quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Um político de verdade – Fernando Henrique Cardoso

- O Globo

Em programa sobre Ulysses Guimarães na Globo News, o jornalista que mais sabe sobre ele, Jorge Bastos Moreno, repetiu frase minha dizendo que o silêncio e o olhar de Ulysses pesavam mais do que a pata de um elefante, tal era a liderança e o respeito de que gozava. Ulysses representou, literalmente, o que é ser um político, um líder. Tinha coragem. Há episódios que ilustram esta virtude. Seja o ousar chamar os generais da trinca que mandava no Brasil de “os três patetas”, quando fizeram por sua conta e gosto um reforma nas regras eleitorais, seja o haver desempenhado o papel de anticandidato à Presidência, quando esta era decidida pelos votos controlados pelo governo no Colégio Eleitoral, seja o ter enfrentado a polícia baiana que, com com cães, buscou impedi-lo de ingressar na sede do MDB em Salvador.

Recordo-me do Ulysses anterior aos tempos de glória. Conheci-o (mas não ele a mim) quando de sua candidatura frustrada ao governo de São Paulo, na década de 50, pelo PSD. Meu pai era deputado federal pelo PTB-SP, aliado ao PSD. A seu pedido, para apoiar Ulysses, inscrevi-me no diretório do PSD de Ponte GrandePonte Pequena. Segui-o em suas peregrinações. Figura esbelta, desprovido de cabelos, os olhos verdes penetrantes e o linguajar erudito causaramme impressão marcante.

Ele de mim só tomou conhecimento na década de 70. Lembro bem da visita que me fez com João Pacheco Chaves na instituição em que então trabalhava, o Cebrap, núcleo de intelectuais resistentes aos arbítrios do regime. Pediram-nos ajuda na preparação de um programa para a campanha que se avizinhava, em 1974. Alguns se dispuseram a cooperar. Feito o programa (matriz para vários posteriores) fomos a Brasília apresentá-lo ao MDB. Aprovaram-nos. O programa, encapado de vermelho, serviu para agitar a campanha eleitoral. Em outubro de 1974, o MDB ganhou surpreendentemente as eleições legislativas. Virtude do programa? Não, de Ulysses.

Ulysses não era um político comum. Sabia que ganharia ou perderia pela voz e pelo gesto. Mas queria construir um partido e este se faz com homens (bastam uns poucos, decididos, dizia ele), mas só se mantém no poder democrático com ideias. Sabia que a vitória sem rumo leva ao caos. Acreditava na política com compromissos, a serem assumidos com responsabilidade.

Conto outro episódio. Em 1978, Severo Gomes e eu fomos à casa do general Euler Bentes Monteiro. Em outubro, o Colégio Eleitoral elegeria novamente o presidente pela via indireta. Para nossa surpresa, o general se dispunha a aceitar uma candidatura pela oposição. Severo enviou-me a São Paulo célere para que transmitisse a nova ao doutor Ulysses. Ele ouviu-me, nada disse. Dias depois, chamou-me à sua casa da Rua Campo Verde. Perguntou minha opinião. Disse-lhe que era favorável. Por quê?, indagou. Porque é a primeira vez que vejo uma divisão de monta no regime militar. Sozinhos, não os venceremos, estamos demorando demais em assumir a candidatura Euler. Foi quando me olhou com a expressão pesada (que qualifiquei de olhar de jacaré) e ficou em silêncio. Depois disse: “Uma decisão desta responsabilidade tomo sozinho. Você sabe que São Paulo é civilista.” Para quem não o conhecesse pareceria arrogância. Não era. Era senso de responsabilidade. Sentia que perante a História quem seria julgado pela decisão e por suas consequências seria ele, o chefe das oposições. Se há alguém na política recente do Brasil que foi engrandecido pela História, e não apenas absolvido, foi Ulysses Guimarães, um político de verdade.

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Fernando Henrique Cardoso Ex-presidente da República (1995-2002)

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