domingo, 8 de janeiro de 2017

Soares fez província imperial virar nação orgulhosamente europeia

Pedro Del Picchia | Folha de S. Paulo

Não seria despropositado dizer que o moderno Portugal nasceu não propriamente com a Revolução dos Cravos, em 1974, mas no ano seguinte, quando Mário Soares convocou uma das maiores manifestações realizadas em Lisboa.

Aquele dia marcaria o início do fim da tentação totalitária que animava, por um lado, os jovens oficiais das Forças Armadas; de outro, o Partido Comunista; e, por fim, mas com menos intensidade, os nostálgicos do salazarismo.

Os primeiros sonhavam com um regime autoritário progressista; os segundos, com um Estado soviético; e os terceiros, aproveitando-se da ameaça "vermelha", com a volta da ditadura que dominara o país de 1926 a 1974.

Foi nesse quadro que Mário Soares apresentou o "socialismo em liberdade", em oposição aos comunistas e à extrema-direita. "Sou um homem de esquerda, sou socialista. Mas, antes de ser socialista, sou democrata".

Até a situação política chegar a esse ponto de confrontação, Portugal vivera os 15 meses mais vibrantes da história do país no século 20.

Tudo começara numa alvorada de abril de 74, em que um grupo de oficiais das Forças Armadas, contrariados com os rumos insanos da guerra colonial, mandara para o exílio o ditador Marcello Caetano.

Caetano era herdeiro ideológico e sucessor político de António de Oliveira Salazar, que erigira os contornos do chamado "Estado Novo" na longínqua década de 1930, inspirado nos exemplos de Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Salazar assumiu a presidência do Conselho de Ministros nos primórdios da ditadura, em 1932. Oito anos antes, a 7 de dezembro de 1924, nascera em Lisboa o homem que poria fim ao seu legado: Mário Alberto Nobre Lopes Soares.

Seu pai, o educador João Lopes Soares, fora ministro da República e era dono do renomado Colégio Moderno, na capital. Opôs-se ao salazarismo até o fim da vida. Em casa e na escola, Mário aprendeu a odiar a ditadura.

Na faculdade tornou-se comunista, chegando a pertencer ao PCP. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas em 1951 e em Direito em 1957, sempre pela Universidade de Lisboa. Foi advogado, professor, jornalista e escritor.

Participou de todos os movimentos de oposição a Salazar, e depois, a Marcello Caetano, e chegou a ser candidato a deputado em 1961, em eleições fajutas que a ditadura promovia e que a oposição eventualmente conseguia entrar.

EXÍLIO
Por sua militância implacável, Soares foi preso 12 vezes pela Pide —a temível polícia política lusitana, treinada pela Gestapo— e chegou a ser torturado. Azucrinou tanto o regime que foi enviado por Salazar a São Tomé, na África.

Seis meses depois, o ditador adoece e é substituído por Marcello Caetano. O motivo da punição extremada fora a investigação provando que o general Humberto Delgado foi assassinado na Espanha pelos esbirros da Pide.


Dissidente do regime, Delgado concorrera à Presidência contra o candidato de Salazar, fora perseguido e se exilara no Brasil. Tentava voltar clandestinamente a Portugal quando, na Espanha, foi alcançado pela polícia política.

Em São Tomé, o socialista escreve o primeiro tomo de seu livro de memórias, "Portugal Ameaçado", ao qual se seguirá, já na década de 70, "Portugal Amordaçado", lançado em Paris às vésperas da Revolução dos Cravos.

Perdoado pelo governo, deixa a ilha africana no final de 1968 e organiza a participação de grupos oposicionistas nas eleições de 1969, quando o país vive um clima de esperança com os acenos liberalizantes do novo governante.

Mais uma vez, porém, as trevas prevalecem e Marcello Caetano volta a apertar os ferrolhos da repressão, entoando a velha ladainha salazarista do "nós ou o comunismo" que faz sucesso no Ocidente em tempo de Guerra Fria.

A Soares resta o caminho do exílio. Parte com a mulher, a atriz Maria Barroso, e os dois filhos para Paris, onde foi professor universitário. Graças aos recursos da família, nunca lhe faltou dinheiro para poder se dedicar à política.

A esta altura suas ideias estão consolidadas. É socialista. Defende a democracia e a liberdade. Aceita o marxismo como método de análise histórica e econômica, mas abomina os regimes da União Soviética e dos seus satélites.

Vem dessa época a piada colhida no Partido Socialista francês e que repetiria tantas vezes: "Os comunistas não estão à nossa esquerda. Estão a leste".

Aproxima-se dos líderes europeus da Internacional Socialista, do alemão Willy Brandt ao sueco Olof Palme, e em 19 de abril de 1973 cria o Partido Socialista, numa reunião na cidade alemã de Bad Münstenreifel.

Na plataforma da nova agremiação dois pontos se destacam: restauração da democracia e independência das colônias. Portugal mantinha, então, o maior domínio colonial do planeta: Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, na África; Goa e Macau, na Ásia; Timor-Leste, na Oceania.

ARTICULAÇÕES PARA O GOVERNO
Um ano depois, a 28 de abril, retorna como herói a Portugal. Desembarca de trem, aclamado na Santa Apolônia, em Lisboa, que representará para ele o que foi a Estação Finlândia para Lênin.

Só que desta vez o menchevique ganhará a parada. Encontra-se imediatamente com o general António de Spínola, oposicionista conservador guindado ao comando da nação pelos oficiais militares que não sabiam direito o que fazer.

Logo se torna ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro Governo Provisório da Revolução dos Cravos. No cargo cumpre um dos pontos fundamentais do programa do seu PS, a independência de todas as colônias.

O segundo ponto —a construção de um regime democrático estável— ainda demandará muita luta e será na adversidade que Mário Soares se transformará no líder político mais notável da história de Portugal no século 20.

Entre 74 e 76, Portugal terá seis governos provisórios, todos com premiês militares, e três presidentes, também militares e legitimados pelas armas, não pelo voto: António de Spínola, Costa Gomes e Ramalho Eanes (este depois confirmado nas urnas).

Foram tempos de grandes comoções sociais, com reforma agrária, ocupações de terras e indústrias, nacionalizações de bancos, radicalização na universidade. A revolução estava nas ruas e os governos adernavam desordenadamente à esquerda.

Nesse cenário destacavam-se três personagens: Álvaro Cunhal, dirigente inconteste do Partido Comunista; Vasco Gonçalves, coronel e primeiro-ministro do 4º e do 5º governos provisórios (os mais esquerdistas do período); e Otelo Saraiva de Carvalho, major e ponta de lança da extrema-esquerda militar.

Coube a Mário Soares dar combate aos três ao mesmo tempo para repor o país nos trilhos da democracia representativa que almejava.

Alvaro Cunhal, confessaria Soares, foi um dos homens que mais o impressionou na juventude por sua determinação antisalazarista e pela coragem de trocar uma confortável carreira universitária pela ação clandestina no Partido Comunista.

Preso por muitos anos, Cunhal empreendeu uma fuga espetacular e reentrou em Portugal no rastro da marcha do MFA para liderar os comunistas. A aversão de Soares ao modelo socialista totalitário afastou-o de Cunhal já nos anos 60.

Mas a divergência ganha fôro de ruptura no dia 1º de maio de 1975. Um ano após a Revolução, Mário Soares, ministro, é impedido de subir ao palanque das comemorações pela tropa de choque do PCP.

Este é o episódio que o fará convocar o povo às ruas naquele 19 de julho que marcará o início do declínio inexorável do PCP (até hoje uma força política de pouca expressão no país).

Afinal, a eleição para a Assembleia Constituinte, pouco antes, em 25 de abril de 1975, já conferira uma importante maioria relativa aos socialistas (38%). Mário Soares contaria mais tarde como foi o choque derradeiro com Cunhal:

"Ele estava eufórico e me diz: 'Nós e os rapazes (era assim que chamava aos homens do MFA) vamos para a frente. Vocês, socialistas, podem fazer um grande bocado do caminho conosco. Ou vêm ou são dizimados'. Eu não tinha grandes ilusões sobre o Partido Comunista, mas nunca me tinha passado pela cabeça que quisesse reproduzir em Portugal de 1974 a Revolução Russa de 1917."

A história mostrou que o juízo de Soares era correto. Enquanto no resto da Europa Ocidental os PCs faziam uma profunda revisão de conceitos, os comunistas locais trabalhavam para criar um estado soviético em Portugal —um desvario total sob a sombra da Otan e os olhares vigilantes dos EUA, no auge da Guerra Fria.

O fato é que os comunistas quase leva Portugal à guerra civil. Altura em que Soares bate às portas das embaixadas britânica e americana para pedir apoio em caso de confito. "Julguei algumas vezes que a guerra era inevitável".

Enquanto o líder do PS articulava as forças democráticas no campo civil, dois outros personagens que seriam fundamentais para os destinos da nação portuguesa operavam nas entranhas do MFA: os majores Vasco Lourenço e Melo Antunes.

Eles criam o Grupo dos Nove —por serem nove membros do Conselho da Revolução que assinam um documento de fundo socialista, mas com vigorosa defesa da solução democrática.

Começa aí, no mais alto organismo do MFA, a derrocada —mais adiante definitiva— da ala da esquerda militar representada por Vasco Gonçalves (aliado dos comunistas) e Otelo Saraiva de Carvalho (da extrema-esquerda).

O GOVERNO
Um ano depois, sob a égide da nova Constituição ± progressista e democrática ±, o PS obtém retumbante vitória nas eleições legislativas que levarão Mário Soares ao cargo de primeiro-ministro do 1ë e do 2ë Governos Constitucionais da República Portuguesa (76-78).

A faina principal agora é arrumar as finanças e reerguer a economia. Com o fim da espoliação das colônias, a desorganização administrativa, as nacionalizações desordenadas e as greves sem fim, Portugal está quebrado.

E lá vai Soares aos EUA apelar ao FMI. É do FMI e da Comunidade Econômica Europeia (atual União Europeia, à qual Portugal aderiria em 86) que virão os recursos para a reconstrução econômica. Com austeridade, estrutura um Estado capitalista e previdenciário nos padrões clássicos da social-democracia europeia.

Desde então, o embate político dá-se fundamentalmente entre forças de centro-esquerda, leia-se Partido Socialista, e o centro-direita.

Nesse contexto, ganhando e perdendo eleições, Soares foi mais uma vez primeiro-ministro entre 83 e 85 até surpreender o país em 1986, lançando-se candidato à Presidência da República quando sua popularidade está no fundo do poço.

Enfrenta dois candidatos de esquerda e um adversário de direita amplamente favorito, o ex-primeiro-ministro Freitas do Amaral.

Passa para o segundo turno raspando com modestos 25% dos votos contra 46% de Amaral. A centro-direita festeja antecipadamente, certo de que os comunistas (21% nas eleições) darão, enfim, o troco a Soares.

Não contavam que no dia seguinte ao primeiro turno, o taciturno Álvaro Cunhal reentraria em cena com a palavra de ordem: "Derrotar Freitas do Amaral". O velho comunista salva a carreira política de Soares.

Na chefia do Estado, Mário Soares, com seu jeito bonachão e firmeza de atitudes, transforma-se no líder mais popular do Portugal democrático, reelegendo-se em 1991 com mais de 70% dos votos no primeiro turno.

Dos três adversários, o que pontuou mais teve 14%. Terminou o segundo mandato presidencial em 1996 no ápice do seu prestígio e assumiu o comando direto da Fundação Mário Soares.

FRACASSO
Aos 81 anos comete talvez seu maior equívoco político, lançando-se novamente candidato à Presidência no pleito de 2006. Sofre uma derrota vexatória ao obter escassos 14,3% dos votos.

O conservador Aníbal Cavaco Silva vence no primeiro turno, com 50,6%. Admitiria mais tarde não ter seguido o sábio conselho da família: "de que era melhor que eu ficasse em casa".

Desde então, Soares dedicou-se à sua Fundação, à participação como membro de júris e comissões, portuguesas e internacionais, até que com o advento da crise econômica europeia desdobrou-se em palestras e entrevistas contra a austeridade imposta pela UE (leia-se Alemanha) e FMI a países à beira da insolvência —Portugal incluído.

Afirmando que a Europa "está à beira do precipício", apelou, em junho de 2012, ao povo português para se opor firmemente ao plano de austeridade do "governo de centro-direita", chegando a elogiar as greves. Nessa cruzada, não poupou críticas à chanceler alemã Angela Merkel que —dizem nos bastidores— detestava.

Em "Um político assume-se", de 2011, fez uma espécie de balanço de sua vida em que, em meio ao relato de sucessos e desencantos, conclui com uma afirmação de esperança nos destinos da humanidade e reafirma sua crença no socialismo democrático.

Jamais perdeu o bom humor que o acompanharia até o fim. Afinal, não poderia viver de mau humor alguém que moldou o período mais virtuoso da moderna história de Portugal.

Alguém que transformou a "província imperial" de Salazar —arcaica e sem graça, isolada e cruel— numa nação democrática, desenvolvida, alegre e culta, orgulhosamente europeia. De certa forma, Mário Soares é o pai dessa pátria.
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Pedro Del Picchia é jornalista e escritor. Foi correspondente da Folha em Roma de 1978 a 1981.

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