quarta-feira, 20 de abril de 2016

O reencontro - Cristiano Romero

• Os "neoliberais" deram a Lula uma série de conquistas

- Valor Econômico

O biênio 2015-2016 tem sido o reencontro do PT com 2002. Naquele ano, assustados com as ideias defendidas historicamente pelo partido, investidores fugiram dos ativos no país, provocando forte desvalorização do real, queda da bolsa de valores e disparada dos juros. Para acalmar o mercado, Lula, então candidato à Presidência da República, fez a Carta aos Brasileiros, na qual defendia respeito aos contratos e políticas responsáveis. Agora, animados com a possibilidade de saída do PT de Brasília, os investidores compram ativos, valorizando a bolsa e derrubando o dólar e os juros.

Na verdade, aquela Carta não acalmou ninguém. O documento foi divulgado em junho de 2002 e os mercados continuaram se deteriorando, tanto que, em agosto, o país teve que bater à porta do Fundo Monetário Internacional (FMI) para negociar um socorro. Para o candidato do PT, não foi difícil assumir os compromissos da Carta.

Lula nunca foi de esquerda. Tornou-se um líder sindical tardio que rejeitava a sedução do irmão Frei Chico para se tornar comunista. Ao fundar o PT ao lado de sindicalistas, da chamada igreja progressista, de intelectuais e de remanescentes da guerrilha armada, procurou conter a influência do último grupo, do qual José Dirceu era um dos expoentes. Dirceu fora adversário de Lula no partido - sua visão era utilitarista e ingênua: achava que Lula era apenas um instrumento para ele chegar ao poder.

O que Lula sempre teve foi um arraigado sentimento de classe, bastante explorado nos momentos de dificuldade política e muitas vezes confundido com ideologia de esquerda. Derrotado na eleição de 1994, percebeu que não chegaria lá se continuasse empunhando apenas as bandeiras do PT. Começou, então, a defender a ampliação de alianças além dos partidos de esquerda e o diálogo com empresários. Chegou a ameaçar não sair candidato e acabou derrotado também em 1998.

Em 2002, Lula encontrou um governo com uma imagem tão desgastada que, inicialmente, decidiu lançar campanha com as velhas bandeiras da esquerda. A Carta aos Brasileiros foi uma inflexão no discurso a três meses da eleição, assim como a escolha do vice - o empresário e senador José Alencar, do Partido Liberal -, mas não a ponto de descaracterizar o viés esquerdista da candidatura.
Vitorioso no pleito, Lula deixou de lado o ideário do PT e nomeou um banqueiro tucano para o Banco Central (Henrique Meirelles) e um médico trotskista convertido (Antonio Palocci) para o Ministério da Fazenda. A dupla improvável montou uma equipe de respeito e fez tudo direitinho. Aquela crise era muito mais grave que a atual - o país estava à beira de um calote - e, mesmo assim, num espaço relativamente curto de tempo, foi contornada.

A dívida pública parou de crescer e depois começou a declinar; a economia voltou a se expandir já em 2003, primeiro ano de Lula no poder; a inflação caiu de 12,53% em 2002 para 3,14% em 2006; em 2005, o governo antecipou, em dois anos, a quitação da dívida com o FMI; três anos depois, as agências de classificação de risco conferiram grau de investimento ao país.

Os "neoliberais" deram a Lula uma série de conquistas: a menor taxa de inflação do regime de metas; o ritmo de crescimento econômico mais rápido; o melhor desempenho das contas públicas, o que permitiu ao governo implantar políticas sociais como o Bolsa Família; a eliminação da dívida com o FMI, medida de grande valor simbólico para a esquerda; a acumulação de reservas cambiais; a queda do desemprego.

Foram essas conquistas que permitiram a Lula deixar de ser um líder sindical e político para se tornar um líder popular, talvez, o maior desde Getúlio Vargas, o "pai dos pobres". Mas eis que estourou o escândalo do mensalão, em 2005. Acuado, com ameaça inclusive de perda do mandato, Lula pediu socorro à esquerda, que lhe sempre foi útil e estava achando sua gestão excessivamente liberal. Nomeou sindicalistas para os ministérios, estendeu a receita do imposto sindical às centrais, elegeu a recuperação do salário mínimo como prioridade e autorizou reajustes salariais generosos para o funcionalismo.

A nomeação de Dilma Rousseff para o lugar de José Dirceu na Casa Civil foi parte da inflexão forçada pelo mensalão. Dilma era um aceno à esquerda. Pacificado com sua base social, mas ainda pragmático, Lula vivia o dilema de abrir espaço no governo para as teses da esquerda e, ao mesmo tempo, manter a disciplina fiscal e monetária que caracterizou seu mandato até ali.

De 2006 a 2008, o que se viu foi o governo usufruindo dos bônus do ajuste iniciado em 2003, mas começando a ensaiar mudanças. Com o agravamento da crise mundial em setembro de 2008, os desenvolvimentistas, que já eram maioria no governo, acreditaram que a crise era a licença que eles precisavam para pôr em prática suas ideias.

Lula até concordou, mas, seguindo seu instinto de sobrevivência, não deixou que mexessem no comando do Banco Central. A presença de Palocci na campanha de Dilma e depois no governo - uma espécie de aval em troca da confiança do sistema financeiro e do setor produtivo - era uma representação do dilema de Lula e também do temor que ele tinha em relação ao que Dilma poderia fazer na economia.

Num episódio ainda nebuloso, Palocci deixou o governo ao fim dos primeiros seis meses da gestão Dilma, acusado de enriquecimento ilícito - o caso foi arquivado. A queda do avalista do governo foi um marco: nos meses e anos seguintes, os economistas do PT implantaram a política econômica com que sempre sonharam. Na prática, desmantelaram, sem constrangimento, o arcabouço macroeconômico erigido pelos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula.

Onde havia disciplina fiscal, instalou-se a desordem populista, traduzida pela ideia de que não existe escassez de recursos públicos, especialmente, se for para bancar programas supostamente sociais; onde havia disciplina monetária, prevaleceu a tese de que os juros são altos por causa dos rentistas e, portanto, podem ser reduzidos na marra; onde havia controle da inflação, a meta (4,5%) se tornou piso e o teto (6,5%), meta; onde havia prudência com o crédito subsidiado, sobreveio uma impressionante transferência de renda (cerca de 10% do PIB) para apenas um segmento da sociedade (o empresarial).

Em seu primeiro mandato, Lula estava reformando o pensamento econômico da esquerda brasileira. Originário da esquerda, FHC tentou fazer isso, mas não conseguiu. O retrocesso com Dilma joga o Brasil no passado, no estágio em que praticamente tudo terá que ser reconstruído, com muito sacrifício justamente para aqueles que mais sofrem com inflação alta, desemprego, Estado falido e juros elevados.

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