quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Sobre “tudo que está aí”: Maria Alice Rezende de Carvalho*

- Boletim Cedes – Centro de Estudos Direito e Sociedade agosto-dezembro 2015

Alguém já disse que o ensaísta Otávio Paz se sentia à vontade “no todo”, no trato de questões que lhe permitiam viajar por largos períodos de tempo, transitando, quase sempre, do domínio da política para o da cultura, do conjuntural para um aspecto constitutivo do modo de existência dos mexicanos. Mas talvez se pudesse dizer que, independente do ensaísta, esse é o propósito do gênero ensaio: um esforço de entendimento de algo que é pressentido no seu contorno, e não no detalhe. Ensaios falam de coisas já sabidas por todos, que, contudo, tomam de assalto a consciência quando arrumadas de um jeito novo. Por isso, quando o contexto expõe fraturas políticas aparentemente profundas, quando a divisão é o elemento dominante no cenário intelectual, o ensaio é um convite à reunião de todos nesse lugar comum, uma convocação a esse recuo de onde é possível avistar mais facilmente o “todo”.

Vive-se hoje uma crise cujo escopo abrange a política, a economia, a legalidade republicana e um modo de existir socialmente, a que se dá o nome – ou, pelo menos, se dava – de Brasil. Se as três primeiras dimensões são constantemente referidas, revezando-se na preferência dos analistas, as menções à nossa maneira de viver, isto é, à ética social brasileira e aos deslocamentos que se verificam nesse âmbito têm sido menos frequentes. E talvez seja aí onde se nutre o nosso mal estar.

No Brasil, guardadas as devidas proporções, as três últimas décadas conheceram uma revolução social comparável à dos anos compreendidos entre 1940 e 1980. Naquela época, a chegada de milhões de brasileiros às cidades era o aspecto que mais se destacava e o que melhor traduzia os rumos que a modernidade assumia entre nós. O êxodo rural experimentou um momento de grande aceleração, e, por volta de 1970, chegou a transferir para as cidades o equivalente a 30% da população rural – cerca de 12 milhões de pessoas. Assim, se o Brasil dos anos 1940 apresentava uma taxa de urbanização de 26,35%, ao final do período mencionado, essa taxa já havia atingido 68,86%. Em seu livro A urbanização brasileira, onde se encontram tais informações, Milton Santos afirma que, ao longo desses quarenta anos, a população total do Brasil triplicou, enquanto a população urbana brasileira se multiplicou por sete vezes e meia.

Os migrantes vinham atrás de melhores condições de vida – o que significava não apenas casa e trabalho dignos, mas também o acesso à educação e, sobretudo, a uma vida livre, que as relações de trabalho nos latifúndios não favoreciam. Movido pelas políticas de substituição de importações, o mercado industrial de trabalho foi uma poderosa miragem para aquele contingente, estimulando, nesse sentido, a urbanização dos Estados de São Paulo e da Guanabara, destinos preferenciais de homens pobres do campo, sem adequação imediata ao modo de vida urbano. Muita gente se desprendeu de toda parte do Brasil em busca de melhor destino; e a penosa entrada em um mundo desconhecido não parecia tão ruim, comparada à permanência no campo.

O fato, porém, é que essa revolução demográfica conhecerá assentamento durante a ditadura militar, conformando, nas cidades, um tipo de experiência social inseparável daquela circunstância. Se a experiência política da ditadura vem sendo revolvida – como se observa com a construção de uma memória pública relativa àqueles anos –, o mesmo não se dá com a experiência social da ditadura, ainda que seus efeitos sejam bastante severos e duradouros. É claro que um número significativo de estudos se debruçou sobre a organização da sociedade civil naquele período, apontando, justamente, a destruição – ou, pelo menos, o abrandamento – do que havia sido conquistado desde o segundo pós-guerra. Mas as organizações sociais, como se sabe, além de habitarem a fronteira da política, supõem a participação de cidadãos empenhados. Portanto, a experiência social da ditadura como algo que afeta a todos, indistintamente, e não apenas àqueles que participam do mundo público-político, deve ser buscada em uma específica configuração histórico-espacial que resultou do encontro entre aquela gigantesca onda migratória e o autoritarismo político. A esse resultado se pode dar o nome de “cidade da ditadura”, isto é, o ambiente urbano que, tendo sido fruto de uma determinada conjuntura, se tornou perene.

A súbita movimentação de migrantes em escala superior ao que as cidades brasileiras poderiam comportar gerou uma pressão social latente que terá sido afrouxada com a informalização do trabalho e da habitação, o que não apenas liberou variadas estratégias de subsistência, incluído o improviso habitacional das favelas e cortiços, como também desmarcou algumas instituições da cidade – sobretudo ruas e espaços públicos, que foram sendo devoradas pela informalidade reinante. Deliberada ou não, foi essa a “política urbana” praticada pelos militares: deixar que as cidades fossem conformadas pela acomodação espontânea entre velhos e novos habitantes, velhos e novos interesses, cabendo os custos materiais e sociais daquela acomodação aos próprios citadinos. Ao fim de algum tempo, a desregulação encontrou operadores que mercantilizaram alguns arranjos e passaram a viver do absenteísmo governamental. Mandões, valentões, toda a florada de patronos dos ajuntamentos populares contiveram a pressão embaixo – alinhados, evidentemente, pela repressão estatal – enquanto, em cima, mandava a indústria da construção civil, incorporando novos terrenos e dando emprego à mão de obra despreparada e analfabeta que adentrara o mundo urbano. Viadutos, túneis, pontes, conjuntos habitacionais construídos em áreas de fronteira da cidade, foram amarrando as gerações futuras a uma era de autoritarismo político que se inscreveu na própria morfologia das cidades

É, portanto, nessas “cidades da ditadura” que continuamos a viver – cidades marcadas por arranjos urbanísticos de péssima qualidade e pior inspiração, pela escassez de saneamento, pela proliferação de guetos sociais, pela violência do Estado, pela ausência de participação efetiva da sociedade em experiências de auto-organização, e, como se não bastasse, pelo desrespeito à vida (e mesmo à morte), que se percebe em eventos como o da recente passagem do trem da SuperVia sobre o corpo do jovem que jazia em seus trilhos. Pesquisa realizada posteriormente pelo jornal O Dia constatou que a maioria dos entrevistados apoiou a decisão dos administradores. Quem há de estranhar? A brutalização dos passageiros da SuperVia é nutrida, cotidianamente, pela ausência de dignidade que a empresa lhes concede: não há limpeza, conforto, segurança, banheiros públicos, plataformas cobertas nas estações, acessos facilitados aos mais velhos, às crianças e aos deficientes, e, aliás, qualquer certeza quanto aos serviços anunciados. Enfim, esse é o miserável cenário que nos contém, em nada parecido com o de uma cidade livre – vivemos tristes em ruas tristes, aprisionados em cidades da ditadura.

As três últimas décadas no Brasil, de modo similar ao que ocorreu nos anos compreendidos entre 1950-1980, representaram uma mudança estrutural no país, expressa na chegada de milhões de brasileiros ao mundo dos direitos. Não se trata mais da migração campo-cidade, mas da vitória da agenda da igualdade, que conhece enorme desenvoltura em todo o mundo – e, no Brasil, não tem sido diferente. Entre nós, as políticas de transferência de renda somadas a um ambiente político democrático pareciam poder impulsionar a participação e, com ela, o aprofundamento das conquistas consagradas pela Carta de 1988. O tema da “inclusão” e a denúncia da desigualdade seguem sendo, desde o início dos anos 2000, os ângulos hegemônicos das análises voltadas aos impasses da democracia brasileira.

Portanto, é impossível não mencionar avanços auferidos nesse âmbito – das políticas focais a estratégias de valorização dos setores mais vulneráveis da população. Mas também seria irresponsável desconhecer o fato de que tais avanços apenas roçam a superfície do problema. E por dois motivos. O primeiro deles é mais óbvio: não basta apenas ter acesso aos direitos; é preciso que eles se tornem efetivos, cumulativos e cotidianos. Crianças e jovens vão às escolas, mas não necessariamente se alfabetizam ou têm a chance de fazer do conhecimento uma via de ascensão e de reconhecimento social; moradores de favelas têm acesso à eletricidade, mas, se houver um problema no fornecimento, por quantos dias, semanas, em alguns casos, meses, permanecerão sem o serviço? De fato, a democratização dos “bens de cidade” ainda é limitada, pois a simples garantia dos direitos não corresponde automaticamente ao seu usufruto.

O segundo motivo, talvez mais importante, é que a cidade, tal como se encontra estruturada, não permite que mesmo as mais bem intencionadas políticas de transferência de renda alterem o círculo vicioso da pobreza urbana, que, como se sabe, supõe uma forte relação entre territórios e oportunidades sociais e ocupacionais. Assim, transferir renda, mantendo, porém, grandes áreas da cidade destituídas de equipamentos e serviços públicos, não promoverá a democratização da sociedade. Afinal, parodiando Luiz Cesar Queiroz Ribeiro, “o que a economia produz como promessa de bem-estar individual, a metrópole transforma em mal-estar coletivo”.

Em suma, a novidade dessa segunda revolução demográfica não é mais a chegada das grandes massas à cidade e sequer sua adequação à pauta de consumo que a cultura urbana impõe, mas, antes, a chegada das grandes massas ao mercado de crédito – fenômeno que cancelou a barreira da “heterogeneidade estrutural” que, na América Latina, impedia o avanço da sociedade de mercado. O argumento é da economista Lena Lavinas, que, no caso brasileiro, observa que o sistema de saúde – mas, se poderia dizer o mesmo sobre o sistema educacional – foi financeirizado, como se atesta pela rápida expansão dos planos de saúde. No caso do sistema educacional, vide a multiplicação de escolas e faculdades privadas.

Ora, esse deslocamento da provisão pública dos “bens de cidade” para a esfera privada não reflete a melhoria das condições de vida das famílias brasileiras. Trata-se, ao contrário, de uma dinâmica de fortalecimento do capital financeiro e de mercantilização da cesta básica de direitos (nela incluídos, habitação e transporte), cujo efeito tem sido a ampliação da vulnerabilidade dos segmentos mais pobres da população. Em outras palavras, a política social que acompanha esse segundo grande ciclo de expansão da urbanização brasileira não concorre para a democratização da cidade. Sendo o acesso ao mercado financeiro a grande novidade desse segundo desenvolvimentismo, todas as exigências de uma cidade igualitária vêm sendo progressivamente descuidadas, para não dizer canceladas: não há saneamento básico para uma grande parte da população metropolitana, não se construíram moradias dignas na proporção requerida, o sistema de transportes humilha e avilta seus usuários, a saúde e a educação públicas são deficientes e... se utiliza o crédito para assegurar necessidades básicas. Nesse sentido, à “cidade da ditadura”, excludente e autoritária, se superpõe a “cidade da inclusão financeira”, que não afeta a morfologia urbana herdada do regime militar e tampouco a desigualdade nela inscrita.

Daí que, paralelamente aos diagnósticos que tomam as jornadas de julho de 2013 como expressão periférica de um movimento global de contestação política, como algo derivado de energias destampadas pela interação de jovens que, “não sabendo o que querem”, sabem que não desejam ver obstruídos seus esforços de participação, é importante destacar o quanto o modo de vida nas cidades brasileiras contribuiu para a deflagração daquele e de futuros levantes.

É claro que há algo de descontentamento político no movimento das ruas, sobretudo se considerarmos o quanto os representantes se distanciaram da sociedade e de seus anseios. Mas isso talvez seja mais verdadeiro entre os jovens argentinos, que têm proclamado um contundente “que se vayam todos”. O levante das ruas brasileiras, diferentemente, foi e será movido por uma constatação da falência das instituições urbanas, uma sensação de desatendimento das expectativas quanto ao viver em cidade, uma amarga experiência social – além da política – deixada pela ditadura. A (des)organização do espaço, a sofrível oferta de serviços públicos, a individualização do acesso a bens de cidadania, a mercantilização, a exclusão, a desregulação, enfim, “tudo isso que está aí” são vestígios do fracasso da democracia brasileira em prover uma cidade livre e justa.
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* Professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e Pesquisadora do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES-PUC-Rio)

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