domingo, 4 de dezembro de 2016

O custo e o benefício - Míriam Leitão

- O Globo

Você acredita na sinceridade do arrependimento da Odebrecht? Muita gente está com essa dúvida. A minha resposta a quem me fez essa pergunta foi que o arrependimento dos pecados está no campo da religião. Aqui se trata de uma mudança de estratégia corporativa baseada na análise de custo/benefício. A Lava-Jato elevou exponencialmente o custo da corrupção e tornou inútil continuar negando as evidências.

Existe a lei e a capacidade de uma sociedade de impor a todos o seu cumprimento, o “enforcement”. É essa força que está em alta no Brasil com as operações de investigação em curso. A Odebrecht e outras empresas fizeram um movimento de sobrevivência. Houve, evidentemente, uma luta. A empresa negou, soltou notas indignadas, fez críticas às investigações, ameaçou, confrontou procuradores e juízes. Por fim, perdeu. Mudou de estratégia e iniciou uma longa negociação até chegar ao ponto em que está, de reconhecimento dos crimes, pagamento de multa e redução dos danos e penas. A promessa é reconstruir as normas internas e fazer negócios com outra lógica.

Diante disso, o que faz o sistema que foi mais beneficiado com a velha ordem? Reage. É o que os políticos estão fazendo. Quando o juiz Sérgio Moro disse que esta não é a hora certa para discutir uma lei de abuso de autoridade é porque ele teme que a lei vire biombo para camuflar outro objetivo. Em vez de ser um projeto para aperfeiçoar a democracia, o que se tenta na Câmara e no Senado é conter as investigações.

Seria ingenuidade, ou outro motivo bem menos nobre, não admitir a coincidência cronológica dos eventos. Acontece justo agora quando a Lava Jato avança e chega no que pode ser a maior lista de políticos citados na operação. O PT, o mais atingido dos partidos, votou em peso no projeto que desvirtuou as medidas anticorrupção, e a coalizão uniu partidos que são inimigos nesse tempo conflagrado de polarização. O senador Renan Calheiros, com sua dezena de inquéritos, e agora um processo em que é réu, tenta legislar em causa própria quando propõe a aprovação do seu projeto que chama de “abuso de autoridade”. Quem viu a sessão de quarta-feira, em que ele forçou a barra e passou por cima dos procedimentos, tentando aprovar o requerimento de urgência para a votação do que fora aprovado na Câmara, aprendeu na prática o que é abuso de autoridade. Contudo, o plenário o derrotou. Na próxima terça-feira tentará votar o seu projeto.

Há, tanto em um quanto em outro projeto, o mesmo erro de ameaças subjetivas. No do Senado, há a sentença de prisão de um a quatro anos a quem “ofender a intimidade, a vida privada, a honra ou a imagem” da pessoa indiciada. Ninguém vai defender o oposto, mas o indiciado pode incluir até o ato de prisão ou as necessárias investigações como ofensa à sua intimidade, vida privada, honra ou imagem. No projeto que tramita na Câmara fica estabelecido que é crime um juiz “proceder de forma incompatível com a honra, a dignidade e decoro de suas funções”. De novo a subjetividade. Há uma sucessão de exemplos. Em alguns casos confunde-se o abuso de autoridade com o exercício das funções. O temor expresso pelo juiz Sérgio Moro é de que seja punido o juiz que tiver sua sentença reformada em instância superior, quando essa é a lógica da Justiça e para isso existe o sistema recursal. Moro sugeriu um artigo simples. “Não configura crime previsto nesta lei a mera divergência na interpretação da lei penal, ou na avaliação de fatos e provas.” Isso evitaria a distorção da lei. Foi recusada liminarmente pelos parlamentares.

A questão é: por que procuradores e o juiz da Lava Jato têm que estar na defensiva quando o trabalho deles levou a maior empreiteira do país a reconhecer seus erros e a se comprometer com novas práticas? Se a Lava-Jato estava certa com relação à Odebrecht e em relação a outras empresas e pessoas que exerciam poder, por que mesmo os procuradores e o juiz precisam se explicar e se defender? Se o contra-ataque dos políticos funcionar, nem a Odebrecht, nem qualquer outra empresa, terá que mudar a conduta, porque os custos da corrupção voltarão a ser baixos. E tudo voltará a ser como antes, amanhã.

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