sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Lá fora, parece mais fácil estancar a sangria - César Felício

- Valor Econômico

Coração do poder não foi atingido nos países vizinhos

Teria havido impeachment de Dilma Rousseff sem a contaminação do sistema partidário por um escândalo de corrupção? As forças atingidas pela Lava-Jato conseguiriam a destituição da presidente sem as provas de descontrole fiscal do governo de então? A resposta é difícil para as duas perguntas, porque provavelmente se trata de uma clássica situação de simbiose. Mas com certeza a corrupção da Odebrecht não teria se convertido em um escândalo sem o arcabouço legal criado nos últimos anos que fez deslanchar as investigações.

É essa particular situação brasileira, em que crise econômica se entrelaça com crise política e as duas abrem caminho para as instituições de controle funcionarem com liberdade, que podem explodir ou não a estrutura partidária nos demais países em que a Odebrecht corrompeu autoridades para ganhar obras.

Em dezembro, no acordo tripartite com autoridades do Brasil, Estados Unidos e Suíça, foi revelado que a empresa agiu em onze outros países. Em três deles - Venezuela, Angola, Moçambique - claramente não existe ambiente institucional para investigação do poder central. Nos demais há muito, muito barulho desde dezembro, mas de alcance duvidoso.

O barulho mais estridente vem do Peru, por onde esteve anteontem o juiz Sergio Moro, em um ciclo de conferências. Ontem mesmo o jornal "El Comercio" revelou que o ex-diretor da Odebrecht no país, Jorge Barata, deu US$ 1 milhão para Nadine Heredia, primeira-dama no governo de Ollanta Humala (2011-2016). O dinheiro estaria no pacote de US$ 3 milhões destinado pela companhia brasileira para abastecer a campanha eleitoral do marido, a pedido do PT, de acordo com o depoimento de Barata transcrito no jornal. Foi a primeira vez que um integrante da Odebrecht reconheceu oficialmente ter dado dinheiro de caixa dois para uma campanha presidencial. O slogan da campanha de Humala, vale lembrar, era "a honestidade faz a diferença".

Os aliados de Humala estão argumentando no Peru que não se pode tratar dinheiro ilegal para campanhas eleitorais da mesma forma como suborno na administração, mas esta é uma tese que ainda precisa ser consagrada tanto pela justiça de lá como pela daqui.

Humala pode se juntar ao mesmo grupo formado pelos ex-presidentes Alejandro Toledo, com ordem de captura e acusado de receber propina de US$ 20 milhões; e Alan García, chamado a depor após a prisão de um ex-assessor seu que cobrou propina para a construção do metrô de Lima.

Ocorre que nenhuma desgraça que afete os três ex-mandatários muda o eixo de poder peruano. "A tempestade política reescreve a história, mas não afeta as instituições", comentou o jornalista peruano Gustavo Gorriti. Existe uma CPI funcionando no Congresso peruano, mas, de acordo com Gorriti, ela provavelmente lá está para proporcionar blindagem aos partidos que a compõem, uma festa para a qual Toledo, sem nenhum congressista aliado, não foi convidado. A representação parlamentar de Alan García pode ser acomodada na lotação de um carro popular. A de Humala também é insignificante.

O dinheiro ilegal nas campanhas eleitorais peruanas tem uma cadeia importante de beneficiários, entre os quais se inclui a mídia. No Peru, não existe horário eleitoral gratuito e a campanha eletrônica é paga pelos partidos, paga a peso de ouro, obtido já se sabe como. Na imprensa surgiu um movimento de responsabilizar OAS e a Odebrecht pela gênese da corrupção no Peru e desta forma gerar um sentimento antibrasileiro no país. Este movimento levou o embaixador brasileiro no Peru, Raposo Lopes, a publicar um artigo para pontuar que a Lava-Jato é produto de uma ofensiva contra a corrupção e neste sentido é um exemplo.

"Quando certas vozes opinam sobre 'sinistras conspirações' entre um Estado, suas empresas e seus associados no estrangeiro, confundindo, sem surpresa de forma maliciosa, a uma nação com os atos de algumas companhias privadas, é meu dever recordar que, neste caso, a maior vítima da rede de corrupção é meu próprio país", afirmou o embaixador, em artigo publicado no "El Comercio" dia 15.

A Lava-Jato peruana pode crescer de escala caso se atinja o atual presidente, Pedro Pablo Kuczynski, mas hoje isto é apenas uma suposição. Kuczynski foi primeiro-ministro no governo de Toledo e teve posição decisiva na escolha dos investimentos em infraestrutura que iam receber recursos públicos, e daí nasce a possibilidade de algum envolvimento.

Gorriti lamenta, mas no Peru ainda não há espaço para um "outsider" no cenário. "Uma crise como essa potencialmente poderia abrir espaço para aprofundar a democracia, não para rebaixá-la. Seria lógico buscar renovação com quadros de fora", comenta.

"Não se rouba mais no Peru do que em outros países, e nem agora mais do que em outros tempos. No tempo de Fujimori o roubo foi colossal. O que pode fazer a diferença é o apoio da sociedade e os instrumentos de investigação. O Ministério Público no Peru é independente, mas não está preparado como o brasileiro", pondera o jornalista.

No Panamá o escândalo atingiu dois filhos do ex-presidente Ricardo Martinelli, cuja força política foi derrotado na eleição presidencial de 2014.

Na Colômbia, há propinas confessadas tanto para integrantes do governo de Juan Manuel Santos quanto no do antecessor, Alvaro Uribe, o que zera o jogo e não atinge os dois caciques diretamente, ainda que existam relatos de encontros do filho de Uribe com representantes da empreiteira, sem nenhuma acusação específica.

Na Argentina o problema é com o chefe do serviço de inteligência do governo de Mauricio Macri. O presidente argentino nomeou para o posto um amigo, que é acusado de receber US$ 600 mil de um associado do doleiro Alberto Youssef. Macri está alimentando a crise mantendo o amigo no governo, mas pode esvaziá-la com uma demissão, circunscrevendo o escândalo do pagamento de propinas da Odebrecht ao grupo político de sua antecessora, Cristina Kirchner. Parece mais fácil estancar a sangria nos países vizinhos.

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