sábado, 10 de dezembro de 2016

A maior crise desde o fim da ditadura - Fernando Luiz Abrucio

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A combinação de recessão com a desestabilização política por dois anos seguidos produziu um quadro desolador para o país. Voltamos ao cenário dos piores momentos dos governos José Sarney e Fernando Collor, quando não havia governabilidade e a economia estava muito mal. Mas mesmo nesses dois períodos o Brasil conseguiu, após algum sofrimento, sair do fundo do poço e, o mais importante, evitou que se instalasse uma crise institucional. Importantes lideranças políticas, sociais e judiciais estão agora namorando com o perigo. O bom senso e a parcimônia decisória estão dando lugar ao personalismo inconsequente e à falta de respeito entre os Poderes. Sem sair desse processo de esgarçamento político e institucional, não será possível retomar os rumos do desenvolvimento.

O tamanho da crise atual pode ser mensurado por três aspectos. O primeiro é a combinação de múltiplos fatores, o que gera uma tempestade perfeita. Não é apenas um mal momento do presidente da República, mas também do Congresso Nacional e de quase toda a classe política. As pesquisas de opinião revelam algo similar ao contexto argentino, ocorrido no começo da década passada, em que se dizia "que se vayam todos". Os principais partidos aparecem na Operação Lava-Jato e há um grande medo em relação à delação premiada da Odebrecht, gerando um clima de fim dos tempos entre os políticos.

Soma-se a isso a bancarrota dos Estados, quebrados numa proporção tal que grande parte deles não consegue honrar os salários dos servidores. Parcela importante dos municípios poderá entrar nesse clube dos desesperados no ano que vem. É importante lembrar que funcionários públicos constituem um contingente significativo em várias partes do país, com reflexos sociais imprevisíveis. Ademais, a crise na Federação pode levar a deterioração rápida da prestação dos serviços públicos básicos, num país em que a qualidade da gestão pública já não é das melhores.

Na lista de múltiplos fatores, deve-se acrescentar a crise econômica, persistente e com sinais ruins para todos os lados: recessão, desemprego elevado, baixa produtividade do trabalho, empresas em deterioração e taxas de juros absurdamente altas. Obviamente que é preciso fazer um rearranjo nos gastos do setor público, porém isso não trará ganhos de curto prazo. E mesmo que reformas melhorem as expectativas dos agentes econômicos (e sou a favor de determinadas reformas), por um bom tempo os brasileiros continuarão a perder emprego e renda. É um passo para a explosão social, essa sim com potencial de desestabilizar o poder político.

Para finalizar a tempestade perfeita, o choque entre os Poderes ganhou uma dimensão para além dos controles mútuos necessários a uma democracia - os "checks and balances" definidos pelos pais fundadores dos Estados Unidos. Decerto que o reforço do sistema de Justiça foi um avanço gerado pelas regras da Constituição de 1988. Também é verdadeiro que o Ministério Público e o Judiciário têm cumprido papéis importantes na melhora do país, incluindo aí a Operação Lava-Jato. Mas é igualmente correto dizer que tem havido exageros por parte de promotores, juízes e ministros do STF. A ânsia pela justiça, partindo de uma hipótese benigna, tem atropelado preceitos básicos da democracia e da convivência institucional.

Surge então o segundo aspecto, bastante alarmante: o país está namorando com a crise institucional. Enquanto vivia-se uma crise política, mesmo que em maiores proporções do que no passado recente, ainda havia a esperança de que no final as instituições dariam conta. Mas quando os Poderes batem cabeça, com decisões conflitantes e, pior, tomando medidas que aparentam represália em relação ao outro, o efeito pode ser a instauração de um vale-tudo institucional.

É importante, sem dúvida alguma, aperfeiçoar a legislação contra o abuso de autoridade, inclusive em relação aos atos dos operadores do sistema de Justiça. Mas colocar promotores e juízes como "culpados até prova em contrário", como fez o texto discutido no Congresso, é um desatino. Na mesma linha, uma decisão monocrática do STF afetar a definição da presidência do Senado é um ato desproporcional de poder. Não tenho nenhuma simpatia política por Renan Calheiros, mas o que está em jogo é um princípio institucional, e não as pessoas. Como dizia o grande filosofo italiano Norberto Bobbio, a garantia de uma boa democracia depende mais da garantia do governo das leis (das instituições) do que do governo dos homens.

A crise institucional também está noutro fator que, em geral, tem sido visto como positivo. Vou remar contra a corrente, mas é preciso dizer que não é alvissareiro quando membros não eleitos do sistema de Justiça começam a mobilizar as ruas em nomes de suas ideias e, cabe reforçar, interesses. O Ministério Público mobilizar a sociedade para montar um pacote contra a corrupção, juntamente com outros grupos sociais, não é um problema em si. Esse conjunto de medidas continha, é bom que se diga, coisas boas e outras flagrantemente antidemocráticas. Usar provas ilícitas e métodos controversos - para dizer o mínimo - para selecionar a burocracia de Estado não contribuem em nada para reduzir a corrupção e efetivamente cercearão os direitos individuais no país.

O problema da ação do Ministério Público começa quando ele mobiliza a sociedade para reagir ao voto no Congresso, considerando que só sua proposta na integra pode ser aprovada pelos legisladores - qualquer outra situação seria ilegítima, mesmo os deputados sendo eleitos pelo povo. Pior: membros da força-tarefa da Operação Lava-Jato ameaçaram sair do caso se suas ideias não fossem referendadas pelo Legislativo. A partir de então, o chamamento às ruas é de uma instituição que se comporta como um ente político, um verdadeiro partido político. Começa aqui uma crise institucional, relativa ao papel adequado das instituições. Em nenhum país do mundo uma organização formada por não eleitos pode ser o principal instrumento da democracia. Somente em nações governadas pelo autoritarismo isso ocorre e com resultados muito ruins.

O Ministério Público Federal, assim como o Judiciário e a Polícia Federal, tem cumprido um papel importantíssimo na Operação Lava-Jato. Mas as instituições de controle devem ficar no papel de fiscalizadores e não no de legisladores. Se alguns de seus membros quiserem exercer essa função, que concorram a eleições. Mas devem ser honestos desde já e apresentar publicamente seu interesse político, que será legítimo se não usarem os instrumentos de Estado para construir suas carreiras de "salvadores da pátria". Nenhum país desenvolvido e democrático foi salvo por líderes messiânicos advindos do sistema de Justiça. A democracia é um processo bem mais complexo e envolve uma multiplicidade de atores, que devem negociar suas pautas e produzir consensos possíveis. Qualquer outra concepção de democracia é, na melhor das hipóteses, ingênua, ou, na pior das hipóteses, autoritária.

As principais lideranças sociais, políticas e judiciais têm que começar a atuar, o mais rápido possível, para estancar a crise institucional. Ninguém ganha com ela, nem os que acham que vão substituir os "políticos corruptos" pois seriam incorruptíveis. Robespierre seguiu essa lógica, em nome até de bons ideais, só que os resultados não foram muito bons para os direitos humanos nem para a economia francesa da época. É preciso mais parcimônia, tolerância e diálogo para sair da crise.

Entretanto, aqui entra o terceiro aspecto que dá um caráter mais perigoso à crise atual: os líderes que temos não têm tido a temperança e/ou a legitimidade necessárias para agir contra a bola de neve que está nos esmagando. Do lado político, além de quase toda a classe estar desacreditada, aqueles que poderiam cumprir esse papel estão envoltos numa guerra fratricida desde a eleição de 2014. Polarizações e conflitos não são necessariamente ruins, mas se tornam dramáticos quando a radicalização impossibilita qualquer ponte entre as partes. Não temos um Tancredo Neves à disposição. Porém, será necessário que as principais lideranças sejam pressionadas pela sociedade para iniciarem um diálogo que nos leve, mesmo que paulatinamente, a sair da crise.

A questão que atrapalha essa proposta é que a sociedade também está muito cindida. E a persistência da crise econômica tenderá a tornar diversos atores mais céticos quanto à resolução do atual estado de coisas. Desse modo, as lideranças deveriam acreditar que as ruas são parte da democracia, mas não a esgotam. Aliás, o voto é até mais representativo que a mobilização social, pois envolve a todos (inclusive os não mobilizados), embora ele também não seja o único instrumento da política democrática. Recuperar as instituições políticas é melhor do que destrui-las, sempre. É por esse caminho que as lideranças sociais deveriam trilhar.

E não menos importante, por fim, é conclamar as lideranças judiciais a terem a parcimônia necessária para ajudarem na garantia da democracia. Se promotores e juízes ocuparem completamente o espaço da política, e por ação própria, o país será levado a uma crise institucional sem paralelos. Se forem democratas, deverão pensar nisso, urgentemente.
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Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP.

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