sábado, 15 de outubro de 2016

A vacina contra corrupção do Doutor Diretas - Luiz Gutemberg

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Aos 76 anos, quando morreu, Ulysses Guimarães acumulava muitos apelidos. A começar pelo próprio nome. O pai o batizara de Ulysses com a intenção de atribuir-lhe as virtudes e o destino venturoso do herói grego. Tanto que não esperou que o filho atingisse a idade em que o Ulysses do poema ganhou a cicatriz ("Cântico XIX", da "Odisseia") que o identifica no desfecho da epopeia. "Eu tinha seis anos, talvez, sete", e Seu Ataliba o atiçava, punhos cerrados, para que enfrentasse outros meninos da rua, enquanto desafiava as crianças: "Quem quer lutar com o meu filho?".

Um contraste tão grande com seu temperamento que, ao tornar-se político profissional, Ulysses substituiu as fixações do pai. "Troquei de autor, livro e mito." Em lugar do poeta Homero, elegeu Miguel de Cervantes; em vez da "Odisseia", adotou "El Ingenioso Hidalgo Dom Quixote de la Mancha". Preferiu um anti-herói, louco, incorruptível e humano, e escolheu como lema de vida uma sentença do próprio Quixote: "Construí uma muralha entre meus apetites e minha honestidade". Frase que citava com a localização precisa - "capítulo 44, parte II do 'Dom Quixote'" - como epígrafe para a série de princípios práticos que considerava corolários da sua divisa.

"Não fazer negócios enquanto mandatário popular; não avalizar títulos; não participar de empresas, nem mesmo em conselhos fiscais; não intermediar operações com repartições, ou entre empresas; não ter prepostos no controle de órgãos da burocracia e não ser preposto de nenhum interesse."

Não se passou muito tempo e Ulysses foi desafiado a demonstrar fidelidade a tais princípios. Foi convidado para o cargo de diretor da Willys Overland do Brasil - uma das grandes montadoras que se instalavam no país com a implantação da indústria automobilística promovida pelo governo JK, cuja campanha presidencial, em 1955, Ulysses havia coordenado em São Paulo.

O convite era considerado um bilhete premiado, já que o catapultaria ao mundo empresarial, para ele um novo patamar econômico-financeiro. Além de permitir acumulação com seu mandato de deputado federal. Para surpresa geral, recusou, lembrando que havia feito sua opção de vida: era político, não empresário. "Coisa do nosso Ulysses/Quixote", interpretou-o sumariamente seu amigo Pacheco Chaves.

Dez anos depois, em 1964, a onda moralista do golpe militar - que, em São Paulo, era liderada pela Marinha - desdenharia tais escrúpulos de Ulysses. Tentaram apanhá-lo no rastro dos inquéritos policiais militares que instauraram em São Paulo em uma "ação profilática" contra velhos políticos. O decreto de cassação de Ulysses chegou a ser levado ao presidente Castelo Branco, que se recusou a assiná-lo, por absurdo. Era um tempo de caça às bruxas e Ulysses, desconfiado, hibernou politicamente pelos seis anos seguintes.

Quase sem ser notado, reelegeu-se deputado em 1966 e 1970 e preservou seus únicos rendimentos, uma vez que desde que se elegeu deputado constituinte estadual, em 1947, viveu exclusivamente dos subsídios parlamentares e da remuneração quase simbólica por aulas de direito constitucional, em cursos privados, nos fins de semana. Até 1971, quando assumiu a presidência do MDB e passou do silêncio à extroversão. Tornou-se, daí para a frente, o principal líder civil da resistência política à ditadura. E nenhum outro nome da oposição o superou, muitos por atuarem em nível local, como Franco Montoro, outros por estarem exilados, como Leonel Brizola e Miguel Arraes, ou porque se mantinham discretos, ressabiados com a insolência e violência dos militares, caso de Tancredo Neves, que só ressurgiu decisivamente a partir de 1980.

À medida que o Congresso testava os limites de tolerância do governo, Ulysses despertava o até então bisonho MDB. Tratava-se de uma operação delicada, pois os generais presidentes dispunham dos poderes absolutistas do AI-5. "Eu posso tudo", constatava o presidente Emílio Garrastazu Médici. A liderança da oposição legal - que se recusava a apoiar e promover a luta armada - exigia observação, astúcia e criatividade. Era preciso atenção aos sinais do humor do governo emitidos por dois únicos canais. Os pronunciamentos do presidente-general Médici e a propaganda otimista da Assessoria Especial de Relações Públicas (Aerp), em discreta contramão em relação à repressão, que, sem nenhum controle, censurava, torturava e matava.

A oposição era uma Arca de Noé abrigando conservadores, liberais, socialistas democráticos e comunistas, além de oportunistas, refugados pelos próprios militares. Devido ao bipartidarismo, já que as sublegendas só funcionavam nas eleições, o MDB dividia-se em dois grandes grupos. De um lado, os "moderados", que renegavam os movimentos de rebelião armada e, com diferentes apetites, procuravam ocupar os espaços consentidos pela ditadura, que levava muitos ao risco do "colaboracionismo" com o regime militar. Na verdade, muitos tinham defendido o golpe de 64 e depois, decepcionados ou arrependidos, aderiram ao MDB.

Já os "autênticos", ou radicais, não admitiam relações com o regime além do estritamente institucional e eram vistos pelos militares como "linha auxiliar" da subversão. Ulysses transita entre os dois fogos, que o adotam quando lhes é conveniente, e executa movimentos pendulares, agradando a um lado e a outro, através de "notas à imprensa". Quando foi anunciada a sucessão de Médici por Ernesto Geisel, que seria o quarto general-presidente da série de cinco que governou o país entre 1964 e 1985, Ulysses lançou o projeto audacioso da participação do MDB no Colégio Eleitoral.

A análise competente das contradições internas da ditadura era o principal instrumento de orientação das manobras da oposição. Os contrastes entre as personalidades de Médici, que saía, e Geisel, que entrava, justificavam os riscos que a anticandidatura acarretava. Não se sabia que mudanças aconteceriam, mas, esperava-se menos aspereza e violência.

O plano do MDB previa dois movimentos. O primeiro seria formal, a oficialização de um anticandidato. De protesto, mas legal. O segundo movimento envolvia a organização de inocentes caravanas aos Estados, como se fosse uma campanha eleitoral convencional e estivesse em disputa o voto popular. Nada que parecesse conspiração.

A convenção nacional do MDB foi marcada para 22 de setembro de 1973 e ninguém previu que um "faz de conta" de candidatura deflagraria tanto entusiasmo. Quando Ulysses terminou a leitura do seu discurso "Navegar é preciso", surgiu o refrão, que não fora ensaiado, mas que todos seguiram quando um pequeno grupo, nas galerias, começou a gritá-lo: "Um, dois, três/ Quatro, cinco mil/ Ulysses Guimarães/ Presidente do Brasil".

Risonho, solene, braços para o alto, a reação de Ulysses fazia redobrar a aclamação. A vibração não correspondia à situação, pois ele nem era, de fato, candidato, mas, assumidamente, anticandidato.

Sem imaginar a cena apoteótica, o MDB havia tomado uma providência, que, se não tivesse falhado, teria transformado a anticandidatura no mais contundente ataque publicitário enfrentado pela ditadura: a transmissão da convenção em rede nacional de TV. Mas, no último minuto, quando tudo já estava contratado e pago pelo MDB, obtido inclusive o consentimento do próprio presidente-general Médici (as imagens da convenção já chegavam à central de geração da Embratel), a mão invisível e pesada da repressão impediu a transmissão.

Ulysses fez seu discurso imaginando que sua imagem estava sendo transmitida. Até seguiu a orientação da equipe de TV, posicionando-se, enquanto falava, em direção à luzinha vermelha da câmera.

A princípio, considerou-se que o cancelamento da transmissão fazia parte da rotina da censura. Mas, quando se comprovou que havia sido uma ação do CIE (Centro de Informação do Exército) - no caso apareceu na Embratel um misterioso "Doutor Ronaldo", disfarce codificado dos coronéis executivos da repressão -, confirmou-se que aquele era o maior enfrentamento da oposição desarmada e consequentemente com o núcleo pensante da ditadura. O CIE desconfiara da trama de Ulysses. Muito bem informado, o deputado Thales Ramalho, secretário do MDB, responsável pela logística da convenção, admitiu na reunião de avaliação com Ulysses que haviam ido longe demais. Se o Brasil inteiro tivesse assistido pela TV, ao vivo, como estava programado, a aclamação de "Ulysses, Presidente do Brasil", seria irreversível a perda de credibilidade que a repressão sofreria, já que o terror e a censura eram seus instrumentos de poder.

O aproveitamento prático da anticandidatura pela oposição, porém, já acontecera. Graças às caravanas que percorreram o país, o MDB se consolidara. Seus 786 diretórios municipais saltaram, em seis meses, para mais de 3 mil. Em seguida, a votação dos candidatos emedebistas nas eleições majoritárias para senador escancarou o sucesso: 14,5 milhões de votos para o MDB contra 10 milhões para os governistas da Arena. Firmava-se o conceito da mobilização de "corações e mentes", como apregoava a campanha que à mesma época se desenvolvia nos EUA contra a Guerra do Vietnã. A guerra continuou, mas desde então estava irreversivelmente perdida.

Para sorte da ditadura, pois estava em disputa apenas um terço das vagas, o governo não perdeu a maioria no Senado. Mas o severo e brioso Geisel foi obrigado à humilhação, como medida de precaução e para preservar a ditadura, de baixar um Ato Institucional que mudou as regras: um terço do Senado, a partir de 1978, seria constituído pelos "senadores biônicos", eleitos pelas assembleias legislativas. A ditadura estava confinada às eleições indiretas e com cartas marcadas.

A partir da anticandidatura, o Doutor Ulysses (como se tornara conhecido nos anos 40, quando caiu em desuso a palavra bacharel, aplicada aos formados em direito, e que passaram a ser chamados de doutores) colecionaria títulos. Seria, sucessivamente, Senhor Diretas, em 1984; Senhor Constituição, em 1988, quando presidiu e animou, diuturnamente, a Assembleia Constituinte e anunciou a promulgação da Constituição Cidadã; Senhor Impeachment, em 1992, quando assumiu a liderança do processo que destituiu o presidente Fernando Collor. Ao morrer, já era chamado de Senhor Parlamentarismo, pois se preparava para mais uma volta completa do país, a 28ª da carreira de líder nacional. Também saboreava mais uma profecia otimista e que muito o agradava: a de que, com o parlamentarismo, seria certamente primeiro-ministro. Chegaria ao poder que tanto ambicionava e que lhe fugiu sempre, até quando parecia tê-lo ao alcance da mão. Não fora chefe de Estado, sob o presidencialismo; seria chefe de governo, com o parlamentarismo.

Na memória desse tempo, Ulysses preservava uma zona de sombra. Citava o poeta Álvaro Moreira - "As Amargas, Não!" - para recusar-se a falar da 26ª das suas "jornadas cívicas completas através do Brasil". A tal "26ª" correspondia ao maior fracasso da sua vida: a malograda campanha eleitoral para Presidente da República, de 1989. O PMDB o traiu e ele desembarcava em aeroportos - onde se acostumara a ser recebido com manifestações ruidosas - em que não havia ninguém para recebê-lo. Na apuração, terminou em sétimo, depois de Collor, Lula, Brizola, Covas, Maluf, Afif.... Ulysses recebeu apenas 3,2 milhões de votos, apenas 4,4% do total dos 67,6 milhões de votos válidos. Em São Paulo, teve 331 mil votos, quando, três anos antes, recebera 590 mil votos para deputado federal, além da humilhação complementar de Lula e do PT terem recusado seu apoio contra Collor no segundo turno.

Tudo muito diferente do movimento "Diretas Já", do qual saiu olimpicamente derrotado, mas "democraticamente confortado". Ulysses fez conscientemente uma aposta de cara ou coroa. Cara, Ulysses presidente; coroa, Tancredo. Se aprovadas as eleições diretas, ele seria o candidato a presidente do PMDB. Desde a anticandidatura havia conquistado as ruas e era voz geral que seria imbatível. Já em caso de derrota das Diretas, o candidato da oposição no Colégio Eleitoral seria Tancredo, melhor posicionado para uma negociação com os militares. O suspense durou 11 meses, à medida que se realizavam as maiores concentrações populares pelas Diretas Já (mais de 1 milhão de pessoas no comício da Candelária, no Rio) ninguém duvidava de que a Emenda Dante de Oliveira seria aprovada. Faltaram apenas 27 votos para que atingisse o quórum de dois terços da Câmara. Deu coroa. A conquista da presidência no Colégio Eleitoral estava reservada a Tancredo, e assim foi feito.

Independentemente das definições filosóficas, ideológicas e mitológicas em que Ulysses pode ser enquadrado - e com as quais ele gostaria de ser identificado (nas últimas conversas antes de morrer citava muito o liberal francês Raymond Aron) - havia qualificações genéricas que ninguém lhe negava: era um democrata, antitotalitário, humanista. Poucos percebiam, porém, a raiz do seu otimismo: a confiança de que, um dia, talvez um dia quem sabe!, alcançaria seu objetivo na política: o poder. Por isso, em 1985, mostrou profunda amargura quando lhe atribuíram o codinome Moisés. Daí em diante, embora a comparação se referisse a uma situação ultrapassada com a morte de Tancredo, soava-lhe como uma maldição e o aborrecia.

Moisés, no Antigo Testamento, resgatou os hebreus da escravidão, mas Deus o impediu de entrar na Terra Prometida, mandando-lhe passar o poder a Josué. A maldição ainda envolveria uma coincidência final, que se revelaria profética - "nenhum homem soube até hoje o lugar do sepulcro de Moisés" (Deuteronômio - Capítulo XXXIV, versículo 6).
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Luiz Gutemberg, jornalista, é autor da biografia "Moisés, Codinome Ulysses Guimarães"

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