domingo, 1 de maio de 2016

Mariz, a realidade descartada – Elio Gaspari

- O Globo

Coisa digna de Lewis Carroll e do País das Maravilhas de sua querida Alice. Haveria uma hora em que a realidade deixaria de existir, restando apenas a fantasia. Quem mostrasse o mundo real seria visto como excêntrico, afoito, talvez até errático. Foi isso que aconteceu com o advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, o quase-ministro da Justiça de Michel Temer.

No mundo da fantasia brilha a figura de Eduardo Cunha, ele preside a Câmara e é réu no Supremo Tribunal Federal. O vice-presidente, companheiro de chapa de Dilma Rousseff, coordena sua deposição e ela acusa-o de golpismo. O PMDB deixou o governo, para voltar. Gilberto Kassab, do PSD, um dos últimos a sair, poderá ser um dos primeiros a reassumir.

Mariz é um veterano e bem-sucedido advogado. Entre os seus clientes esteve o Michel Temer que convidou-o para o ministério da Justiça. Os dois se conhecem há décadas e o vice-presidente lê jornais. Sabia há meses que Mariz é um adversário público dos métodos da Operação Lava Jato, sobretudo do sacrossanto e decisivo instrumento das colaborações de acusados. Em janeiro, ele assinou com outros 104 advogados um manifesto denunciando o que julgam ser uma "tentativa de justiçamento como não se via nem mesmo na época da ditadura". Mariz foi adiante: "Os tribunais têm dado muita guarida, apoio às decisões dele (Sergio Moro) porque, de uma certa forma, estão influenciados por um movimento social punitivo".

Pode-se discordar dele, mas Mariz pôs a cara na vitrine. Quando seu nome caiu na planilha do ministério, foi criticado por defender um diretor de empreiteira e prontamente defendido pelo ex-deputado José Yunes, amigo de Temer há 40 anos, praticamente confirmado na posição de assessor especial do novo governo.

Na semana passada Mariz deu três entrevistas e, dizendo o que sempre disse, levou a realidade para fora da fábrica de ilusões do Jaburu. Começaram a circular notícias de que Temer "não gostou" das entrevistas, classificadas como ruins, erráticas e inoportunas. O nome de Mariz foi "descartado" porque alimentaria versões segundo as quais o vice-presidente gostaria de esvaziar a Operação Lava Jato.

Tudo ficção. Temer conhece Mariz há décadas. Se os dois nunca conversaram sobre a Lava Jato, são os únicos brasileiros que discutem política sem mencioná-la.

Mariz fez uma coisa que aos poucos desapareceu da política brasileira: disse o que pensa. Dilma prometeu crescimento e entregou recessão. O PSDB era contra o impeachment e ficou a favor. Lula não tem sítio em Atibaia e o PMDB abandonou o governo por convicção. Um sujeito que diz o que pensa deve ser rapidamente descartado, pois se transforma em ameaça à ordem da fantasia.

Lewis Carroll matou a charada. Quando a Rainha mandou que cortassem a cabeça de Alice, a menina desafiou-a e restabeleceu a realidade: "Vocês não passam de um baralho de cartas". Eram.

De onde sairá o novo Chalaça?
Todo governante tem um amigo de fé que se transforma em sombra do monarca. Essas pessoas acreditam que têm identidade própria. Na realidade, são uma função do poder palaciano. Mudam de rosto e de nome, mas fazem sempre a mesma coisa.

D. Pedro 1º teve no seu amigo "Chalaça" o patrono da espécie. Pedro 2º teve o mordomo Paulo Barbosa da Silva, mas livrou-se dele. O marechal Deodoro inaugurou a República e o mundo dos escândalos com empreiteiros quando quis empurrar um contrato que beneficiava seu amigo Trajano Medeiros. Getúlio Vargas teve a asa negra de seu irmão Benjamin.

Collor celebrizou-se com o empresário Paulo César Farias e seu jatinho Morcego Negro. Lula teve em José Dirceu "capitão" de seu time.

Começa agora a busca pelo Chalaça de Temer.

Não foi só ela
Enquanto Dilma Rousseff vive seus últimos dias no Planalto, começou a operação de despejo de entulho na sua biografia.

Lula contou que Dilma levou a vaca para o brejo no inicio da campanha de 2014, quando não abriu caminho para que ele saísse candidato.

Essa história é falsa. A troca foi defendida por Marta Suplicy e Lula não moveu um dedo em defesa da proposta.

Vão para o baú das dúvidas duas perguntas: Se Lula fosse ao Planalto e dissesse que queria o lugar, Dilma seria capaz de contrariá-lo? Por que Lula não foi?

Recordar é viver
Houve um dia em que o PT e o PSDB puderam andar juntos. Em dezembro de 1993, quando o Brasil vivia um clima de desordem política e econômica, o empresário Oded Grajew e o professor Luis Carlos Bresser Pereira tentaram juntar as duas tribos. Fizeram reuniões e lançaram um manifesto assinado por mais de 500 pessoas.

Conseguiram as adesões de Antonio Palocci, José Eduardo Cardozo, Lourdes Sola, Elza Berquó, Paulo Sérgio Pinheiro e Roberto Schwarz.

Faltaram duas, a de Fernando Henrique Cardoso e a de Lula.

Em 1994, FHC dobrou à direita. Dez anos depois, Lula fez parecido.

O PT e sua cruz
Sem Dilma, o PT livra-se de uma cruz e fica à vontade para fazer oposição.

Nessa nova condição, reciclará aquilo que hoje é sua memória do poder transformando-a num arquivo de denúncias. Os petistas, que tanto reclamaram de vazamentos seletivos, irão para o outro lado do balcão.

No Torto
Se Temer assumir temporariamente a Presidência da República, é provável que Dilma Rousseff desocupe o Palácio da Alvorada, mudando-se para a Granja do Torto.

Não é por nada, mas essa propriedade não traz sorte. Era a morada predileta de Lula, do general Figueiredo e de João Goulart.

Odebrecht
Um curioso que ouviu conversas dentro da Odebrecht garante que a estratégia da empresa está sendo discutida por cerca de 50 advogados. Nessa conta entram profissionais da corporação e representantes de diretores e ex-diretores.

À primeira vista o fenômeno tem explicação, mas os doutores deveriam se perguntar o que acontece com um paciente que tem 50 médicos. Tancredo Neves teve uns 20 e deu no que deu.

Angola
Discretamente, o governo Obama apertou os parafusos de sua relação com Angola, e o presidente José Eduardo dos Santos já disse que vai deixar o governo onde está desde 1979.

A banca americana está recusando clientes que recebem depósitos de Luanda.

Mais uma CPI
O mercado de comunicações brasileiro já tem lombadas suficientes. Não precisa de uma CPI.

A última comissão da espécie, criada pelo notável Eduardo Cunha, foi a do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

Mal começou a trabalhar e parece replicar o estilo da CPI do Banestado, criada em 2003. Dizer que deu em nada seria um engano. Dar, deu. No quê, não se sabe direito.

Isso fazendo-se de conta que não existiu a CPI do Carlinhos Cachoeira.

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