre livros, manuscritos, incunábulos, gravuras, desenhos e mapas foram trazidos para o Brasil mais de 60 mil itens. Posteriormente, a coleção foi comprada por Dom Pedro I por 800 mil réis, conforme o tratado de Amizade e Aliança entre Brasil e Portugal firmado em 1825.

Ao longo dos anos, este acervo não parou de crescer seja pela aquisição de coleções, assinatura de periódicos ou pela aplicação da Lei do Depósito Legal, que determina a remessa à BN de um exemplar de todas as publicações produzidas em território nacional, por qualquer meio ou processo. O correto cumprimento desta lei atende à missão institucional da BN de preservar e difundir conhecimento e cultura permitindo, também, um efetivo controle bibliográfico da produção editorial brasileira.

A necessidade de conservar, ampliar e democratizar o acesso aos acervos é, sem dúvida, o grande desafio enfrentado pelos gestores de bibliotecas nacionais. No topo deste triangulo inscreve-se o desafio de ampliar o acesso a um número cada vez maior de pessoas, ao patrimônio documental e bibliográfico do pais. O programa Biblioteca Digital é a face mais visível desta missão. Lançada em 2006 com mais de três mil documentos digitais, a BNDigital oferece hoje livre acesso a mais de um milhão e meio de documentos, entre livros, fotografias, mapas, manuscritos, periódicos e outros. A rede contabiliza mais de 500 mil pesquisas por mês, o equivalente a três milhões de páginas acessadas.

Além de ampliar o universo de programas gerenciados pela BN Digital (Brasilianas Fotográfica e Iconografica, Hemeroteca Digital entre outros ), acreditamos ser cada dia mais relevante o estabelecimento de novas parcerias nacionais e internacionais capazes de estimular o “compartilhamento de recursos”. Hoje, mais do que nunca, a BN não pode confinar-se nela mesma. Precisa e deve ampliar diálogos com instituições nacionais e internacionais que permitam o compartilhamento recíproco de registros bibliográficos.

É na multiplicidade de suas ações que a Biblioteca Nacional reafirma o seu caráter único de instituição encarregada de reunir para gerações futuras a memória cultural do país. Essa, aliás, é a missão que a distingue das demais bibliotecas e que a faz figurar no elenco dos grandes patrimônios culturais do Brasil. Projetando um futuro próximo, acreditamos que, graças a opções políticas claras, a instituição poderá ocupar papel central no cumprimento da missão constitucional de “assegurar a todos os cidadãos, independentemente de sua condição social ou de seu meio geográfico, o pleno exercício ao direito à informação.”

*Helena Severo é presidente da Fundação Biblioteca Nacional

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