sábado, 22 de outubro de 2016

Paisagens humanas e sem fronteiras - Maria Cristina Fernandes

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

"Na prisão você encontra Deus,/ toda espécie de moscas, percevejos, pulgas, piolhos,/ contas a acertar,/ esperança o bastante para fazer um homem chorar de ódio,/ amizade e inimizade,/ desconfiança e lealdade,/ mas há uma coisa que resiste a entrar na prisão: o arrependimento./ A culpa é do que já morreu,/ a culpa é dos que ficaram lá fora,/ a culpa é do juiz."

Comunista, agnóstico e contemporâneo da guerra da independência de seu país, que perpetrou genocídios e endureceu com a Guerra Fria, Nazim Hikmet recolheu muitos de seus personagens entre companheiros de cárcere. Quando livros seus foram encontrados entre cadetes do exército, o escritor turco foi detido em 1938. Condenado a 28 anos, acabou solto em 1950 depois de greve de fome apoiada por uma campanha internacional liderada por Jean-Paul Sartre, Pablo Picasso e Pablo Neruda. Obrigado a fazer serviço militar aos 48 anos, Hikmet acabaria por buscar exílio na Rússia, sozinho, tendo a família sido proibida de acompanhá-lo. Aos 61 anos, morreria de enfarte em Moscou.

Traduzido em 50 línguas, Hikmet permaneceu largamente desconhecido no Brasil. Enquanto Orhan Pamuk, nascido em Istambul, professor de literatura da Universidade de Columbia e prêmio Nobel de 2006, já teve dez livros traduzidos no Brasil, Hikmet, celebrado como o maior poeta turco do século XX, teve seu épico "Paisagens Humanas do meu País" (Editora 34, 575 pags) publicado pela primeira vez no país este ano. A tradução é do professor de literatura turca da USP, Marco Syrayama de Pinto, que, na apresentação do livro, atribui a textura de sua poesia à possibilidade de Hikmet, filho da elite turca, conviver na prisão com camponeses, artesãos e operários.

"Paisagens" é um poema épico de 17 mil versos que ora toma a forma de diário de uma viagem de trem, ora de roteiro de cinema. De vagão em vagão, percorre conflitos familiares, grilagem de terras, corrupção, traições, ciúmes, deserções e assassinatos para montar uma enciclopédia de personagens por meio dos quais conta a história da Turquia. Seu lado é estabelecido desde a partida, quando descreve o cotidiano do maquinista: "Sempre que Aladin olha desse modo para trás/ - especialmente nas subidas -/ ele sente como se um cabo estivesse preso aos vagões/ e fosse puxado por seus próprios ombros./ E nas descidas/ ele sente aquele peso medonho/ entre as omoplatas."

"Paisagens" foi escrito nas prisões turcas do século passado, mas deu uma certidão de nascimento universal e atemporal para a intolerância ao descrever Nuri Cemil, personagem que encontrou num vagão da primeira classe. Orfão de pai, empobreceu na infância: "Numa miséria que doía como queimadura/miséria que só as crianças podem sentir/(não aquelas que nasceram pobres, mas as que se tornaram pobres)/ e invejava tudo o que não tinha/ vem em parte daí/(e em parte dos anos seguintes também)/ o fato de que por toda a sua vida odiou os pobres/ e teve respeito pelos ricos."

Tornou-se um liberal democrata arrivista - "Nunca leu um livro até o fim/ E nunca disse de um livro: 'não li'". Professou crença na liberdade absoluta do indivíduo até encontrar os donos de um grande jornal "capazes de inventar um herói a cada 24 horas". A eles ofereceu seus serviços e "abandonou a democracia como um chapéu usado".

O trem de Hikmet para nas aldeias e recolhe sobreviventes de um país dilacerado por conflitos, como Zehra: "Descuidada, mas linda e suja feito um gatinho selvagem". Fala com o olhar. Não tem pai. Ou não sabe se ele volta. A mãe está deitada sob um cobertor, nua, dura e entre pulgas. - "E a menininha Zehra, de cinco anos, sorri na estepe/ tão desligada do mundo que nem percebe que saiu da mesma cama de uma mulher morta/ e tão incrivelmente ligada ao mundo/ que consegue carregar uma jarra maior do que ela mesma/ e olhar alegremente para o trem que passa/ cheirar a estepe/ e sorrir".

O verso livre de Hikmet encontra num vagão o filho de um marceneiro cuja mãe morreu de parto. "Eu cresci na marcenaria/ dentro da caixa de ferramentas de meu pai./ Era uma caixa verde/ Ele tirava as ferramentas/ e me botava para dormir nela". O poeta se demora com os homens do povo que encontra na prisão, mas revisita sua memória para escrever sobre chefes políticos, plutocratas e ricos comerciantes como quem explora suas próprias feridas.

Hikmet aproximou-se do Partido Comunista ainda na adolescência, mas cresceu numa família enraizada na elite política turca. Um avô foi governador de província e o outro, militar e historiador. Ambos eram muçulmanos monogâmicos e cosmopolitas. Na infância, os avós lhe liam poetas da Turquia medieval e a mãe, Baudelaire. Seu primeiro poema surgiu aos 13 anos depois de testemunhar um incêndio perto de sua casa.

O avô paterno foi uma das maiores influências de Kemal Atartuk, herói da guerra da independência contra a Grécia, na qual o poeta lutou. Primeiro presidente do país em 1923 até sua morte em 1938, Atartuk fundou as bases do Estado laico e universalizou os direitos civis. Com sua morte, o regime endureceu e decretou a longa prisão de Hikmet.

Os discípulos do primeiro presidente enfrentaram o crescimento dos grupos islâmicos ao longo do século passado com a "teoria do sol" com a qual Ataturk mitificou os turcos como o povo originário da humanidade. Numa entrevista a jornalistas americanos, o líder turco provocou: "Vocês não são americanos, são turcos". Fazia alusão à hipótese de os primeiros habitantes terem partido das estepes turcas para chegar ao continente americano via estreito de Behring. O poeta ironiza a narrativa: "As crianças não têm noção do que foi o imenso Império Otomano/ Quando você diz 'padixá' (sultão), elas pensam que é o bicho-papão".

Os kemalistas dominaram a política até o golpe militar de 1980 que marcou o fortalecimento do islã sobre o Estado turco, consolidada com a vitória, em 2002, de Recep Erdogan, que governa o país até hoje.

Da familiaridade com o poder, surge no trem de Hikmet o funcionário público que resiste a aceitar propina de fornecedores do governo mas acabaria cedendo à pressão do partido, o engenheiro que dá o golpe numa companhia petrolífera americana até o industrial que tenta convencer um burocrata a obrigar os camponeses a usar uniforme de sua fabricação.

Antes que Hanna Arendt denunciasse a colaboração judia ao holocausto, Hikmet já descrevia o desembaraço de industriais judeus de toda a Europa que eram fornecedores da suástica e mantinham largas relações comerciais com a Turquia. Décadas antes da ameaça do terrorismo sobre a Europa, antecipava o vaticínio: "A Europa foi fundada com sangue, suor e lágrimas/ e com sangue, suor e lágrimas ela será derrotada./ Um edifício construído com argamassa e lágrimas/ não pode dar bom resultado".

O épico de Hikmet abriga conformistas do Alcorão, como o pai que consola o filho: "Para que retaliar obstinação com obstinação?/ Sê paciente, que a tua paciência será levada em conta por Deus/ Essas palavras me salvaram da loucura.../ Nunca interfira no trabalho ou nos lucros de ninguém/ nem fale sobre isso sequer consigo mesmo./ Não pense em nada senão no seu próprio trabalho e no seu próprio lucro".

O trem do poeta, no entanto, também vê o dia da vingança do vagão da terceira classe. Os Memets (pracinhas do exército turco) vivem amontoados com comichão e sede. Um dia um sargento de bigode e boina sobe à mesa e faz repetidas chamadas ao longo de três horas sem obter resposta. Perde a paciência e xinga as mães de todos: "É perigoso xingar um Memet,/ se ele for esperançoso/ ou se estiver sozinho na montanha./ Xingar dez mil Memets desalentados é mais perigoso ainda./ As mãos dos Memets agarram o pé da mesa/ e o sargento despenca dos ares de cara no chão./ Os Memets se abaixam, se levantam,/ e do corpo do sargento não deixam/ nem carne, nem osso, nem boina limpa".

Os Memets do século XXI se rebelaram em praça pública, numa das mais resistentes manifestações da primavera árabe em junho de 2013, no mesmo período em que o Brasil foi ocupado pelas maiores manifestações de rua de sua história. A exemplo dos seus predecessores, os rebeldes turcos também foram trancafiados. Em julho passado o governo Erdogan anunciou a libertação de 38 mil prisioneiros, supostamente para abrir vagas àqueles envolvidos no levante com apoio de facções militares que naquele mês tentou derrubar seu governo.

A Turquia de Hikmet tem hoje a nona população carcerária do planeta, mas perde para o Brasil tanto no atacado, quanto no varejo. Tem 238 presos por 100 mil habitantes, 69 a menos que o Brasil, detentor do título de quarta maior população carcerária e da 30ª taxa de encarceramento do planeta, 23 posições acima da Turquia. Nivelam-se pelas práticas prisionais. Enquanto a Turquia é pressionada pela prática de tortura em suas prisões, o Brasil, que tem metade de sua população carcerária formada por jovens de até 24 anos, degola seus presos e absolve policiais que promovem massacres.

A luta pela sobrevivência nos dois países extrapola os muros de suas prisões. Hikmet já havia começado a compilar os personagens de suas "Paisagens" quando Manuel Bandeira escreveu "O Bicho" ("Vi ontem um bicho/ Na imundície do pátio,/ catando comida entre os detritos./ Quando achava alguma coisa,/ Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade./ O bicho não era um cão./ Não era um gato./ Não era um rato./ O bicho, meu Deus, era um homem.")

Na Turquia, eram os Memets que disputavam os detritos com os bichos: "Saciados, os alemães jogam ao cão o macarrão (...)/O Memet avança em direção ao cão/ Engatinhando, de quatro/ às vezes parando aqui e ali/ de cabeça baixa, como se fosse ser apedrejado/ Agarra o macarrão do cachorro e foge/ O Memet foge sem olhar para trás./ Se o esfomeado não se torna um lobo,/ então a fome o faz pior que um cachorro./ Aplaudem o Memet, os seis alemães./ Gostaram da atração, os alemães".

Nenhum comentário: