quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Besteiras recorrentes - Rosângela Bittar

- Valor Econômico

O muro de Berlim não vai cair na cabeça duas vezes

A resposta do ministro Roberto Freire ao escritor Raduan Nassar, em termos polidos mas ao seu estilo veemente, e ao auditório petista que insultava o governo o qual representava na solenidade de entrega do Prêmio Camões, promovida pelo Ministério da Cultura, foi menos uma chamada ao cumprimento de regras da boa educação e mais a expressão de firme posição contra o aparelhamento da Cultura sobre o qual o ministro já tem posição clara.

Freire tem um discurso sempre muito forte. Colocado como resposta aos que o atacaram em premiação de que, admita-se, era anfitrião, deve ter parecido a quem não estava no local uma briga de rua. Mas não foi. Os manifestantes no recinto não perceberam a nuance entre aquele e outros alvos da sua luta política.

O ministro tem uma reflexão e já vinha se colocando diante da extrema partidarização do setor cultural. Chegou ao Ministério com a questão, em sua fase aguda, sendo enfrentada pelo ministro que o antecedeu, Marcelo Calero, cujo período foi mais dramático no combate ao aparelhamento. Havia manifestos, alguns destruidores da imagem do Brasil no exterior, sem a menor preocupação com consequências; prédios fisicamente ocupados; debate interditado. O "golpe", como o PT denominou o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, foi desde o início desqualificado por Freire.

Para ele, se a bandeira é levantada por alguém muito jovem, que não viveu e não sabe o que é um golpe, até aceita. Mas se vem de alguém que conheça a história, não tolera. "Pode ter lá muita gente que tenha ainda o histrionismo de imaginar que estamos vivendo um golpe, num país que tem plena liberdade e não tem preso político. Se forem jovens eu admito, porque não viveram a história, mas alguém que tenha uma certa idade, que inclusive participou da resistência e sabe o que é um golpe, não dá. Num regime democrático até a estultice política é permitida".

Freire há muito percebeu o jogo jogado na Cultura. Velho comunista reformista, viu o muro de Berlim cair na cabeça da esquerda como vê agora as besteiras que o PT fez no poder, das quais imagina ter escapado a tempo de não se confundir com a corrupção.

Freire vê em todas as áreas do governo, na que comanda, inclusive e principalmente, reflexos do vale tudo dos governos petistas para implantar seu projeto de poder, "até mesmo despreocupando-se com o código penal". Cabia ao novo governo, a seu ver, superar esse fato.

E como superar se, ainda agora, nove meses depois, na solenidade de premiação da qual o governo era anfitrião e pagador, as reações à sua presença foram tão agudas, como se o impeachment tivesse acabado de ser feito? "A forma de superar é não continuar com práticas que nos dividem. A política é apenas a expressão que cada um usa para debater. O poder republicano não tem que definir nada em função da política. Aqui eu recebo quem pedir para conversar, discutir. Não peço carteirinha de partido".

Sobre o aparelhamento, o ministro Roberto Freire tem uma consolidada percepção e assegura que não trocará o bunker do PT pelo bunker comunista.

"Até porque nós, comunistas, fizemos todas essas besteiras que o petismo fez e não deu certo: dirigismo na arte, pensar que a cultura pode ser dirigida como instrumento de propaganda de qualquer governo. Isso nós já fizemos e demos com os burros n'água. Eu aprendi. O nosso partido aprendeu. Eu costumo dizer que quando o Muro de Berlim caiu, caiu na cabeça da gente".

Desde que reviu sua inserção na política, Freire sempre foi transparente quanto às suas posições, destemido inclusive para defender os governos que representou. "Aqui (na área da Cultura) é um governo democrático e pluralista. O artista é artista, o pintor é pintor, não importa a posição política".

Dizendo-se não tão surpreendido pela partidarização da Cultura, Roberto Freire acha que não encontrou essa prática no manuseio dos principais instrumentos de gestão do Ministério, como a Lei Rouanet, mas em outros, como os setores da diversidade, sim. "Setores da diversidade eram distribuídos em função de partidos, tanto que é uma área onde a prestação de contas não existe. E nós estamos com sindicância".

No cinema, expressão cultural desde sempre partidarizada e não apenas nos períodos de poder petista, o ministro acha que o problema não se aprofundou com o impeachment. "O Conselho Superior de Cinema, que é o órgão que cuida de definir diretrizes para o desenvolvimento do cinema e o audiovisual, apenas homologava o que era mais ou menos definido pela Ancine. Um cineasta nos disse que passou dois anos como conselheiro e não votou uma só resolução". Hoje, conta, já tem lá vários cineastas - os reconhecidos Cacá Diegues e Bruno Barreto entre eles. O diálogo com o setor do cinema brasileiro foi retomado.

Roberto Freire sabe onde está e as suas razões: porque fez o impeachment e a sucessão constitucional dava o cargo a Michel Temer. "Eu não escolhi esse governo que está aí, embora hoje, pelo que Temer tem feito, mereça todo o meu respeito". O ministro da Cultura compara com outra oportunidade, idêntica, em que precisou ajudar a tocar um governo no qual não havia votado e que também assumiu com o afastamento do titular, "Eu estou participando de um governo que é por imposição constitucional e democrática, a de tirar um governo irresponsável e corrupto e colocar um governo que era parte do governo que foi impedido. Eu já vivi isso, não é a primeira vez."

Refere-se o ministro ao governo de Itamar Franco, presidente que era vice de Fernando Collor e que assumiu o governo com o afastamento do antecessor. "Fui líder de Itamar e também não tinha votado em Itamar. Hoje todo mundo o respeita".

Ainda sobre a repulsa ao dirigismo cultural, Freire lembra que, até por ter sido do dirigismo total, que reafirma não ter dado certo, não aprova e não ficará incidindo em erro. "Gera totalitarismo". Não posso ter o Estado definindo quais são as obras que tenho que financiar, o que é que pode ser publicado." Assim, nada mais natural que a concessão de um prêmio elevado em dinheiro a um grande escritor adversário político. "O controle que a própria sociedade, no seu pluralismo, exerce é o que é fundamental na cultura, afirma Freire".

Antes de ser insultado na solenidade em que era anfitrião, do Prêmio Camões, Freire teve uma conversa como o Valor sobre essas questões que arrebatam grupos que transitam pelo seu Ministério, e demonstrou uma disposição, que permanece, segundo diz, intacta: "Quem me convidar para dialogar, debater, discutir, propor, trazer reivindicação, estou aberto".

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