sexta-feira, 8 de julho de 2016

Renúncia e denúncia como estratégias - César Felício

• Nem sempre corrupção gera consequências

- Valor Econômico

A renúncia de Eduardo Cunha ao cargo de presidente da Câmara dos Deputados é o primeiro capítulo que se encerra no volumoso tomo das consequências políticas da Operação Lava-Jato.

Cunha deu a largada ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em dezembro, ao perceber que não teria a solidariedade do PT contra a representação que respondia no Conselho de Ética. Foi acusado de promover uma vendeta. Ontem, devolveu a acusação, no ofício que enviou para ser lido no plenário da Casa, argumentando que a principal causa de seu afastamento foi a reação do procurador geral da República, Rodrigo Janot, às suas iniciativas para afastar a presidente.

As quedas de Dilma e de Cunha estão entrelaçadas em uma simbiose destrutiva, como comprova a cronologia, mas o pemedebista não é vítima se não de seus próprios gestos. A razão essencial de seu afastamento do cargo e do mandato, em maio, foi a de que um réu não pode estar na linha sucessória.

A renúncia de Cunha é uma estratégia óbvia, que se revelou nos agradecimentos feitos pelo deputado na despedida. O parlamentar tenta capitalizar a própria sucessão para escapar da cassação em plenário. Daí seus votos de sucesso a Michel Temer, seu partido, os deputados que o apoiaram e à família também envolvida em seus descaminhos. São todos os que podem fulminá-lo, se quiserem.

A corrupção é um fato, que do ponto de vista político não necessariamente gera consequências. Se aqui no Brasil os escândalos desestabilizam o jogo do poder, é porque há um ambiente que proporciona isso.

A solidez institucional é o primeiro dado. O roubo é um insumo presente em qualquer estrutura política, do condomínio de um edifício ao Vaticano. O que é inerente às democracias é o escândalo. Não há registro, no tempo e no espaço, de ditadura derrubada por ser corrupta. Só em uma democracia um caso de corrupção é um fator de desestabilização política, que este ano não poupou sequer a Islândia, cujo primeiro-ministro se envolveu no escândalo "Panama Papers".

Existe no Brasil uma condicionante básica, que é um sistema de controle razoavelmente eficiente. O Poder Judiciário não se apequena diante do Executivo, como acontece na Argentina, e nem um investigador se mata horas antes de apresentar uma denúncia. A mídia é relativamente independente e crítica frente ao governo. É uma estrutura institucional que paradoxalmente foi reforçada nos governos Lula e Dilma.

Dois pilares apareceram nos últimos três anos: a Lei 12.850, que disciplinou a delação premiada; e a 12.846, que dispôs sobre os acordos de leniência. "Estas mudanças explicam em grande parte o que acontece agora. O sistema de controle brasileiro hoje é muito mais evoluído que era o da Itália no período da Operação Mãos Limpas", opinou um especialista no tema, o cientista político Sérgio Praça, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro.

Antes do aparecimento deste vetor, outras variáveis já existiam que tornavam o escândalo um motor para a mudança, dos quais, de longe, o mais relevante é a fragmentação do sistema político, em vários partidos que internamente são muito divididos. Estas particularidades são objeto de estudo desde a década passada do cientista político argentino Manuel Balán, professor da Universidade McGill, de Montreal. Especialista na análise comparativa de corrupção no Cone Sul da América, Balán deu para um de seus trabalhos um título autoexplicativo: "A denúncia como estratégia".

O sistema eleitoral brasileiro favorece o escândalo. "A lista aberta no voto proporcional estimula a competição dentro dos grupos de poder. O Congresso tem alto nível de fragmentação e os arranjos para as eleições obedecem lógicas regionais", diz Balán, em entrevista por e-mail. A consequência é disputa interna e uma divisão de poder altamente complexa, em que o uso de denúncias para mover as peças torna-se uma tentação forte para os grupos que se sentem prejudicados.

O terceiro ingrediente da fórmula do escândalo, além do funcionamento das estruturas de controle e da divisão dentro do grupo governista, é o da intersecção entre as esferas do público e do privado nas atividades em que há regulação do Estado. A corrupção viceja com mais força em modelos intermediários, em que nem existe a estatização absoluta da atividade e nem um jogo totalmente livre das forças do mercado. Onde existe uma concessão a ser regulada, uma licitação a ser feita, abre-se uma janela de oportunidades.

O quarto ingrediente presente no caso brasileiro é o de uma oposição forte, coesa e intransigente. A oposição não detona o escândalo, mas influi em sua propagação e amplifica suas consequências.

O fator preponderante para a desestabilização, na opinião de Balán, são as dissensões dentro do grupo de poder. É algo que se pode questionar no caso da Lava-Jato, onde a investigação começou entre os operadores do esquema, migrou para as empresas e só agora chega na classe política. Mas é fato que a disputa interna potencializou a corrupção, sobretudo nas esferas dependentes de Nestor Cerveró e Paulo Roberto Costa, que trocaram de patrocinador durante o governo Lula para permanecer à frente de diretorias da Petrobras.

No caso específico de Eduardo Cunha, sua queda passou a interessar a muitos. É algo que o distingue do presidente do Senado, Renan Calheiros, que responde a vários inquéritos relacionados à Lava-Jato, mas com blindagem maior. "Renan na presidência do Senado consegue atender a interesses tanto do PT quanto de Temer. Ele interessa ao sistema político e isto o torna mais forte não apenas em comparação a Cunha, mas ao próprio presidente interino", afirmou Praça.

Nada indica, entretanto, que Renan consiga converter sua força no sistema político em uma ação desestabilizadora contra o arcabouço legal que viabilizou o Lava-Jato. Previsões são prematuras, mas a tendência por uma espécie de empate é forte: nem o sistema partidário se depura com a ação dos sistemas de controle, nem será capaz de lancetá-lo.

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