quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Trump e a praça Zuccotti - Maria Cristina Fernandes

- Valor Econômico

• Repressão unilateral da contestação contribuiu à eleição

Foi um voto antissistema, dizem os americanos. Ou anti-establishment, como se fala no Brasil. Ainda que o vitorioso seja um milionário e aqueles que garantiram sua vitória, de maioria branca. O país já teria sucumbido à barbárie se a maioria dos eleitores de Donald Trump compartilhasse da misoginia e da xenofobia do discurso eleitoral. Há de se buscar as razões da contestação para além de raça e gênero.

Não falta quem atribua o resultado a uma aliança conservadora global que arrebatou o eleitor do Brexit, enfezou-se com o plebiscito que bloqueou o acordo com as Farc na Colômbia e já ameaça a permanência da Holanda na União Europeia. E há ainda quem preveja como consequência da era Trump um abalo irremediável no livre-comércio, na Otan, nas políticas imigratórias de todo o mundo e até no aquecimento global.

Parte-se do pressuposto de que a decisão do voto é tomada numa mesa-redonda sobre geopolítica, mas o eleitor faz sua escolha numa cabine individual e indevassável e se vale do universo mais restrito de seus interesses. Não se importa de ser acusado de politicamente incorreto num país onde empresas que pouco empregam têm o monopólio da virtude.

Se é difícil entender o voto do seu vizinho de baia, muito mais arriscado é elocubrar sobre as razões do eleitor de outro país. Mas parece razoável imaginar que o voto de rechaço nos Estados Unidos, como em qualquer lugar do mundo, é aquele que se insurge contra uma ordem que já não garante às novas gerações uma vida melhor do que aquela usufruída por seus pais.

Se o eleitor de Trump contrariou o desejo da maior parte da elite financeira, empresarial, política e das redações é porque há um divórcio entre a maioria que vota e a minoria que toma decisões. Como sói acontecer nesses litígios, ao invés de se questionar o modelo eleitoral que, depois de Hillary Clinton, acumulará cinco presidentes derrotados, a despeito de vitoriosos no voto popular, decreta-se a crise do sistema representativo.

Os arautos dos governos meritocráticos, que podem funcionar melhor sem a irracional interferência do eleitor, já ganhavam terreno antes da eleição de Trump. Agora vão pontificar em todos os debates sobre o futuro da democracia, a começar daquele que se insinua no Brasil sobre o voto facultativo.
Se já há conclusões possíveis a tirar da eleição de Trump, no entanto, é que a representação só melhora com mais democracia, não menos. Cinco outonos atrás, um outro protesto contra a ordem estabelecida sacudiu os Estados Unidos. Tomou o centro financeiro de Nova York e depois se espalhou pelo país.

O reduto do movimento ficava numa praça a dois quarteirões do Banco Central americano e a três da Bolsa de Valores. Já se anunciava desde o batismo - 'Occupy Wall Street' - como contrário aos desdobramentos da crise de 2008, quando os bancos foram salvos por um contribuinte que pagou com mais desigualdade a conta da desregulamentação financeira.

Trump e 'Occupy' colheram discípulos entre os excluídos da globalização. O eleitor do presidente republicano e o manifestante da praça Zuccotti parecem divergir em quase tudo, menos na intensidade da insatisfação. Se o primeiro liderou um movimento que se impôs às instituições e o tornou o homem mais poderoso do mundo, o segundo foi alvo, pelas mesmas instituições, de repressão que o excluiu do tabuleiro.

Sob o guarda-chuva do governo Barack Obama, que completava seu segundo ano, o FBI compôs com a polícia e com representantes dos bancos uma força-tarefa de vigilância e repressão que etiquetou o movimento de 'ameaça terrorista'.

Cinco anos depois, o mesmo FBI comprometeria a candidatura Hillary Clinton pela condenação prévia ao uso de um servidor particular para a troca de emails da então secretária de Estado. Ao longo de 18 meses, o caso ganhou mais espaço na imprensa do que a recusa do adversário em divulgar seu Imposto de Renda.

O movimento de 2011 acabaria com cenas de repressão que levaram para o coração de Nova York modos de ditadura árabe. Uma das presas, uma jovem de 23 anos, foi condenada a três meses de detenção, multa de US$ 5 mil, 500 horas de serviços comunitários e cinco anos de liberdade vigiada.
A garota, que saíra de casa adolescente depois de decidir que não apanharia mais do pai nem de nenhum dos namorados da mãe, foi presa por ter reagido à abordagem policial com uma cotovelada. Acaba de publicar seu relato nos Estados Unidos ("From Zucotti to Rikers: In Memoir, Political Prisoner", Cecily McMillan).

Enquanto esta força-tarefa cuidava de reprimir os manifestantes da praça Zuccotti, o discurso hostil à aliança entre a burocracia de Washington e as finanças de Wall Street continuava a alimentar, impunemente, aquele que, mais tarde, se tornaria o eleitorado de Donald Trump.

O candidato republicano foi bem sucedido no terreno em que 'Occupy' falhou. Entre outros motivos porque a repressão ao movimento dissociou-o das iniciativas do governo Barack Obama pelo aumento do salário mínimo ou pelo refinanciamento das dívidas dos estudantes universitários.

Enquanto a repressão dissociou a emergência das reivindicações do avanço, ainda que mitigado, de sua plataforma, o populismo de Trump foi incorporado pelas regras do jogo e nelas ganhou audiência, venceu as prévias e derrotou uma candidata que custou, na campanha, a desfazer a imagem de preferida de Wall Street.

Sem os manifestantes de 2011 provavelmente o Partido Democrata não teria assistido à emergência da geração Bernie Sanders, mas a força-tarefa 'anti-terrorista' foi tão bem sucedida que a desigualdade se colocou no centro do debate eleitoral de dois candidatos nova-iorquinos costeando o alambrado da praça Zuccotti.

Parece improvável que Trump seja capaz de cumprir à risca as ameaças de seu palanque e vire Wall Street e tudo mais ao avesso. Republicana, a nova maioria do Congresso não é Trump. Ainda assim, sua eleição pode afetar a vida até de quem nunca tomou conhecimento de sua existência.

A força da gravidade e a crise infinita dos tradicionais parceiros europeus levarão as ditas elites apavoradas a se acomodar à era Trump. Até porque a alternativa é reconhecer que a repressão unilateral da contestação à ordem contribuiu para o resultado.

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