sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Ajustes fiscais e suas consequências – José Paulo Kupfer

- O Globo

• Operar em nome do bem comum pede mais do que elaborar e executar orçamentos equilibrados. Exige também encontrar saídas para assegurar a devida proteção social

Seria injusto debitar o trágico descontrole social no Espírito Santo ao ajuste fiscal “exemplar”, segundo economistas de viés fiscalista, promovido no estado, nestes últimos anos. Para começar, outros estados, irresponsáveis em termos fiscais — e o Rio de Janeiro é um ícone dessa categoria — também se encontram à beira de convulsões da mesma ordem.

Mas também não seria correto eximir totalmente de culpa o pesado corte de gastos públicos empreendido a ferro e fogo pelo governo capixaba. O esforço para equilibrar as finanças estaduais e fazer frente sem novos ingressos às enormes perdas na arrecadação pública, com origem na recessão, na redução dos royalties do petróleo, e no corte abrupto, direto e indireto, de receitas tributárias depois do desastre ambiental da Samarco, tudo indica, passou da conta.

Tudo bem privatizar estatais com critério, reduzir cargos comissionados, controlar despesas de custeio. Mas carregar o ajuste em cima dos investimentos, inclusive em áreas de atribuição essencial do Estado — saúde, educação e segurança —, e do sufocamento de servidores, inclusive os que operam nessas áreas essenciais, é uma outra história. Já não é nada fácil administrar conflitos distributivos em sociedades mais homogêneas e com índices de desenvolvimento humano muito alto, o que dizer em países, como o Brasil, com concentração acentuada de renda e amplos contingentes de população carente.

Esses desequilíbrios tornam ainda mais complexa a administração dos conflitos distributivos, colocando à prova a capacidade dos governantes na alocação de recursos sempre escassos. Operar em nome do bem comum pede mais do que elaborar e executar orçamentos equilibrados. Exige, sim, avançar nos controles das contas públicas sem ceder aos grupos de pressão corporativos e às elites do funcionalismo, mas também sem desistir da busca de saídas para assegurar a devida proteção social ao andar de baixo.

Preocupa a incompreensão com a necessidade de conciliar os ajustes e suas consequências, tanto daqueles que só têm olhos para os ajustes quanto dos que só utilizam a régua das consequências. A liminar concedida ao Rio de Janeiro, no começo do ano, pela ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, adiando a cobrança de pagamento de parcela de dívida contraída com a União, é um exemplo de decisão que procurou equilibrar os pratos da balança.

Não foram poucos os economistas integrantes da base aliada da equipe econômica do governo que acusaram Cármen Lúcia de ter “rasgado o contrato" da União com o Rio de Janeiro. A preocupação com uma eventual quebra contratual, que não só poderia ser o estopim de uma reação em cadeia de outros estados inadimplentes, mas também dificultar futuras concessões de crédito aos caloteiros não deixa de ser legítima. Mas a rigidez da interpretação, alimentada pela fixação nas exigências do ajuste, não deu espaço para a uma avaliação ponderada da decisão da presidente do STF.

Quem lê os termos da liminar logo entende que não houve quebra de contrato porque a concessão não isenta o devedor do cumprimento das obrigações contratadas. Dá apenas algum tempo a mais ao estado quebrado para renegociar o pagamento da parcela devida — na prática, adiou, de um lado, o calote e, de outro, o risco da eclosão de distúrbios à maneira capixaba.

A interlocutores, a ministra Cármen Lúcia tem reafirmado que não se pode aplicar a lei sem considerar as circunstâncias e o envolvimento de pessoas. “Julguei com o olhar nas pessoas”, tem dito Cármen Lúcia sobre o episódio. Tudo o que se passou depois da concessão da liminar mostra que a ministra estava certa.

Talvez fosse o caso de sugerir aos fiscalistas mais intransigentes, guardadas as devidíssimas proporções, a leitura ou releitura de “As consequências econômicas da paz”, um clássico da literatura econômica, escrito por Keynes em 1919. Trata-se de um libelo contra os termos excessivamente duros das indenizações que os aliados, França à frente, impuseram à Alemanha, derrotada na Primeira Guerra. Sufocar a Alemanha, argumentava Keynes, sem convencer os aliados, levaria o país à ruína e a Europa à crise. Nunca, na verdade, as reparações foram integralmente quitadas, e o que aconteceu nas décadas seguintes — da Grande Depressão à ascensão do nazismo e à Segunda Guerra — é do conhecimento de todos.

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