domingo, 8 de janeiro de 2017

A natureza da desinflação – Samuel Pessôa

- Folha de S. Paulo

Em um debate em outubro de 2015 no Insper, afirmei que estava feliz com a queda de 5% do salário real que houve em maio daquele ano.

Essa afirmação "causou" na internet. A ideia foi que o professor de economia ficava feliz com a infelicidade dos outros.

Em geral, a vida e as coisas são mais complexas do que a visão maniqueísta -no Brasil, mais da esquerda, e nos Estados Unidos, mais da direita- dos fenômenos sociais.

A vantagem de uma rápida queda do salário real é que o ajustamento inflacionário -isto é, o processo de trazer a inflação para a meta- ocorre com menor aumento da taxa de desemprego.

Ou seja, ao longo de um processo de desinflação, há um "trade-off" (ainda não encontrei tradução em português, sugestões são bem-vindas!) entre queda do salário real e aumento do desemprego. Quanto maior e mais rápida for a queda do salário real, menor será o aumento do desemprego, e vice-versa.

O conflito distributivo em economias de mercado opera com os trabalhadores pleiteando maiores salários e os capitalistas pleiteando maiores margens. Se o conflito distributivo não for corretamente arbitrado pelo banco central, ele destrói a estabilidade de preços, um dos bens públicos mais importantes de uma sociedade.

Infelizmente, o sinal positivo de maio de 2015 -queda do salário real de 5%- não se materializou no atual ciclo desinflacionário.

A inércia inflacionária -da qual a regra de atualização do salário mínimo pela inflação passada é um dos maiores condicionantes- requereu taxas elevadíssimas de desemprego para promover a queda da inflação, o que finalmente está ocorrendo.

Além da elevada inércia inflacionária, diversos outros fatores contribuíram para que o atual processo de desinflação seja tão custoso: inflação em 2014 de 6,5% e muito persistente (a inflação média no quinquênio 2010-2014 foi de 6,1%); atraso de quase 20% nas tarifas e no preço da gasolina; atraso no câmbio; e situação de hiperemprego, isto é, taxa de desemprego abaixo da taxa que não acelera a inflação.

Uma das tragédias das economias de mercado é que, em períodos de crise e ajustamento econômico, os mais desfavorecidos sofrem mais. Em que pese todo um Estado de bem-estar social que minora o custo do ajuste, ele sempre será mais sentido pelos mais fracos.

É por esse motivo que a formulação da política econômica tem que ser conservadora e cautelosa -como não foi de 2009 até 2014-, evitando experimentos. Porque, quando a conta dos experimentos chega, ela é paga pelos mais pobres.

Essa característica perversa das economias de mercado deriva do fato de que os mais ricos são aqueles que têm reservas para enfrentar as intempéries. A única forma de igualar o jogo é acabar com a propriedade privada.

Não é por outro motivo que a esquerda radical sempre pregou o fim da propriedade privada. Corretamente, percebeu que era a única forma de impedir que os pobres pagassem mais pelos ajustes. A dificuldade é que até hoje não se construíram instituições que tornassem a propriedade coletiva dos meios de produção compatível com democracia e com desenvolvimento econômico.

Parece, portanto, que a melhor alternativa é economia de mercado com Estado de bem-estar social, que minora, mas não elimina a injustiça básica das economias de mercado.

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