quarta-feira, 20 de julho de 2016

Tirando o umbigo do foco* - Paulo Fábio Dantas**

Ou, procurando soluções para a sociedade, a Universidade achará as suas 

Quero iniciar confessando que senti um pouco de mal-estar com o título dessa mesa. Ele insinua a Universidade como uma variável dependente das crises que ora vivemos no Brasil. Como se seu futuro institucional estivesse confiado, ao menos em parte, a esse ou aquele cenário, de superação ou de aguçamento das crises (claro que me refiro às crises política, econômica, ética, etc, etc, etc...) 
Reconheço lógica interna e mesmo um certo realismo nesse raciocínio. Mas enquanto preparava essa exposição não me separei da sensação de que os termos da equação podem ser postos de outro modo.

Em primeiro lugar temos que ter em conta o que se vivia na Universidade antes dessa crise irromper (politicamente falando, por isso aqui crise no singular) e chegar ao seu auge. Em outras palavras, nos lembrar de antes de 2012, quando o estado febril de uma greve prolongada já foi sintoma de que algo estava muito errado no mundo de Poliana. O pote encheu bem mais em 2013, arrumou-se uma tampa em 2014, mas continuou enchendo e terminou derramando. Sem considerar o antes não se entenderá o durante nem se vislumbrará o depois e, assim, a metodologia de traçar cenários não ficaria em pé. 

Eram astronautas os deuses da crise ou habitavam, nas palavras de Rômulo Almeida, o nosso “chão das realidades vulgares”? Se lembrarmos dos anos 90 não cogitaremos a primeira hipótese. As opostas narrativas a respeito não são contraditórias. Os que lutavam, no âmbito da Universidade, contra o que se combinou chamar de “neoliberalismo” denunciavam a tentativa de destrui-la como parte do desmonte do Estado, enquanto seus adversários, então no governo, afirmavam como socialmente justa a prioridade ao ensino básico na política educacional. Sem entrar na controvérsia pode-se concordar que a universidade pública passou ali por grande penúria, em vários sentidos, não só no financeiro. Mas registre-se que não morreu, sequer perdeu sua relevância, como instituição. 


Numa radicalização retórica do argumento tucano em favor da prioridade ao ensino básico o primeiro ministro da Educação do primeiro governo de Lula (o hoje senador Cristovam Buarque) chegou a propor que as universidades e toda a educação superior se apartassem do Ministério da Educação e se reunissem em outro, com a ciência e tecnologia. Durou quase nada a ideia e durou pouco o ministro. Tarso Genro, na sequência, em andamento reformador, propôs, para a educação superior, uma política de longuíssimo prazo, de lógica impecável e sentido público democrático. 

 Em polêmica com as pressões das IFES, argumentava o ministro que, face a situação herdada da ditadura, na qual mais de dois terços dos estudantes do ensino superior estavam em universidades ou faculdades privadas, a política educacional do governo para esse nível não poderia ignorar esse imenso contingente de estudantes, pior situado, na escala social, que o das federais. Por isso, o governo ampliaria a rede pública (uma tarefa de muito longo prazo para que a ampliação se desse de modo qualitativamente aceitável) mas conceberia programas - como mais tarde, o Pro Uni, concebido na gestão Haddad – para atender ao contingente matriculado nas privadas. 

O ministro durou pouco mais que o antecessor e a dialética da sua política pouco mais do que ele, diluindo-se antes do final da longa gestão de Haddad, que seguiu orientação semelhante, mas adotou outras prioridades. Já então - portanto, antes do primeiro período mercadantista, quando os primeiros sintomas de uma crise já se insinuavam - o tempo real, marcado pela política, tornara-se mais veloz e a ampliação das vagas obedeceu a uma lógica menos filosófica, ao tempo em que facilidades à ampliação da rede privada pareciam, salvo engano, negar os fundamentos de longo prazo da política anunciada lá atrás. 

Os recursos de fato aumentaram e a ampliação acelerada de vagas promoveu uma democratização do acesso ao ensino superior que só pode ser celebrada. Mas esse bem, talvez pelo tipo de fermento usado no bolo, trouxe problemas inéditos ao corpo institucional antigo, de solução talvez mais complexa do que as mazelas materiais ligadas à “malevolência” da década anterior. Alguns dirão que foram benvindas dores do parto democrático; outros que são mal vindos ossos do ofício populista. 

Sem mais uma vez me deter na controvérsia, pontuo somente que dessa sequência de experiências pode-se concluir, em linha com os ensinamentos do sábio Maquiavel e com as linhas de um texto de Max Weber, que em política não é certo que o bem só pode vir do bem e o mal só pode vir do mal, mas que, com freqüência, ocorre o inverso. Especialmente em contextos de crise, é utilíssimo lembrar disso para não se construir cenários a partir de pensamentos desejosos. 

Quem gosta e quem não gosta de Maquiavel, ou de Weber, poderá admitir o sentido de uma exposição de Olgária Matos, durante um ciclo de debates na UNESP, em 2011. Além e por sobre o vaivém conjuntural de governos, partidos e ministros, o advento do que ela chama de “universidade pós-moderna” e a falência da “moderna” refletiriam um confisco do tempo da reflexão, articulado ao fim do papel filosófico e existencial da cultura. 

Como a universidade deixa de buscar a fundamentação do conhecimento, abre-se caminho para sua massificação, com o ensino superior se adequando à educação pulsional (“eu desejo, eu quero, eu vou ter”) que, segundo ela, Freud vislumbrou quando mal acabava a Primeira Guerra Mundial. No Brasil, para garantir o fluxo do acesso, a “formação continuada” e a “avaliação permanente”, a graduação universitária adapta-se ao nível do ensino básico, o mestrado ao da graduação, o doutorado ao do mestrado e por aí vai. No mesmo ciclo de debates, Luis Antonio Cunha pontuava a perda de identidade da universidade por uso difuso do termo para se referir, geralmente em proveito do setor privado, a centros universitários ou chancelar universidades especializadas, contra a tradição brasileira de universalidade de campo. Tudo isso serve para libertar a pergunta sugerida pelo título da mesa da tutela da atual conjuntura. 

Vêm de bem mais longe os desafios e dilemas hoje explicitados e maduros, por isso solicitantes de uma intervenção auto reformadora. Os rumos institucionais da Universidade dependem menos da atual conjuntura e dos seus desdobramentos e mais, muito mais, da sua capacidade de refletir sobre as mais recentes décadas da sua trajetória e usar essa reflexão para mudar-se, de modo a realizar duas aptidões que precisam ser e podem ser complementares: a de captar, processar e responder ao que a nova sociedade dela espera e a de imaginar e propor caminhos novos a essa sociedade traumatizada por uma crise. No centro da questão do como fazer isso está, como se tem reiterado, o posicionamento da instituição entre os imaginários polos da tradição e da inovação. Para breve passeio sobre esse tema vou me servir de Edson Nunes, em “Gramática política do Brasil”, uma reflexão, como se diz, de “médio alcance”, modesta em elaboração teórica, mas bem “operacional” ao tema. 

Face ao mote da conferência de abertura desse Congresso, peço vênia para usar o adjetivo suspeito, mesmo em alusão a tema específico e não à Universidade como instituição. O insulamento burocrático e o corporativismo são, para Nunes, gramáticas do “moderno”, assim como o universalismo de procedimentos. Para não ser enfadonho dispenso-me de explicar cada conceito supondo que seu entendimento intuitivo basta. As duas primeiras gramáticas são enérgicas e por vezes benignas opositoras da tradição patrimonial, da qual o clientelismo é a principal gramática. 

Mas aquelas duas são também vulneráveis ao abraço furtivo da tradição. Na contramão dos fins do insulamento e do corporativismo, o clientelismo infiltra-se, como meio, nos bastidores das ilhas de excelência e dos aparelhos sindicais. Para além da Universidade, a história política e institucional do Brasil traz muitos exemplos de incidência de flertes no escurinho entre o tradicional e o moderno. Seria inócua e indevida a pretensão de eliminar algo que impregna a cultura. 

Exatamente por isso - porque tanto quanto o clientelismo da tradição patrimonial, aquelas duas gramáticas modernas não podem ser excluídas, por atos de vontade, do ambiente social no qual a Universidade habita - é que o insulamento burocrático e o corporativismo são fartamente praticados no ambiente universitário, em nome do moderno e até mesmo ao abrigo do santo nome da democracia. Fazem parte do ambiente, dos seus movimentos e de instâncias acadêmicas. Mas nem por isso devemos perder de vista que são, pela sua vulnerabilidade e mesmo pendor a furtivos abraços patrimonialistas, duas gramáticas inadequadas ao cumprimento da missão pedagógica e cultural da Universidade pública. 

 A gramática consciente da universidade, como instituição republicana, só pode ser a do universalismo de procedimentos, que, ao lançar luz sobre o escondido renova, reformula e até pode superar a tradição, quando for o caso. Só que não através do seu repúdio retórico, proclamado com ânimo demolidor, mas através do seu enquadramento pela lei, nos marcos do direito, isto é, pela lei que regra moderadamente o direito para que ele possa viver em meio aos conflitos. 

Conforme a gramática do universalismo de procedimentos, ao novo não se concede tudo, porque ao antigo também são reservados direitos, daí que insulamento e corporativismo não estão - assim como a tradição a que se opõem e assim como tudo o mais - fora do raio de alcance da lei e do direito. Será legítimo, do ponto de vista do interesse público, reconhecer direitos à tradição? 

E ainda mais a uma tradição como a nossa, exuberantemente repleta de hierarquias rígidas, verticalidades arbitrárias e desigualdades odiosas? Para dizer que sim, recorro agora a Werneck Vianna e a Maria Alice Rezende de Carvalho. Através de belíssimo texto intitulado “Experiência brasileira e democracia”, eles nos permitem viajar ao outro lado dessa lua. Chamam nossa atenção ao fato de que a experiência brasileira comporta também sólida cultura de solidariedade, da qual a comunidade linguística e a unidade nacional são evidências persuasivas. Werneck, em separado, prossegue a viagem em outro texto dizendo terem sido a cultura, no primeiro caso (o da comunidade linguística) e a política no segundo (o da unidade nacional) as construtoras desse legado que dotou, para o bem e para o mal, o mundo popular de resiliência para moderar ulteriores e contraditórios impactos (de civilização e de barbárie) exercidos pelo mercado capitalista e o estilo de vida cosmopolita que o acompanha. Resiliência para ganhar tempo e dialogar com os impactos, não para fugir deles ou pretender refratá- los. 

Hoje é possível dizer, ao menos cogitar, que a sociedade brasileira – e aqui não falo só da classe média satanizada pelo maniqueísmo populista, mas da plenitude da sua composição popular, inclusive em suas dimensões mais ostensivamente comunitárias - vê no mercado um horizonte de desejo, não de ameaça. Nessa cogitação não vai nem elogio, nem elegia, mas constatação frugal de uma realidade material sustentada por uma nova hegemonia cultural que avança e para a qual, aliás, contribuiu a lógica de políticas governamentais mais recentes, de promover, via financiamento estatal, uma cidadania social discursivamente justificada em homologia com inserção no mercado. 

Talvez isso deva ser lembrado para contextualizar os textos a que me referi, ambos escritos antes da experiência dos governos petistas. Por outro lado, supõe-se que, a exemplo do que ocorreu com as reformas orientadas ao mercado dos anos 90, a inflexão política que, na última década e meia, produziu outra forma de orientação ao mercado trouxe novos elementos de sociabilidade, mas não efeitos reversores abrangentes e definitivos da resiliência cultural acima apontada. O que garante a vigência da comunidade linguística e da unidade nacional após todos os impetuosos solavancos do nosso moderno “periférico” é a conservação (sim, esse o substantivo) da solidariedade como valor da nossa cultura. Solidariedade que não se colheu de ventos pedagógicos da modernidade (pro ou anti capitalistas) ou da sua pós. 

Ela é ensinamento da tradição civilizatória brasileira. Sendo o lado menos visível da nossa lua em demorado quarto crescente, nem por isso merece o juízo e o destino condenatórios que uma democratização contínua do estado e da sociedade reserva ao outro lado da tradição, o do autoritarismo e personalismo políticos, da centralização e do patrimonialismo. Penso que a Universidade pública deve ter compromisso com esse legado civilizatório e ajudar a preservá-lo e atualizá-lo, missão tão nobre quanto a de inovar, no que for possível e desejado. Creio então ter explicado porque penso que a pergunta sugerida pelo título da mesa sobre impactos de cenários políticos e institucionais sobre a Universidade deve ter sentido invertido para: que impactos a universidade brasileira pode causar sobre cenários políticos e institucionais possíveis? ”. Para que o inegável tom volitivo da ideia não a exponha a ser recebida como mero voluntarismo, tento explicar: 

Faz toda a diferença se a mensagem da Universidade à sociedade dá seguimento à pedagogia cívica da solidariedade ou se, ao contrário, professa a pedagogia do conflito. Claro que não é uma escolha cientifica, mas também não é mera questão de opinião. Ouso dizer que é uma escolha política, no sentido institucional. Tem a ver, como bem assinala o professor Marco Aurélio Nogueira, com o caráter republicano dessa instituição. Com maior ousadia arrisco dizer que esse caráter a define mais que o caráter democrático. 

Esse último ela pode adquirir por escolha política, num processo político (civilizatório) mas não é condição para que ela tenha sentido social. A mais eloquente demonstração disso foi sua convivência com o regime autoritário. Privada de qualquer democracia e com seus movimentos internos por algum tempo condenados ao silêncio, mostrou-se vigorosa como coisa pública na medida em que não foi capturada, graças à vida que prosperou nos procedimentos do seu fazer acadêmico. O sentido da universidade provém do seu caráter republicano, no âmbito do qual se inscreve o dever de cultivar o que há de melhor na cultura, ao tempo em que ajuda a reinventá-la. Claro que esse dever é imputado à instituição, não aos seus membros, individualmente, ou aos movimentos que nela habitam. 

A produção científica, literária, ou artística não pode ser constrangida a seguir qualquer script que não os dos métodos dos seus fazeres acadêmicos. Sua aceitação social, ou não, se decide por outros caminhos e critérios. E também os movimentos corporativos que se formam no interior da universidade podem optar, como geralmente optam, pela linguagem do conflito, que coloniza a solidariedade para que ela se dê apenas entre companheiros mesmo quando ela é de mais valia (sem trocadilhos, por favor) quando também enlaça adversários. Enfim, é da vida que a política seja vista nessas agências mais pela ótica da luta de classes de um Lenin, ou da relação amigo-inimigo, de um Carl Schmitt, do que pela perspectiva comunicacional de uma Hannah Arendt. Porém, respeitadas todas essas liberdades, uma voz institucional precisa se diferenciar. Aqui em sintonia (nunca perfeita), ali em dissonância (que não impede o diálogo), o importante é que a sociedade possa distinguir a voz da sua Universidade das descobertas dos seus cientistas, das opiniões dos seus professores, das obras de seus literatos e artistas, ou das posições das entidades representativas de estudantes, professores, servidores. 

É a voz do dever republicano que, no caso do Brasil, inclui o cultivo cuidadoso da cultura de solidariedade, que séculos de sofrimento e invenção adubaram. Mais ainda em contextos de crise, a sociedade precisa ouvir mais palavras de alento e apontamento de caminhos do que chamamentos de apoio a pleitos de sua comunidade interna. Enfim, é assumir-se como lugar de protagonismo de uma elite intelectual, pois é isso que somos, ou ainda somos, os membros dessa comunidade. Isso não é elitismo, porque a ação de uma elite intelectual com influência cultural pode ser democrática e ajudar a que haja mais equidade no acesso dos cidadãos à condição social própria dessa modalidade de elite. 

Será ela certamente mais democrática do que aquela elite política que não ousa dizer o nome e busca uma imagem de homologia com o povo para, inclusive, se dispensar de elementares deveres éticos de qualquer elite republicana. Os constituintes de 1988 atuaram como elite política republicana e democrática. Atuaram em interação com uma sociedade civil impetuosa – diversa da que hoje precisará reaprender caminhos de ação autônoma - para a qual o Estado tornara-se inimigo, após a experiência do regime militar. Sim, a política do regime militar, além de não democrática, foi antirrepublicana porque rompeu (e aqui me sirvo novamente de reflexões de Werneck Vianna) o fio da tradição de solidariedade social que a Era Vargas usara habilmente para mesclar o seu pesado autoritarismo e que o regime da Constituição de 46 havia colocado sob os cuidados do sistema político. 

Essas pontes com o Estado, no sentido de dar a ele protagonismo, pela tutela ou pela representação da sociedade civil, não podiam mais ser refeitas pois a sociedade exercia uma autonomia conquistada ao relento, nos rigores da luta anti ditatorial. O tirocínio da elite política da transição democrática não deixou que essa autonomia civil, ao se encontrar com uma moderna sociedade de mercado, se transmutasse em independência, dando lugar a um mundo de natureza hobbesiana. Sob pressão, agiu inspirada na rebeldia daquela nova sociabilidade de participação popular e também orientada pela tradição republicana brasileira da solidariedade social para produzir uma constituição inovadora, um artifício civilizatório que fez muito mais do que enterrar o regime autoritário. Ela avançou imensamente em relação à Constituição liberal de 1946 e nos levou, nas últimas décadas, a um novo patamar democrático. 

Nesse novo patamar sobressaem fortalecidas instituições de controle externo do Executivo e Legislativo, novas modalidades de participação direta, iniciativa popular de leis, habeas data, mandados de injunção, juizados especiais que facilitam acesso direto de cidadãos à Justiça sem intermediação do sistema político, além de uma legislação aflorada à sombra da nova Constituição, como Estatuto da Criança e do Adolescente, do Idoso, Código do Consumidor, etc..., e da institucionalização de direitos sociais constitucionalmente reconhecidos em sistema nacionais para efetivação de políticas públicas. Um ponto relevante é que tudo isso vem passando do papel à vida real em andamento inédito, dando à Carta de 88 eficácia diversa do mero formalismo jurídico que, conforme registra o pensamento político brasileiro, marcou nossas Constituições liberais anteriores. 

Esse é o tesouro comum que temos a preservar e fazer avançar. Sempre. Por isso, da mesma forma que a voz da Universidade para a sociedade não pode ser a da pedagogia do conflito a partir de suas questões corporativas, ela também não pode fazer coro com tantos quantos, por variados motivos, dedicam-se, na atual conjuntura de crise, a desqualificar a democracia que temos e as soluções, interinas ou não, que ela tem produzido para situações complexas e graves, à luz da Constituição. O discurso da universidade republicana ajuda a democracia se mirar no que é permanente, mais do que naquilo que é conjuntural. Como instituição de Estado e não de governo, pode adotar uma perspectiva diagonal sobre a conjuntura e assim legitimamente dar voz a todos os atores nela envolvidos, sem exceções e vetos, sempre buscando estimular, nesses atores sociais e políticos, vocalizações que mirem saídas e não mergulhos na crise. 

A grandeza do impacto de uma intervenção publicística desse quilate não se pode prever, mas seja qual for, terá afetado o ambiente externo no sentido apontado simultaneamente pela tradição de solidariedade e pela inovação democrática. Convencido de que vivemos momento de reforço da dinâmica democrática e republicana no Brasil, penso que Ministério Público, STF e as instituições judiciárias de um modo geral, são as instituições que, mais além de abrigarem demandas de minorias por direitos, têm garantido direitos difusos e protegido a sociedade brasileira dos riscos inerentes ao convívio com políticas golpistas, que só valorizam a democracia quando ela serve de palco para o predomínio dos valores, opiniões e interesses dos agentes dessas políticas. Essas políticas (ou esses modos de fazer política) moram na outra banda da nossa lua, a banda destinada ao arquivo, com o avanço da democracia. 

Os processos complexos porque passam os poderes Executivo e Legislativo são necessários para abrir espaço a uma chance de que esses poderes passem a atuar, não só democraticamente, mas compartilhando também a ética republicana que sustenta o atual prestígio social das instituições de controle. E ao compartilhá-la oferecerem contraponto externo eficaz, para além do CNJ, a pretensões salvacionistas ou de guardiania que acometam corpos funcionais ou cúpulas das próprias instituições de controle. Se algum cenário pode ser traçado como o mais provável, penso que é (está sendo) o de superação da crise política e, com ela, a discussão de caminhos para enfrentar as demais. Um otimismo de atacado quanto à arena política compensa inquietações de varejo advindas dessa mesma arena e dos outros quadrantes críticos, como a economia, a gestão do Estado e a pauta judicial. 

No plano político, vai se tornando cada dia mais difundida a compreensão realista de que, nos termos da ordem constitucional, a legitimidade popular agracia a um só tempo a Presidência da República e o Congresso Nacional e que não é dado a qualquer dos dois o monopólio do poder legítimo. Governar em concerto, convertendo os benvindos e naturais conflitos em soluções negociadas ou aprovadas por maioria, com respeito à minoria, não é uma escolha política, mas uma imposição constitucional, que obriga Executivo e Legislativo a governarem juntos para que se confirme a legitimidade conferida a ambos nas urnas. Juntos, mediante acordos, mesmo e principalmente quando não estiverem de acordo, hipótese que é uma legítima contingência da democracia política, assim como a alternância de poder. 

Naturalmente o processo não será, como não tem sido, tranquilo. O nível de radicalização a que chegaram as forças políticas e o precário compromisso de muitas delas com a democracia pode complicar o processo, torná-lo mais arriscado, penoso e mesquinho. E é possível imaginar cenários alternativos, mais desfavoráveis e até mesmo catastróficos, como por exemplo, a criminalização e condenação judicial de todo o sistema político sem devida dosagem das punições conforme a gravidade dos delitos e transgressões. Nesse ponto o humor da sociedade não é bom e pode levar a empiria das coisas a se aproximar da metáfora da faxina geral, que por sua vez requereria uma impossível renovação completa da elite política. Como isso seria empreitada para, no mínimo, uma geração, é sensato que além do inferno, um purgatório e um limbo também sejam povoados por quem for alcançado pelos fatos e jatos da justiça. Já o céu, é só, como sempre, um horizonte. Mesmo entre os cenários piores penso que não está qualquer autocracia, aberta ou disfarçada, logo, não creio que haja motivo para se pensar que a Universidade será afetada de modo radical na sua autonomia, hipótese em que ela, se pensada como paciente enfermo, correria risco de vida. A questão é mais como ela usará a autonomia que a democracia política lhe garante para encontrar caminhos de se manter e avançar num contexto financeiro sabidamente adverso e em condições de precário poder de pressão. 

Outro motivo para que invertamos os termos da equação e perguntemos, antes de tudo, o que a universidade pode fazer pela sociedade, além do muito que já faz. Porque se enfrentamos crises dentro dos campi, certamente fora deles a crise é maior e mais dramática, socialmente falando. Mencionarei ainda um ponto, sem desenvolver, por falta de tempo. Para cumprir sua missão nesse momento de crise as IES terão que resolver importantes questões políticas, ligadas à estrutura, aos processos e aos procedimentos do poder decisório no seu interior. Mas isso é assunto para outras mesas, agora e depois. Espero que, em algum momento, esse Congresso também discuta isso.
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* Esse texto guiou exposição do autor na Mesa “Cenários políticos institucionais e seus efeitos sobre as instituições federais de ensino superior”, realizada no âmbito do Congresso - UFBa 70 anos, em 16.07.2016. 

**Paulo Fábio Danta é professor do Departamento de Ciência Política da UFBa e pesquisador do CRH/FFCH/UFBa. 

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