segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O atraso no comando - Marcos Nobre

- Valor Econômico

• A ameaça vem em forma de chantagem: anistia geral ou caos

Ainda ontem se podia consultar no site oficial do PSDB a transcrição de uma conversa entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o então senador pelo PT Cristovam Buarque. Está datada de 29 de novembro de 2004. Cristovam já era ex-ministro da Educação do governo Lula e viria a sair do PT no ano seguinte, quando do aparecimento da denúncia do mensalão.

Na conversa, FHC responde nos seguintes termos a uma pergunta de Cristovam sobre as brigas entre PT e PSDB impossibilitarem "um trabalho": "Não discutimos nem disputamos ideologia. É poder, é quem comanda. Minha ideia para o Brasil é a seguinte: você tem uma massa atrasada no país, e partidos que representam esse atraso, clientelismo. Os dois partidos que têm capacidade de liderança para mudar isso são o PT e o PSDB. Em aliança com outros partidos. No fundo, disputamos quem é que comanda o atraso. O risco é quando o atraso se comanda. É um pouco o negócio do pacto com o diabo, do Fausto, não é? Você pode perder a sua alma nesse processo, porque o atraso pode te comandar".

Parece haver pouca margem para duvidar de que o atraso está no comando de si mesmo. O difícil é entender o que isso pode significar nas circunstâncias atuais, que não são apenas brasileiras. Porque a crise de representação política que emergiu nas ruas em várias partes do mundo a partir de 2011 mostra que polarizações como a que existiu entre PT e PSDB não são mais capazes de canalizar as energias e a raiva social disseminadas um pouco por todo lado. A Lava-Jato é um elemento do contexto local que agrava essa crise em um grau dificilmente encontrável em outros lugares.

Ao mesmo tempo, nenhum sinal claro de reorganização surgiu ainda no horizonte para permitir vislumbrar a produção de uma conexão, mesmo que em grau mínimo, da sociedade com o sistema político. O impeachment de Dilma Rousseff significou uma decisão do sistema de ignorar as consequências para a economia do país de uma guerra parlamentar de mais de um ano. Não por acaso, o atual governo assinou promissórias de alto custo para viabilizar sua ascensão ao poder. Vendeu a ideia de que o preço para alcançar estabilidade política seria o aumento temporário da instabilidade. Prometeu compensar um agravamento temporário da crise econômica com a retomada do crescimento logo adiante. E, de quebra, propagandeou que o processo de impeachment iria reconectar a sociedade ao sistema político. Não conseguiu produzir nenhuma dessas coisas. Vendeu o que não tinha para entregar.

Só que tudo isso ainda não é o mais grave do ponto de vista dos interessados mais diretos na mudança de governo. O impeachment representou um pacto do sistema político para controlar, restringir e bloquear a Lava-Jato e suas filiais. O impeachment só foi possível mediante a promessa de um amplíssimo pacto de salvação. Entregar um ou outro boi já ferido de morte e fazer passar a boiada, foi esse o mote do impeachment no sistema político. Muito foi feito nessa direção pelo atual governo, com razoável sucesso. Mas já ficou claro que o muito que foi feito ainda é pouco para tirar do mar a quantidade de políticos a quem se garantiu botes e coletes salva-vidas que não existem. Não há como um governo controlar uma operação como a Lava-Jato quando se encontra em completa desconexão com a sociedade.

As últimas semanas mostraram que teve início uma nova etapa da guerra da política oficial em defesa de seu próprio salvamento. Passou já o prazo de validade para medidas diretas de contenção dentro do governo. O fracasso da tentativa de decretar uma anistia geral mediante uma manobra parlamentar na calada da noite mostrou não apenas o constrangedor nível tabajara dos envolvidos. Mostrou, sobretudo, que o enfrentamento do problema precisa ser público e ruidoso. Ou não será.

Da mesma forma como o sistema político simplesmente virou as costas para a economia durante a longa agonia do impeachment, também agora o projeto de salvação geral da política oficial decidiu que vai virar as costas para a sociedade. As eleições municipais já ficaram para trás, as próximas só em dois anos. A salvação geral tem agora prioridade sobre qualquer outra coisa.

Como no momento do impeachment, a atual nova fase da política é feita de aplainamentos, ameaças e promessas. Durante dez anos, aplicou-se a ideia do aplainamento geral ao PT, de maneira a martelar que, ao contrário do que pretendia, o partido era igual a qualquer outro. A diferença agora é que o nivelamento por baixo é usado não para demonizar um partido específico, mas para tirá-los todos ao mesmo tempo da encalacrada da Lava-Jato.

A política oficial tem clareza de que não há salvação individual no atual contexto. Ou se salvam todos, ou caem todos. Assumir que todos os partidos são iguais perante a Lava-Jato significa nesse caso dizer que todo o sistema político ruirá simultaneamente caso não venha a anistia geral. E que as pessoas podem não gostar, mas é o que tem para hoje. O confronto com a sociedade é aberto e se exprime sob a forma da ameaça: ou um sistema político apodrecido, ou nenhum sistema político; ou anistia geral, ou o caos. E o caos tem já sua imagem privilegiada: é a extensão das sete pragas do Estado do Rio de Janeiro para todo o país.

Claro que o nivelamento por baixo e as ameaças vêm acompanhados também da promessa de que o sistema vai se regenerar. Troca-se passar uma borracha no passado por um novo começo, do zero, sem as falcatruas encontradas pela Lava-Jato. Troca-se a anistia geral por algo que se costuma chamar de reforma política. Mas não se pede a sério que ninguém acredite, nem isso é necessário.

Chantagear o país com o caos em troca do salvamento geral da política oficial é a maneira como o sistema faz suas promessas atualmente. E nada indica que vá se deter neste momento. Parece ter se estabelecido como verdade indiscutível em Brasília que as próximas quatro semanas representam a última janela de oportunidade para resolver o assunto em definitivo. Por pior que já tenha sido, 2016 está ainda longe de acabar.
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Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap. 

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