quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Favorito, Crivella está perto de quebrar tabu

Por Cristian Klein – Valor Econômico

RIO - Marcelo Crivella (PRB) sempre se revelou uma pessoa de múltiplas faces. É engenheiro, já foi office boy, taxista, escritor e cantor gospel, pastor evangelizador na África durante dez anos, bispo e, por último, senador da República. Sua reeleição, em 2010, foi a primeira de um senador do Rio depois de 24 anos. Quer chegar à prefeitura da capital. Mas ser um homem de tantas faces também lhe causa constrangimentos. Ao enriquecer sua biografia - em ascensão grudada à expansão da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), à qual dedicou a maior parte dos ofícios acima - colheu dificuldades para se eleger.

A trajetória em estreita ligação com a igreja fundada pelo tio, bispo Edir Macedo, lhe trouxe um aumento nas taxas de rejeição, que impediram a conquista de um cargo majoritário. Perdeu disputas para prefeito em 2004 e 2008 e para governador, em 2006 e 2014. A força que o alavanca é a mesma que tradicionalmente o derruba. Uma vitória no domingo, como indicam as pesquisas, contra Marcelo Freixo (Psol) representaria o fim da sina, só possível no ambiente de descrédito da população com a classe política em geral - embora Crivella faça parte da turma há 14 anos -, com o PMDB do Rio em particular e com a esquerda, depois da debacle do PT.

Durante a campanha no primeiro turno, o bispo licenciado levitou acima dos demais e quase foi esquecido pelos adversários - cujo objetivo maior era derrotar o candidato do prefeito Eduardo Paes, Pedro Paulo (PMDB). Mas precisou descer ao chão, no segundo turno, para explicar fatos e contradições. Variou entre um interessado pedido de perdão a agressões contra a imprensa e jornalistas chamados de vagabundos e patifes.

Para convencer a maior parte do eleitorado, Crivella mudou substancialmente o discurso de cunho religioso que defendeu durante sua carreira. Como parte da estratégia de se desvincular do PRB - partido que fundou e é braço político da Igreja Universal - esteve perto de se filiar ao PSB. Em fevereiro, tirou até foto com dirigentes da legenda e anunciou a troca. Mas recuou diante do veto do tio.

Crivella era bispo e um bem-sucedido cantor gospel - gravou mais de 15 CDs, um deles, lançado em 1999, vendeu mais de 1 milhão de cópias - quando, por decisão de Edir Macedo, entrou para a política. Ao se lançar a uma vaga ao Senado, naquele ano de 2002, Crivella publicou no Brasil o livro "Evangelizando a África", editado três anos antes em inglês, com duras críticas a religiões africanas, ao catolicismo, ao hinduísmo e ao espiritismo, qualificadas de "diabólicas".

Sobre homossexualidade, afirmou que "milhões são vítimas desse terrível mal, vivendo sem paz e numa condição lamentável para o ser humano". Durante a campanha, pediu perdão a gays e adeptos destas religiões, "se alguma vez" os ofendeu. Alegou que as referências "equivocadas e extremistas" foram feitas quando era "um jovem missionário" e não tinha maturidade. Em 2002, Crivella estava com 42 anos. Com menos da metade dessa idade o poeta francês Arthur Rimbaud (1854-1891), homossexual, já tinha publicado suas maiores obras-primas, entre os 15 e 18 anos.

A versão de imaturidade contrasta ainda com declaração bem mais recente, de 2012, na qual Crivella, com 55 anos, já senador reeleito, disse, em pregação para fiéis no Rio, que o homossexualismo pode ser resultado de um aborto malsucedido, que causou sofrimento ao feto. O mesmo raciocínio foi aplicado para traficantes de drogas. "Imagina você estar no útero da sua mãe, e a sua mãe, por uma série de problemas, tentar te matar, tentar abortar, não conseguir. Como é que depois você vai encarar o mundo? É difícil", afirmou, em vídeo ainda disponível na internet.

Teses assim formam, no mínimo, um perfil contraditório. Não se sabe ao certo se o pensamento de Crivella é o de um religioso fanático - que ele mesmo diz ter ficado para trás e que busca doutrinar fiéis - ou o do político pragmático que faz de tudo para vencer uma eleição, até negar suas convicções.

Entre o falso e o verdadeiro, o candidato, na reta final, procurou escapar de debates, sabatinas e entrevistas. Só nesta semana, desmarcou compromissos no telejornal "RJTV", da TV Globo, na rádio CBN e no portal G1. Antes, cancelou duelo com Freixo no SBT, e a TV Record - braço midiático da Igreja Universal - deixou de organizar debate no segundo turno. Crivella também negou entrevista ao Valor, em pedidos feitos desde o dia seguinte à vitória no primeiro turno. Considerou que seria um "interrogatório".

Caso de polícia, porém, veio à tona neste fim de semana quando a revista "Veja" estampou em sua edição duas fotos inéditas de Crivella fichado pela 9ª Delegacia de Polícia, em 1990, depois de ter tentado retomar à força, com capangas, um terreno da Igreja Universal ocupado por uma família. O candidato, de pronto, argumentou, em vídeo, ter se tratado de uma "confusão danada" mas que "nunca fui preso". A publicação, em seguida, divulgou trecho de gravação de entrevista na qual Crivella havia contado: "Fiquei preso um dia, na 9ª DP, lotaaada de gente".

No mesmo vídeo de campanha, o senador deu outra versão sobre o episódio: "Há 26 anos, como engenheiro, eu fui chamado para fazer a inspeção da estrutura de um muro que tinha risco de cair e machucar as pessoas". À revista, Crivella reconheceu o uso da força. "Cara, teve um dia que eu estava tão revoltado, eu acordei de manhã, levei os caminhões que a gente tinha, fui pra lá e arrebentei aquela cerca", disse, rindo. "Entrei lá dentro, comecei a tirar as coisas do cara, botar em cima do caminhão - não toquei nas pessoas", acrescentou.

A truculência do bispo licenciado contra a família - no momento havia criança no local - contradiz o slogan do candidato: "Chegou a hora de cuidar das pessoas". Na maior parte de sua carreira como engenheiro civil, Crivella cuidou de projetos da Igreja Universal. De um total de cem obras que diz ter no currículo, três quartos são de fiscalização ou construção de templos da denominação religiosa.

A defesa ferrenha dos interesses da Universal foi feita quando o senador era diretor de planejamento da Empresa de Obras Públicas do Rio de Janeiro (Emop). Em 2008, o Tribunal Regional Eleitoral embargou o Cimento Social, projeto de Crivella para urbanização em favelas, porque beneficiava fiéis da Iurd com a reforma de moradias. Neste ano, o parlamentar viu aprovada, em primeiro turno no Senado a Proposta de Emenda à Constituição de sua autoria que isenta imóveis alugados por igrejas do pagamento de IPTU. Como prefeito, porém, Crivella promete não misturar política com religião.

Casado e pai de três filhos, Marcelo Bezerra Crivella nasceu na Policlínica de Botafogo, época em que sua família residia na Gávea. Hoje, mora na Barra da Tijuca e vota em Copacabana, todos bairros da região mais rica da cidade. Não venceu em nenhuma zona eleitoral destas áreas, no primeiro turno, à exceção da 211ª, onde estão as favelas da Rocinha e do Vidigal. Seu eleitorado é o mais pobre e menos escolarizado da cidade, onde também se concentram os maiores percentuais de evangélicos pentecostais. Nesse estrato social, de acordo com o Datafolha divulgado ontem, ele tem impressionantes 91% de intenções de voto.

Ex-ministro da Pesca no governo Dilma, contra quem se voltou no impeachment, Crivella aparece num vídeo explorado pelo adversário como um manipulador da fé alheia. Nele, o bispo explica como seu tio o ensinou a arrecadar o dízimo. "Quando a gente precisa de dinheiro, a gente pesca o peixe que o peixe, na boca, traz a moeda. Ganha a alma que você vai ganhar a oferta". Crivella foi além. Levou almas e votos

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