sábado, 17 de dezembro de 2016

A crise da representatividade

• Principal caixa de ressonância do sistema político brasileiro, o Congresso conclui o ano mais turbulento de sua história recente e atinge recorde de rejeição, mas acelera votação

A hora mais extrema

Por Ricardo Mendonça – Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

BRASÍLIA - "Estamos vendo várias pessoas sendo acusadas. Uma esculhambação generalizada na nossa democracia, briga entre os Poderes, lambança institucional. E as propostas que aparecem na Câmara e no Senado são só para tirar direitos dos trabalhadores. Luta do poder pelo poder, por interesses pessoais. É um acúmulo de muitos anos em que a corrupção foi desvirtuando. Foi, foi, foi até explodir. Explodiu. E você não sabe o que vai acontecer em janeiro. Quem vai ser o presidente do país? Fernando Henrique Cardoso? Nelson Jobim? Michel Temer? Ou é eleição direta? É uma enorme instabilidade. De todo o período que eu estou aqui, este é o ano mais podre do Congresso, o mais conturbado e o mais complexo."

A fala acima, num tom que mescla indignação com desabafo, é do senador Paulo Paim (PT-RS), prestes a completar três décadas de atuação ininterrupta no Congresso Nacional. Ele chegou à Câmara em 1987 como deputado constituinte, participou dos trabalhos que resultaram na Constituição do ano seguinte, marco da consolidação da redemocratização do país, e, com votação crescente eleição após eleição, nunca mais saiu. Parece perplexo.

Fazendo um balanço do mesmo parlamento, do mesmo ano de 2016 e dos mesmos episódios, o igualmente experiente deputado federal Miro Teixeira (Rede-RJ), também constituinte e agora no curso de seu 11º mandato na Casa - ele chegou à Câmara em 1971, no auge da ditadura -, faz uma avaliação radicalmente oposta.

"Este é um ano dourado do Congresso Nacional. É o ano das revelações", diz. "Tudo aquilo que estava por baixo dos panos, as falcatruas, as suspeitas, tudo isso começou a surgir. E sempre que surge, que é revelado, você pode trabalhar soluções. É o ano que você desmascara os responsáveis por esse sequestro do poder. Quando tem as coisas ocultas é que você não resolve. Isso tudo é bom ou mau? Mau seria a ocultação. O sol é o melhor desinfetante, como dizia aquele juiz americano, não é? Então 2016 é o ano que todos nós estávamos esperando. Um ano formidável, que lamentavelmente está acabando. Vejo com muito otimismo", conclui. Miro está radiante.

Apesar de destoantes nas expressões e no que tentam sinalizar para o próximo período, as duas análises coincidem num aspecto. Refletem que o momento do parlamento brasileiro, a principal caixa de ressonância de todo o sistema político, é inédito, extremo e delicado.

Um breve retrospecto da lista de provações e ineditismos recentes promovidos ou sofridos pela Câmara e pelo Senado dá dimensão deste que, sem exagero, parece ser o período mais tumultuado da política brasileira desde a redemocratização do país. No intervalo de 12 meses, ocorreram:

• - Impeachment de Dilma Rousseff da Presidência da República, o segundo processo desse tipo em menos de um quarto de século, desta vez interrompendo um período de 13 anos de PT no centro do poder;

• - Tensão crescente com o imprevisível curso da Operação Lava-Jato, a maior, mais abrangente e mais bem-sucedida ação policial contra a corrupção na história do Brasil e que tem dezenas de parlamentares em sua mira;

• - Tentativas às vezes dissimuladas, às vezes desesperadas, mas até agora sempre frustradas de bloqueio da Operação Lava-Jato ou anistia para políticos e partidos que incorreram em ilícitos, como o caixa dois;

• - Afastamento e prisão do mais ágil, polêmico e poderoso presidente da Câmara em décadas, o deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), principal condutor do impeachment de Dilma;

• - Ressurgimento do consórcio suprapartidário de integrantes do baixo clero (chamado "centrão") como força política numerosa e apetitosa, porém carente de orientação após a derrocada de Cunha;

• - Invasão violenta do plenário da Câmara por parte de grupos de extrema-direita, muitos deles com discursos frequentemente vistos em redes sociais de clamor por intervenção militar e volta da ditadura;

• - Ordem descumprida e depois revogada de afastamento de Renan Calheiros (PMDB-AL) da presidência do Senado, realçando uma grave disputa de poder com o Supremo Tribunal Federal (STF).

• - Protestos de rua pela derrubada dos principais líderes do Congresso, Cunha e Renan, inicialmente, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), mais recentemente;

• - Manifestações com depredações e repressão policial após votações de normas impopulares, como ocorreu na última terça-feira em São Paulo e Brasília com a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do teto de gastos pelo Senado.

Tudo isso em meio a maior crise econômica do país em décadas; ao novíssimo ambiente de competição eleitoral com proibição total de financiamento por parte de pessoas jurídicas - modalidade que muitos classificam como a espinha dorsal do sistema político nos últimos 20 anos-; e a aquela que talvez seja a maior crise de representação que se tem notícia no Brasil e no cenário internacional, com manifestações muitas vezes intolerantes de rejeição à política e aos políticos.

O aumento da intolerância, a propósito, é destacado como o produto mais execrável do atual ambiente político na opinião de outro dos mais experientes parlamentares de Brasília, o deputado e ex-governador catarinense Esperidião Amin. Membro do conservador PP, ele recorre ao autor francês marxista Jacques Rancière, de "O Ódio à Democracia" (Boitempo), para sustentar sua visão. "O livro casa com o modelo atual do Brasil e com aquilo que o [presidente dos Estados Unidos, Barack] Obama declarou em Atenas após as eleições: a democracia tem muita dificuldade quando os lados são profunda e radicalmente antagônicos. A intolerância é uma forte conspiração contra o estado democrático de direito, e é esta fase que estamos vivendo no Brasil hoje", diz.

Para coroar o peculiar ano do Congresso Nacional, uma pesquisa do instituto Datafolha que acaba de sair do forno mostra que deputados federais e senadores atingiram em dezembro o recorde histórico de desaprovação popular.

O levantamento com 2.828 entrevistas feitas nos dias 7 e 8 de dezembro (margem de erro de dois pontos para mais ou para menos) mostrou que de cada dez brasileiros, seis (58%) classificam o desempenho de deputados e senadores como ruim ou péssimo. No polo oposto, só 7% o julgam como bom ou ótimo. Para 31%, é regular.

Até então, o pior resultado na longa série do instituto com essa questão havia sido registrado 23 anos atrás, em setembro de 1993, com 56% de desaprovação e 7% de aprovação. Por coincidência, também era um período de pós-impeachment, na época com Itamar Franco (1930-2011) concluindo o mandato que originalmente pertencia ao afastado Fernando Collor de Mello.

Outro recorde alcançado nessa semana, ressalta o diretor-geral do instituto, Mauro Paulino, é o da falta de identificação do eleitorado com os partidos políticos. No momento em que o número de legendas registradas no país e com representação no Congresso nunca foi tão alto (são 35 partidos aptos reconhecidos pela Justiça Eleitora), 75% dos brasileiros dizem que não têm nenhuma preferência partidária.

A maior taxa apurada anteriormente era a de 70% de nenhuma preferência partidária, resultado de uma pesquisa feita em setembro de 2016. "A descrença é geral", diz Paulino. "E cada novo episódio [produzido ou protagonizado pelos políticos] só serve para acentuar ainda mais essa tendência. Nisso, não há diferença relevante por renda, escolaridade ou região do país."

Com abordagens um pouco diferentes, um outro levantamento nacional realizado praticamente no mesmo período pelo instituto Paraná Pesquisas aponta para as mesmas tendências.

Entre os dias 6 e 8 de dezembro, com 2.016 entrevistas e margem de erro de dois pontos, o estudo apurou que 68,6% dos brasileiros são a favor do fechamento do Congresso e convocação imediata de novas eleições para deputados e senadores. Detalhe: os parlamentares que sete de cada dez eleitores já querem substituir ainda não completaram metade do mandato. Isso sem considerar que a ideia radical e simplória de cancelamento da atual legislatura e convocação imediata de novas eleições é uma possibilidade que dificilmente encontraria amparo legal.

O Paraná Pesquisas apurou ainda a falta de confiança no Congresso para eventualmente escolher um novo presidente do país, caso Michel Temer caia ou renuncie a partir do ano que vem. Nessa hipótese, com mais de 50% do mandato original cumprido (conta-se desde a posse de Dilma, em janeiro de 2015), a Constituição prevê eleições indiretas. Trata-se de um caminho, porém, que teria aval de apenas 6% dos brasileiros. A avassaladora maioria de 90,8% entende que essa escolha deveria ser feita por meio de eleições diretas, com votos de toda a população.

Há pelo menos um consolo nesse emaranhado de dados desabonadores ao Congresso nas diferentes abordagens das duas pesquisas. Conforme sugere a mesma rodada do Datafolha, a descrença geral no parlamento não se traduz em simpatia por uma alternativa autoritária. Os que afirmam preferir a democracia a qualquer outro tipo de regime somam 62%, taxa estável na comparação com levantamentos anteriores, ante apenas 12% para quem, em certas circunstâncias, seria melhor uma ditadura.

O cientista político e colunista do Valor Fernando Luiz Abrucio, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) em São Paulo, classifica o atual momento do país como o de maior crise desde o fim da ditadura. Uma "crise múltipla" ou "tripla crise", segundo sua definição, que só é mais visível no Congresso Nacional - o espaço da política por excelência -, mas que se manifesta também nos Poderes Executivo e Judiciário e é influenciada pelo ambiente internacional.

A primeira das três crises, diz, é a conjuntural, com vertentes na economia e na política. Na economia, trata-se da enorme dificuldade de crescimento e geração de empregos enfrentada pelo país atualmente, parte grande disso tudo produto de erros cometidos pela ex-presidente Dilma Rousseff e do fracasso de suas apostas, sustenta. "Na política, acho que está claro agora que o problema não era a Dilma, é o PMDB. O PMDB é o centro da crise política", afirma Abrucio.

A segunda, diz, é o que ele chama de crise do modelo político. "É a corrupção e esse negócio de não se sentir representado pelos que estão lá. Basta ver as baixíssimas taxas de identificação partidária no Brasil", disse Abrucio, antes mesmo da divulgação dos últimos dados do Datafolha. Ele também coloca nessa categoria o papel de juízes e promotores cada vez mais afoitos na atuação política e "o modelo sem igual no mundo" do Ministério Público no Brasil.

E a terceira crise, sustenta, é a chamada crise do modelo de Estado. "Basicamente, o nosso problema fiscal: a questão de como financiar as políticas sociais no país".

Com o colega Marco Antônio Carvalho Teixeira, também cientista político e professor da FGV, ele é especialmente crítico ao papel que tem sido desempenhado pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público. "O grave é que fazem política sem legitimidade para tal", afirma Teixeira.

É a deixa para Abrucio listar exemplos do que acha errado, exagerado ou abusivo nas relações entre os Poderes: "O Ministério Público pode propor dez medidas contra a corrupção - é legítimo. Mas o que não pode acontecer é o Congresso não aprovar exatamente como eles querem e aí eles chamarem as ruas, pedirem manifestações. Também não dá para procurador da Lava-Jato dizer 'nós vamos nos demitir' se [o pacote de dez medidas] não sair como eles querem. Se for isso, é o fim da representação. Aí nesse caso para que serve o Congresso? Se alguém do Ministério Público quer redigir a lei, que então concorra nas eleições", completa.

A desmoralização do Congresso, segundo avaliação dos dois pesquisadores entrevistados simultaneamente pelo Valor, facilita esse tipo de comportamento. Mas as regras do sistema de Justiça, lembram eles, deveriam servir para colocar um freio no assédio. Não servem.

"Outra coisa: não tenho a menor simpatia pelo Renan [Calheiros]. Mas realmente não pode uma decisão monocrática de um juiz [Marco Aurélio Mello, do STF] tirar do cargo o presidente de outro Poder da República", afirma Abrucio, em alusão ao mais recente entrevero entre Legislativo e Judiciário, superado com a decisão do pleno da corte pela manutenção do pemedebista no posto. "E não pode a mulher de um juiz de um caso gigantesco como é a Lava-Jato, a mulher do Sérgio Moro, comandar pela internet a mobilização das ruas. Eu sou da época em que as instituições judiciais falavam menos", conclui.

Mas, apesar do momento de extrema dificuldade, carregado de tensões e desafios inéditos, engana-se quem acha que o Congresso está com as atividades paralisadas. Depois de um primeiro semestre praticamente travado com a ofuscante agenda do impeachment de Dilma, as duas Casas apresentaram um ritmo classificado por muitos até como "surpreendente" de votação e aprovação de matérias no segundo semestre.

"Temos uma situação paradoxal", diz o advogado e cientista político Murillo de Aragão, presidente da consultoria Arko Advice, que recentemente promoveu um evento com o presidente Michel Temer. "De um lado, um Congresso acuado pela opinião pública, imprensa e pela Operação Lava-Jato, alvo de manifestações. Por outro, um Congresso que avançou em pautas relevantes, como DRU (Desvinculação de Receitas da União), a lei do pré-sal (que retira da Petrobras a condição de operadora única), a lei da telefonia, a PEC dos gastos, a medida provisória do setor elétrico e a medida provisória das parcerias e investimentos, entre outras", destaca. "Apesar do clima confuso e da elevada fragmentação partidária, a produtividade do Congresso da era Temer é muito alta."

Marco Antônio Carvalho Teixeira compara com 1992, ano do impeachment de Collor, quando a paralisia foi praticamente completa. "Até outubro daquele ano, os congressistas só votaram duas medidas provisórias", lembra. A diferença desfavorável para o momento atual, destaca, é que 24 anos atrás o impeachment ocorreu quando o sistema partidário brasileiro estava começando a se consolidar, "o que gerou um período de grande estabilidade política entre 1993 e 2013", afirma. "Agora, o impeachment em meio à crise se dá com o sistema partidário em frangalhos."

Para alguns, estar trabalhando e aprovando matérias, porém, não é, necessariamente, um sinal positivo do Congresso Nacional. O analista político Antônio Augusto de Queiroz, experiente pesquisador do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), entidade que produz estudos para sindicatos e centrais de trabalhadores, entende que "mudanças significativas estão sendo feitas sem que as pessoas estejam se dando conta". Todas elas, sustenta, no sentido de atender a reivindicações de empresários que enxergam as fragilidades de Temer e do Congresso como uma oportunidade para fazer valer seus interesses.

"De fato, foi um ano atípico [para o Congresso]. E o que está havendo com todas essas medidas que estão sendo aprovadas é uma mudança de paradigma das relações do Estado com o mercado, numa velocidade que não é comum nem nos tempos de normalidade", diz.

Angustiada, a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), de oposição ao governo Temer, também vê de forma crítica a súbita produtividade de seus pares. "Em alguns momentos, não votar pode ser o melhor caminho. Ganhar tempo. Isso que estão fazendo agora, era melhor que parasse mesmo. Porque o que estão aprovando é tão ruim, que era melhor não ter", disse na segunda-feira, enquanto dava os retoques finais, junto com a petista Gleisi Hoffmann (PR), a um recurso ao STF para barrar ou atrasar a votação da PEC do teto de gastos, petição que, horas depois, acabou rejeitada pelo ministro Roberto Barroso.

Quem viu 2016 com espanto ou perplexidade dificilmente sairá do susto com a agenda e os "desafios" do Congresso para o início de 2017. Pelo menos três temas na pauta já são promessas de tumultos tão grandes ou ainda maiores que os desse ano, acenando com mais instabilidade.

O primeiro, que já se colocou com o vazamento do conteúdo de uma das 77 delações premiadas da empreiteira Odebrecht, a do executivo Cláudio Melo Filho, é como lidar com o que promete ser o auge da Operação Lava-Jato. Como a Odebrecht era a maior e mais tradicional financiadora de campanhas, políticos e partidos, esse pacote de delações é a promessa de mais nomes na roda-viva das investigações, mais detalhes a respeito de figuras já citadas e volumes ainda maiores de recursos que teriam circulado de forma ilegal.

O segundo, que começa a se insinuar com mais clareza - inclusive gerando dificuldades para Temer nomear o deputado tucano Antônio Imbassahy (BA) como ministro forte de seu governo -, é como será a eleição para a presidência da Câmara dos Deputados. Interessadíssimo em concorrer à recondução do cargo, Rodrigo Maia enfrenta relevantes obstáculos jurídicos (o regimento proíbe reeleição no meio de uma legislatura), além de forte resistência do "centrão", que acredita ter chegado a sua vez.

E o terceiro, prenúncio de desgaste popular muito maior que o sofrido com a aprovação da PEC do teto de gastos, será como encaminhar a dura reforma da Previdência proposta pelo governo Temer. Isso se, até lá, o problema do Congresso não for como fazer a eleição indireta para a sucessão do próprio Temer.

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