domingo, 19 de julho de 2015

Opinião do dia – Dora Kramer

Essa história de que o ato oficial da passagem do presidente da Câmara para a oposição é uma “posição pessoal” do deputado Eduardo Cunha serve como versão para esfriar temperaturas, mas não é um fato. O fato político importante está retratado numa imagem registrada na antevéspera: os presidentes da Câmara e do Senado ao lado do vice-presidente da República comunicando à Nação que o PMDB terá candidato ao Planalto na próxima eleição presidencial.
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Dora Kramer é jornalista. No artigo Mistura de estações. O Estado de S. Paulo, 19 de julho de 2015.

Documentos mostram que Lula fez lobby no exterior

Reforço companheiro: Mãos à obra no exterior

• Documentos mostram que Lula fez lobby para a Odebrecht em Portugal e Cuba

• Telegramas diplomáticos relatam atuação a favor da empreiteira

Chico de Gois, Eduardo Bresciani e Francisco Leali – O Globo

BRASÍLIA — Telegramas diplomáticos trocados entre chefes de postos brasileiros no exterior e o Ministério das Relações Exteriores, entre 2011 e 2014, indicam que as atividades do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em favor do grupo Odebrecht no exterior foram além da contratação para proferir palestras, contrariando o que o petista e a construtora têm sustentado. Os documentos apontam que Lula, já fora do cargo, atuou em pelo menos duas ocasiões para beneficiar a Odebrecht — uma delas, com pedido expresso para que o primeiro-ministro de Portugal, Pedro Passos Coelho, desse atenção aos interesses da companhia num processo de privatização naquele país. Outro telegrama revela que Lula abriu as portas do BNDES ao governo do Zimbábue, país africano governado pelo ditador Robert Mugabe.

Liberados na última quinta-feira pelo Itamaraty a partir de pedido feito pelo GLOBO por meio da Lei de Acesso à Informação, os documentos descrevem encontros de Lula em Cuba em companhia de representantes da construtora. Em uma das visitas à ilha, ele foi recepcionado pelo presidente da empresa, Marcelo Odebrecht, e pelo ex-ministro José Dirceu num hotel. Em outra, Lula atuou em projetos ligados à área de energia na região cubana de Muriel, onde a empreiteira construiu um porto com recursos do BNDES.

Por meio da assessoria de imprensa de seu instituto, o ex-presidente Lula nega que tenha recebido de qualquer empresa para “dar consultoria, fazer lobby ou tráfico de influência”. A Odebrecht também nega ter usado serviços de Lula para tentar obter contratos.

Desde a última quinta-feira, a relação de Lula com a empreiteira é alvo de inquérito da Procuradoria da República no Distrito Federal. Os investigadores querem saber se o ex-presidente praticou tráfico de influência internacional, crime incluído no código penal em 2002. A lei diz que é proibido receber vantagem ou promessa de vantagem em transações comerciais internacionais. O Instituto Lula alega que os recursos recebidos se referem às palestras. Sabe-se agora, com a revelação dos telegramas, que ele também atuava na defesa comercial da empresa. Portanto, o foco da investigação será apurar se a atividade de lobby também foi remunerada. Para isso, o ex-presidente e a Odebrecht poderão ter o sigilo fiscal, bancário e telefônico quebrados.

A movimentação do ex-presidente a favor da Odebrecht em Portugal é relatada em dois telegramas. Em 25 de outubro de 2013, o embaixador brasileiro em Lisboa, Mario Vilalva, enviou comunicado abordando a visita de Lula a Portugal, ocorrida entre os dias 21 e 23 daquele ano. O diplomata deixa claro que a visita do ex-presidente se dava em razão de convite da Odebrecht, por conta dos 25 anos de presença da construtora brasileira em Portugal. Na descrição da agenda de Lula em Lisboa, o embaixador narrou que, no dia 22 de outubro, à tarde, o petista “encontrou-se com empresários brasileiros, dentre os quais o dr. Emílio Odebrecht (presidente do Conselho de Administração da Odebrecht e pai de Marcelo)”.

Menos de sete meses depois, em outro telegrama, Vilalva, em 2 de maio de 2014, faz uma análise sobre a privatização da Empresa Geral de Fomento (EGF), que encontrava resistência por parte de alguns municípios portugueses que, na avaliação do embaixador, havia gerado pouco resultado. Após descrever como estava o processo, o diplomata observa que as empresas brasileiras Odebrecht e Solvi, em parceria com o grupo português Visabeira, demonstraram interesse no negócio, o que gerou simpatia dos formadores de opinião em Portugal. O diplomata registra a ação direta de Lula em favor da Odebrecht.

“Repercutiu positivamente na mídia recente declaração do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em entrevista à RTP no dia 27/04 último, no sentido de que o Brasil deve-se engajar mais ativamente na aquisição de estatais portuguesas. O ex-presidente também reforçou o interesse da Odebrecht pela EGF ao primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, que reagiu positivamente ao pleito brasileiro”, informou o diplomata.

Lula, de fato, deu uma entrevista à televisão portuguesa, falando dos 40 anos da Revolução dos Cravos e abordando vários temas, inclusive defendendo maior participação de empresas brasileiras nas privatizações conduzidas em Portugal — mas sem citar nenhuma empresa especificamente. A gestão a favor da Odebrecht, pelo que se depreende do comunicado emitido pelo diplomata, foi feita em caráter privado ao primeiro-ministro português. Segundo site do Instituto Lula, o ex-presidente se encontrou com Passos Coelho no dia 24 de abril, e teriam falado apenas da situação econômica mundial e da Copa no Brasil.

Na ocasião do telegrama, a empreiteira brasileira era uma das sete que tinham manifestado oficialmente interesse no negócio. Dois meses depois, porém, a Odebrecht acabou não formalizando proposta. A EGF acabou vendida por 149,9 milhões de euros para a Suma, consórcio formado por empresas portuguesas.

Em Cuba, recebido por Marcelo Odebrecht
O encarregado de negócios brasileiros em Cuba, Marcelo Câmara, num telegrama de 3 de março de 2014, informa sobre a visita que Lula fez à ilha entre os dias 24 e 27 de fevereiro do mesmo ano. Resumo da mensagem: “Tema central de suas interlocuções foi a prospecção de iniciativas para aperfeiçoamento da matriz energética à zona especial de Mariel, e o reforço da cultura de soja no país”. Nessa viagem, “em atendimento a convite do governo local e com apoio do grupo COI/Odebrecht”, como descreve o documento, Lula foi acompanhado, entre outros, pelo senador Blairo Maggi (PR-MT) e pelo ex-ministro de Minas e Energia Silas Rondeau, que deixou o governo em 2007 acusado de receber propina para favorecer empresas com obras federais.

Os documentos do Itamaraty registram ainda outras viagens de Lula a Cuba. Em junho de 2011, o ex-presidente foi recebido no hotel por Marcelo Odebrecht, presidente da empresa, e José Dirceu. “Em sua chegada ao hotel, Lula recebeu os cumprimentos do Senhor José Dirceu e do empresário Marcelo Odebrecht, Diretor-Presidente daquela construtora”, registrou o encarregado de negócios em Cuba na ocasião, Albino Poli Jr., em telegrama enviado para o ministério.

Marcelo está preso em Curitiba há um mês após ser detido na fase “Erga Omnes” da Operação Lava-Jato. Dirceu está em prisão domiciliar por sua condenação no mensalão e já foi mencionado na Lava-Jato por alguns delatores como beneficiário de propina por meio de sua empresa de consultoria. Na visita em que fez na companhia deles a Cuba, o ex-presidente se reuniu com Raúl e Fidel Castro. Pelo relato do telegrama, Marcelo ficou fora das duas reuniões, enquanto Dirceu acompanhou Lula apenas na conversa com Raúl.

O ex-presidente teve ainda outra viagem ao país dos irmãos Castro associada à Odebrecht. Conforme revelado pelo GLOBO, Lula esteve no país em janeiro de 2013 com as despesas pagas pela empreiteira. Alexandrino Alencar, então diretor de Relações Institucionais da empresa, chegou no mesmo jatinho no qual viajou o ex-presidente. Alencar também foi preso na Lava-Jato no mês passado e deixou a empreiteira.

Os comunicados da diplomacia brasileira demonstram ainda que Lula atuou para aproximar o governo do Zimbábue ao BNDES, embora não fique claro se há ou não alguma ligação direta com obras da Odebrecht. Em um comunicado enviado da sede do ministério para a representação brasileira no Zimbábue há a descrição de que o ex-presidente solicitou que o embaixador daquele país fosse recebido no banco de fomento. A reunião teria ocorrido em 3 de maio de 2012. Desde 1980, o Zimbábue é governado pelo ditador Robert Mugabe.

Na lista de financiamentos de obras e serviços no exterior divulgada pelo BNDES não consta nenhum financiamento para a atuação de empresas brasileiras no Zimbábue, mas em 2013 por meio do Ministério de Desenvolvimento Agrário foram liberados US$ 98 milhões para aquele país no âmbito do programa Mais Alimentos Internacional.

Operação rastreia contas secretas para comprovar delação que incrimina Cunha

Ricado Brandt, enviado especial a Curitiba, Fausto Macedo, Julia Affonso e Valmar Hupsel Filho – O Estado de S. Paulo

A força-tarefa da Operação Lava Jato rastreia documentos sobre contas secretas que seriam mantidas no exterior pelo ex-diretor da Petrobrás Nestor Cerveró e Fernando Falcão Soares, o Fernando Baiano - apontados como "braços" do PMDB no esquema de corrupção na estatal -, para tentar comprovar as informações prestadas pelo lobista Julio Camargo em depoimento no qual incriminou o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Na quinta-feira, Camargo, um dos delatores da Lava Jato, declarou à Justiça Federal que Cunha exigiu dele em 2011 US$ 5 milhões de propina para a manutenção de dois contratos de navios-sonda assinados pela coreana Samsung em parceria com a japonesa Mitsui.

Foi a primeira vez que Camargo, que fez colaboração premiada em outubro de 2014, citou Cunha como destinatário de propina. Como possui foro privilegiado, o presidente da Câmara é alvo de inquérito no Supremo Tribunal Federal que apura crimes de corrupção e lavagem de dinheiro.

Anteontem, o juiz federal Sérgio Moro, que conduz os processos da Lava Jato na primeira instância, em Curitiba, anexou extratos bancários com movimentações das contas aos autos da ação penal em que Cunha foi citado por Camargo. Os documentos foram enviados por autoridades da Suíça.

O lobista disse no depoimento que Fernando Baiano lhe relatou na época que estava sendo pressionado pelo deputado a pagar US$ 10 milhões "atrasados" de um total de US$ 30 milhões de propina - dos quais US$ 5 milhões seriam para o peemedebista. Camargo afirmou que depositou recursos em contas no exterior tendo como beneficiário Fernando Baiano após se encontrar pessoalmente com Cunha no Rio em 2011. Os documentos anexados por Moro ao processo dizem respeito às contas Three Lions Energy Inc, Pentagram Energy Corp, Falcon Equity, Marbury Investment & Finance, Russel Advisors e Forbal - todas empresas offshores abertas por Baiano e Cerveró fora do Brasil para movimentar recursos em paraísos fis cais, conforme as investigações.

Compartilhamento
Na ação penal são réus Cerveró, Baiano e Camargo, entre outros, acusados de corrupção e lavagem de dinheiro. Nas próximas semanas, o juiz Sérgio Moro deverá decidir se condena ou não os acusados. Toda documentação arregimentada pela força-tarefa da Lava Jato na primeira instância é compartilhada com a Procuradoria-Geral da República, que conduz os inquéritos no âmbito do Supremo - entre eles o que investiga o presidente da Câmara. Caberá ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, a tarefa de oferecer ou não denúncia contra Cunha e as outras autoridades com prerrogativa de foro.

Para o Ministério Público Federal no Paraná, as movimentações já detectadas entre as contas das offshores Piamonte, atribuída a Camargo, para a ThreeLions, atribuída a Fernando Baiano, e posteriormente para a Russel Advisors Inc, que seria mantida por Cerveró, comprovariam os pagamentos de propina no caso dos navios-sonda. Fernando Baiano e Cerveró também foram ouvidos na quinta-feira passada por Moro em audiência da ação penal. Os dois permaneceram calados.

Defesas
Procurado ontem pelo Estado, Cunha disse por meio de sua assessoria que não tem qualquer envolvimento com o esquema de corrupção na Petrobrás. "O presidente da Câmara não faz parte disso", afirmou a assessoria. Desde que o depoimento de Julio Camargo veio à tona, Cunha aponta "uma tentativa de constranger o Poder Legislativo", tendo "por trás" o Executivo em articulação com Janot.

Anteontem, ele também atacou o juiz Sérgio Moro, afirmando que o magistrado "se acha o dono do mundo" e não poderia ter tomado depoimentos de investigados que citam autoridades com foro privilegiado. Moro reagiu e divulgou nota na qual afirma que "não cabe ao Juízo silenciar testemunhas ou acusados na condução do processo". A defesa de Fernando Baiano afirmou que desconhece os fatos relatados por Júlio Camargo na quinta-feira passada. De acordo com o advogado Nélio Machado, Fernando Baiano jamais admitiu possuir contas no exterior.

O advogado de Cerveró, Edson Ribeiro, negou que seu cliente tenha recebido propina referente aos contratos dos navios-sonda. "Não existe essa ligação. O Ministério Público vai ter de provar", afirmou. Ribeiro não comentou as investigações envolvendo offshores mantidas fora do País e atribuídas ao ex-diretor da área Internacional da Petrobrás.

Nestor Cerveró
Ex-diretor de Internacional da Petrobrás
O ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás Paulo Roberto Costa e o doleiro Aberto Youssef, delatores da Lava Jato, afirmaram que, no esquema de corrupção na estatal, a área chefiada por Cerveró de 2003 a 2008 era controlada pelo PMDB. No fim de 2014 a Justiça aceitou denúncia da Procuradoria contra Cerveró, Alberto Youssef, Fernando Baiano e Julio Camargo segundo a aual Cerveró e Baia) teriam recebido US$ 20 milhões em propina pela contratação pela Petrobrás de dois navios-sonda, entre 2006 e " 2007. Cerveró, preso desde janeiro deste ano, diz que não houve irregularidades.

Fernando "Baiano" Soares
Apontado como operador do PMDB
Segundo a Lava Jato, operadores intermediavam a relação entre empreiteiras e diretores da Petrobrás em troca de comissões, que depois eram distribuídas entre executivos da estatal e políticos. Na área Internacional, comandada por Cerveró, Fernando Baiano, que está preso, era um dos principais operadores. Baiano foi citado em delações de Youssef e do lobista Julio Camargo, que relataram pagamento de propina envolvendo a contratação de navios-sonda pela Petrobrás e citaram Eduardo Cunha. Baiano é réu na mesma ação que Cerveró, e nega participação no esquema.

Planalto refaz a aposta no histórico de divisão do PMDB

- O Estado de S. Paulo

A presidente Dilma Rousseff aposta na divisão do PMDB para conseguir aprovar a última etapa do ajuste fiscal no Congresso. Depois que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), abriu guerra ao Planalto, emissários do governo acenaram para a outra ala do PMDB, liderada por Renan Calheiros (AL), que comanda o Senado.

Renan também consta da lista dos políticos investigados pela Operação Lava Jato. Está magoado com o governo, mas, apesar de impor derrotas a Dilma, ministros do PMDB e do PT avaliam que ele não é tão radical. "Cunha disse que rompeu com o governo. Mas quando ele foi aliado?", perguntou um auxiliar de Dilma ao vice Michel Temer.

A estratégia do Planalto, agora, consiste em fortalecer Renan e outros pedaços do PMDB, para tentar circunscrever a crise a Cunha. O primeiro embate será em agosto, na volta do recesso parlamentar, quando o projeto que acaba com a desoneração da folha de pagamento das empresas passar pelo Senado.

Cunha age nos bastidores para que Renan ajude a alterar a proposta no Senado, criando problemas para o governo. A ideia é que, quando o projeto chegar à Câmara, novas mexidas contrárias aos interesses do Planalto sejam feitas.

Em conversas reservadas, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, avisou que agirá para impedir a derrota da última fase do ajuste. Está disposto a conversar com Cunha nessa missão. Além do problema econômico, o Planalto enfrenta a ameaça de cassação do mandato de Dilma. Após anunciar o divórcio com o governo, Cunha desengavetou 11 pedidos de impeachment contra a presidente. Se as contas de Dilma forem rejeitadas pelo Tribunal de Contas da União, ele já tem em mãos o roteiro para pôr em votação o impeachment. O termômetro para seguir em frente ou recuar, porém, será dado pelas manifestações de rua, marcadas para 16 de agosto.

Para ministros, país vive crise gravíssima após ato de Cunha

A ruptura do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), com o Planalto levou ministros de Dilma a considerar o momento atual como o de uma crise institucional gravíssima.

Assessores presidenciais afirmam que, mesmo com o enfraquecimento de Cunha por denúncias no petrolão, a reação dele deve piorar a situação do governo.

País vive "crise institucional gravíssima", admite governo

• Termo passou a ser usado após rompimento formal de Cunha com o Planalto

• Nos bastidores, avalia-se que a reação do presidente da Câmara pode agravar a situação de Dilma

Andréia Sadi e Marina Dias – Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - O rompimento formal do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), com o governo da presidente Dilma Rousseff levou integrantes do Palácio do Planalto a considerar o momento atual como o de "uma crise institucional gravíssima".

O termo, usado por ministros ouvidos pela Folha, foi definido após a confirmação do rompimento –uma reação de Cunha, que culpa o governo pelo que chama de ação orquestrada da Procuradoria-Geral da República para que o lobista Julio Camargo dissesse que deu US$ 5 milhões em propina para ele.

Até então, o lobista, investigado na Operação Lava Jato e que virou delator, negava ter passado suborno a Cunha.

Após o anúncio oficial do rompimento, na manhã da sexta-feira (17), os ministros José Eduardo Cardozo (Justiça), Edinho Silva (Comunicação Social) e Aloizio Mercadante (Casa Civil) discutiram uma reação ao posicionamento do peemedebista.

A ordem era a de não tensionar ainda mais a relação com o presidente da Câmara, tom adotado em nota divulgada pelo Planalto.

Nos bastidores, o entendimento é de que o Executivo já estava fragilizado com o ativismo do peemedebista no comando da Câmara, somado ao desgaste pela crise econômica e às denúncias de corrupção da Operação Lava Jato, envolvendo petistas, aliados e integrantes do governo.

Assessores presidenciais afirmam que a nova revelação sobre Cunha "equilibra" o jogo, pois enfraquece o peemedebista no momento em que o governo enfrenta um inferno astral no Congresso, com derrotas em projetos considerados cruciais para o Planalto, como a aprovação do reajuste do salário dos servidores do Judiciário pelo Senado e a redução da maioridade penal pela Câmara.

Ministros enxergam no enfraquecimento de Cunha a abertura de espaço para novas lideranças se destacarem no Congresso. E há quem defenda que o Planalto deveria procurar o PSDB e tentar um acordo para isolar de vez o peemedebista e desestabilizar seu exército de aliados.

Por outro lado, assessores presidenciais dizem que as previsíveis retaliações de Cunha devem piorar a situação do governo, que já enfrenta uma crise de credibilidade –a aprovação de Dilma Rousseff está na casa dos 10%.

O PMDB, partido tanto de Cunha quanto do vice-presidente, Michel Temer, também vê a situação como aguda.

Na própria quinta (16), quando vieram à tona os termos do depoimento de Julio Camargo, Cunha e Temer reuniram-se na Base Aérea de Brasília com Renan Calheiros (AL), o presidente do Senado, que compõe a trinca de poderosos do PMDB e que também é citado na Lava Jato.

Houve um consenso: que a governabilidade não será retomada enquanto o petista José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, que é chefe da Polícia Federal, estiver no cargo. Cardozo já teve de reafirmar a independência da PF após a pressão de sua própria legenda; agora enfrenta o maior partido aliado do governo.

Restará, na avaliação do comando do Planalto, saber qual será a atitude do procurador-geral da República, Rodrigo Janot. Está nas mãos de Janot uma eventual denúncia à Justiça contra Cunha e Renan. Isso, na visão do Planalto, enfraqueceria de forma mais decisiva os antigos aliados que hoje são adversários abertos do governo.

Janot está em campanha para ficar em primeiro na lista tríplice que Dilma irá analisar, em setembro, para comandar a Procuradoria-Geral. Uma denúncia contra "peixes graúdos" é vista como um passaporte para a recondução.

Retaliação
A retaliação mais dura que pode vir de Cunha é ele avançar com um eventual processo de impeachment contra a presidente. Aliados do peemedebista falam que o "timing" desta decisão será determinado pela intensidade das manifestações contra Dilma marcadas para 16 de agosto.

Enquanto isso, na sexta, o presidente da Câmara notificou deputados que têm pedidos de impeachment parados no Congresso para que refizessem os ofícios para cumprir requisitos legais.
Além disso, Cunha acelerou a instalação da CPI do BNDES, que preocupa o governo. Segundo a Folha apurou, petistas temem que o presidente do banco, Luciano Coutinho, seja instado a falar sobre supostos pedidos de ajuda a empresários para a campanha de Dilma em 2014.

Eduardo Cunha diz que não usará o cargo para se vingar do governo Dilma

• 'Não busquei e nem vou buscar apoio fora do PMDB, até porque cada partido tem e terá a sua postura dentro da sua lógica', diz deputado

Simone Iglesias / Luiza Damé – O Globo

BRASÍLIA - O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), afirmou em sua conta no Twitter, neste sábado, que não usará o cargo para se vingar. Na última sexta-feira, Cunha declarou que fará oposição ao governo da presidente Dilma Rousseff.

"Como presidente da Câmara vou me conduzir da mesma forma que venho fazendo, com independência e harmonia com os demais poderes. Não existe pauta de vingança e nem pauta provocada pela minha opção pessoal de mudança de alinhamento politico. Como político e deputado, vou exercer a minha militância defendendo posição diferente do que defendia antes. Não tenho histórico de ajudar a implementar o caos na economia por pautas que coloquem em risco as contas públicas", escreveu Cunha no microblog.

Ontem, após o anúncio de que estava rompendo oficialmente com a gestão da presidente Dilma Rousseff, o Palácio do Planalto divulgou uma nota oficial dizendo esperar que o gesto não se reflita nas ações de Cunha como presidente da Câmara, que devem ser pautadas pela imparcialidade e impessoalidade.

"O presidente da Câmara anunciou uma posição de cunho estritamente pessoal. O governo espera que esta posição não se reflita nas decisões e nas ações da presidência da Câmara que devem ser pautadas pela imparcialidade e pela impessoalidade. Neste momento em que importantes desafios devem ser enfrentados pelo País, os Poderes devem agir com comedimento, razoabilidade e equilíbrio na formulação das leis e das políticas públicas", diz um trecho da nota presidencial.

Cunha anunciou ainda que entrará com uma reclamação no Supremo Tribunal Federal (STF) por discordar da forma de atuação do juiz Sérgio Moro.

— Quanto ao juiz do Paraná, ele não poderia dar curso a participação minha como detentor de foro. Por várias vezes em oitivas ele interrompia as testemunhas e dizia que não podia tratar de quem tinha foro de STF. Ao que parece, ele mudou. Quanto a isso, meus advogados ingressarão com reclamação no STF — afirmou.

O presidente da Câmara mandou um recado aos peemedebistas, que imediatamente após o anúncio de seu rompimento, trataram do tema como uma questão estritamente pessoal.

— É importante reafirmar que a minha decisão de onte foi de caráter pessoal e em meu nome. Falei que ia defender no congresso do PMDB. Não busquei e nem vou buscar apoio para isso, a não ser o debate na instância partidária competente — respondeu aos correligionários.

Sobre a falta de apoio de deputados e partidos ao seu gesto de rompimento, Cunha afirmou que não está buscando número para derrotar o governo:

— Não busquei e nem vou buscar apoio fora do PMDB, até porque cada partido tem e terá a sua postura dentro da sua lógica. O meu gesto não significará que estou buscando ganhar número para enfrentar e derrotar governo — escreveu.

Aécio diz estar preocupado
O presidente nacional do PSDB, Aécio Neves, afirmou neste sábado que acompanha com “preocupação” o agravamento do quadro político no país.

— O PSDB acompanha com preocupação o agravamento do quadro político no país. Continuaremos atentos ao nosso papel de defender as nossas instituições para qu elas cumpram suas funções constitucionais. Todas as denúncias têm que ser investigadas, respeitado o amplo direito de defesa — afirmou o tucano.

Livro sobre impeachment de Collor permite associações com crise atual

Mauricio Puls – Folha de S. Paulo

"O Impeachment de Fernando Collor", novo livro do do sociólogo Brasilio Sallum Jr., faz uma reconstituição bastante esclarecedora do afastamento do então presidente, em 1992.

Embora não trace nenhum paralelo com a atual conjuntura e as ameaças de impeachment da presidente Dilma Rousseff, a obra permite que apreenda as semelhanças e, sobretudo, as diferenças entre as duas crises.

O estudo de Sallum Jr. mostra o peso decisivo que o personalismo de Collor –hoje senador pelo PTB-AL– teve no desfecho daquele processo.

Eleito em 1989 por uma sigla inexpressiva, o PRN (atual PTC, após uma mudança de nome), Collor montou um ministério desvinculado dos grandes partidos e governava o país por meio de medidas provisórias que reeditava indefinidamente.

O presidente só aceitou incorporar representantes de algumas agremiações ao seu governo em abril de 1992, após sucessivas derrotas no Congresso. Mas ainda assim escolheu ministros que não tinham boa sintonia com os parlamentares.

Seu isolamento político amplificou as acusações de corrupção feitas por seu irmão Pedro Collor.

A fragilidade de sua base parlamentar impediu que ele controlasse a CPI que investigou seu ex-tesoureiro de campanha, Paulo César Farias, conhecido como PC, e seu ministério não se empenhou em defendê-lo.

Embora tenha uma base de apoio instável, o governo Dilma tem mostrado um pouco mais sensibilidade em relação à dimensão dos partidos. Tem lhe faltado força para barrar CPIs, mas conseguiu aprovar boa parte das medidas do ajuste fiscal

Outra diferença importante reside na natureza das acusações contra cada governo.

No caso de Collor, as denúncias foram feitas por seu próprio irmão e implicavam o próprio presidente.

No caso de Dilma, as acusações se concentram no desvio de recursos de estatais para os partidos de sua base de apoio, mas não atingem diretamente a presidente.

Existem, contudo, alguns pontos de contato entre as duas crises. Nos dois casos o país estava em recessão, o que resultou em elevadas taxas de reprovação aos dois presidentes.

A impopularidade das duas gestões contribuiu para o surgimento de grandes manifestações de rua.

O livro de Sallum consegue resumir muito bem a história do governo Collor e apresenta um quadro abrangente dos fatores que levaram ao impeachment.

Mas, talvez devido à sua extensão, 424 páginas, contém pequenos erros de revisão. O PSDB foi fundado em 1988, e não em 1987 (p. 58); o partido não elegeu o prefeito de Fortaleza em 1988 (p. 68); Paulo Maluf teve 180 votos no Colégio Eleitoral em 1985, e não 189 (p. 25); a tendência O Trabalho não deixou o PT para formar o PSTU (p. 205), quem fez isso foi a ala Convergência Socialista; e não houve eleições no Brasil ano de 1991 (p. 378).

Líder PPS: CPIs do BNDES e Fundos de Pensão fecham cerco contra a corrupção

Por: Assessoria do PPS

O líder do PPS, deputado Rubens Bueno (PR), disse que as CPIs do BNDES e dos Fundos de Pensão fecham o cerco contra a corrupção com o aprofundamento das investigações sobre o tráfico de influência de agentes públicos e políticos nas empresas estatais e o aparelhamento do sistema de previdência complementar no País.

Ele é autor do pedido das duas comissões. A CPI do BNDES foi criada e a dos Fundos de Pensão autorizada pelo presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ), na sexta-feira (17).

Para Bueno, a troca de telegramas diplomáticos indicando as atividades de Lula em favor da Odebrecht, revelada na edição deste domingo do jornal O Globo, reforça ainda mais a instalação da CPI do BNDES na Câmara para apurar o tráfico internacional de influência exercido pelo ex-presidente em benefício da empreiteira.

“As investigações terão um efeito prático que será o de fechar o cerco contra a corrupção no governo do PT, seja pelo desmantelamento do aparelhamento político ao qual foram submetidos os fundos de pensão; da ação das consultorias ligadas a petistas nas empresas estatais; e do tráfico internacional de influência exercido no BNDES pelo ex-presidente Lula a favor de empreiteiras no financiamento de obras em países africanos e da América Latina”, afirmou.

O requerimento para investigação das operações de crédito feitas pelo BNDES entre 2003 e 2015 foi protocolado por Bueno em abril com assinatura de 199 deputados de 25 partidos. Apenas parlamentares do PT e do PCdoB não subscreveram o pedido.

“A CPI do BNDES foi uma das propostas trazidas ao Congresso Nacional por 26 movimentos que organizaram os protestos de rua contra ao governo Dilma em março abril”, lembrou o parlamentar.

Bueno requer a investigação de empréstimos considerados suspeitos pela Operação Lava Jato, da Polícia Federal, concedidos a empresas de fachada e as empreiteiras investigadas. As empresas citadas na operação receberam do BNDES, entre 2003 e 2014, financiamentos de R$ 2,4 bilhões.

Fundos
Já a CPI dos Fundos de Pensão contou com o apoio de 186 deputados de 24 partidos. O objetivo é o de investigar indícios de aplicação incorreta dos recursos e de manipulação na gestão de fundos de previdência complementar de funcionários de estatais e servidores públicos, ocorridas entre 2003 e 2015. Na mira da comissão está a administração de mais de R$ 452 bilhões geridos pelos fundos.

“O déficit acumulado pelos fundos de pensão dos Correios, Petrobras é Caixa Econômica Federal é um problema político, porque alguns investimentos feitos em empresas como a Sete Brasil, hoje investigada pela Operação Lava Jato, por exemplo, provocaram um grande rombo em suas contas. E o preço dessa aventura colocou em risco as economias de funcionários e beneficiários desses fundos”, disse Bueno

Atualmente, cerca de 7 milhões de pessoas - entre participantes, assistidos e dependentes - são beneficiadas pelos 317 fundos de pensão existentes no Brasil. Só no Postalis, fundo de pensão dos Correios, o rombo é de R$ 5,6 bilhões. Os fundos são constituídos com recursos dos servidores e também das empresas. Já acumulam patrimônio de R$ 710 bilhões, que têm sido alvo de denúncias de fraudes.

“Os fundos de pensão são indispensáveis para o desenvolvimento do país. É preciso governança e aplicação adequada dos recursos, mas o PT e aliados aparelharam várias instituições de previdência, o que é lamentável. Mas vamos construir um novo modelo jurídico para garantir a segurança dos recursos investidos pelos dos trabalhadores”, afirmou Bueno.

Luiz Sérgio Henriques - A esquerda e seu déficit

- O Estado de S. Paulo

Compreensível, do ponto de vista pessoal, que a presidente da República, em momentos de crise, recorde situações-limite como a da tortura nos anos de chumbo. Vistas as coisas assim, não importa ter havido, por parte de frações significativas da esquerda, a opção ultrarradical pela “virtude reguladora das armas” em seguida ao golpe de 1964. Uma vez postos sob a guarda do Estado, aqueles militantes – ou quaisquer outros, em qualquer circunstância –, ao serem torturados, passaram a encarnar a dignidade e a inteireza humana, deixando aos carrascos a infamante marca da desumanidade.

Num contexto de liberdades, porém, a recordação obsessiva da situação-limite perde vigor argumentativo e vira exemplo de “ideia fora do lugar”. Confundir a informação arrancada em circunstâncias escabrosas com métodos de desarticulação de sistemas criminosos de poder só é possível caso, ao mesmo tempo, se cancele o virtuoso percurso que permitiu a uma ex-presa política se tornar por duas vezes, pelo voto, a primeira mandatária de uma grande nação redemocratizada.

Mas pode haver método até mesmo em ideias desarranjadas, considerando, para constatar tal desarranjo, que hoje não há ninguém, fora grupos exóticos, que apele a exércitos imaginários para resolver dramas políticos. Não há lugar para bravatas e, tudo somado, os mecanismos racional-legais reúnem suficiente grau de consenso para agir segundo a própria lógica, investigando e punindo seja quem for. E as vivandeiras de quartel estão condenadas ao destino de quem não tem mais soldados para ofertar sua mercadoria nem conta com a guerra fria para ganhar um mínimo de credibilidade.

Mesmo assim, o método existe e pode ser que tenha contribuído para produzir, nas novas condições de liberdade, a reiteração de um déficit histórico de nossa esquerda.
Recapitulemos. No nascimento do PT esteve presente, sem dúvida, uma intensa movimentação da sociedade civil, com a arregimentação do sindicalismo lulista de resultados, dos remanescentes da extrema-esquerda derrotada e da difusa rede do catolicismo popular, com suas instâncias de solidarismo estranhas aos mecanismos de mercado.

Anunciava-se uma “revolução social”, um inédito protagonismo das massas capaz de refundar o País – e a refundação, nesta narrativa, se daria a partir da eleição do primeiro presidente de origem operária, não da Constituição de 1988. Em outras palavras, e contra todas as evidências, o “social” pretendia se desassociar do “político”.

Pouco antes, nos anos de chumbo, os diferentes grupos esquerdistas demoraram para perceber – e talvez só o tenham percebido pragmaticamente, sem a devida revisão teórica – que a chave para a derrota do regime consistia na aliança com o centro político, este último definido segundo o “discurso burguês”. Foram imensas as resistências a participar do jogo eleitoral, a assimilar os termos da anistia e a participar do colégio eleitoral que, há pouco mais de 30 anos, inaugurou a Nova República e sepultou as chances de reatualização civil da autocracia militar.

Aquele centro tinha, então, nome e cara: tratava-se do MDB e, depois, PMDB, à frente Ulysses e Tancredo, com o reforço do extenso grupo de senadores eleitos em 1974 e dos governadores da safra de 1982, como Montoro e o próprio Tancredo. Negar este centro, e dele se cindir ruidosamente, foi a base do crescimento do PT originário, mesmo quando essa negação implicava riscos não desprezíveis, como, por exemplo, no impeachment de Collor e na sustentação do governo Itamar, por sinal um dos quadros que ganharam projeção nacional nas históricas eleições de 1974.

Sempre houve algo de antipolítica nos lances que cercaram a ascensão do novo partido. Os tais “300 picaretas” do Congresso foram uma espécie de senha para a ação institucional do petismo.

Não por acaso, e independentemente do declínio “ideológico” do PMDB após a realização de seu programa básico – a redemocratização –, recusar a aliança com o partido de centro, em 2003, esteve na raiz das práticas de cooptação das pequenas legendas que redundariam, poucos anos mais adiante, na Ação Penal (AP) 470. E, ainda recentemente, na transição do primeiro para o conturbado segundo mandato da presidente Dilma, a malograda aventura da criação de novo partido governista, isolando o próprio vice da chapa vitoriosa, foi tramada em gabinetes vizinhos ao da presidente Dilma. “Picaretas”, evidentemente, compram-se e vendem-se, partidos fazem-se e desfazem-se a preço de fim de feira: eis os pressupostos do exercício pedestre de dominação dos demais partidos por parte do ator mais organizado.

Catar os cacos desse sistema de partidos, agora quase todo enredado no esquema petista desde os anos Lula, não será a última nem a mais fácil tarefa daqui por diante. Das oposições (ainda?) não se pode esperar muito: de fato, não têm sabido ir além da “política dos políticos”, para usar a expressão de Marco Aurélio Nogueira, e responder na sociedade ao desafio trazido por um partido como o PT.

Quanto ao PT, uma das linhas de fuga poderá ser o cultivo da nostalgia das origens e o retorno ao “movimentismo”, de acordo com experiências que, em outros países, diagnosticam uma “crise orgânica (revolucionária) do capitalismo”. Confirmada a hipótese de uma “frente de esquerda”, com Lula à frente dos movimentos sociais a brandir um anticapitalismo retórico, dificilmente se tratará de um giro expansivo capaz de convencer, com os recursos da democracia, atores e áreas além da esquerda. Ao contrário, estará se repetindo o estágio de menoridade que já impediu ou retardou a contribuição ao País de parte das forças populares, deixando de lado, para os fins de nossa argumentação, atos de heroísmo individual em situações extremas.

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*Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil site: www.gramsci.org

Ferreira Gullar - Um cala boca?

- Folha de S. Paulo / Ilustrada

• E se Vaccari optar também pela delação premiada? Suponho que Lula se fez essa mesma pergunta

Um fato que me chamou a atenção, a partir de certa etapa da Operação Lava Jato, foi o modo como a direção do PT reagiu às acusações feitas contra João Vaccari Neto, tesoureiro do partido.

Isso me chamou a atenção porque, anteriormente, no mensalão, figuras importantes do partido foram acusadas e presas sem terem merecido o mesmo tipo de apoio por parte da direção petista.

Claro, os dirigentes sempre negaram fundamento àquelas acusações, mas nada que se comparasse ao modo como têm defendido o responsável por suas finanças, Vaccari Neto.

Desde o primeiro momento, quando foi denunciado pela Lava Jato, a direção do PT saiu em sua defesa, prestando-lhe solidariedade e considerando descabida qualquer suspeita contra ele.

E como se não bastasse, o próprio Luiz Inácio Lula da Silva, que não costuma meter a mão em cumbuca (sobretudo quando se trata de gente do partido), saiu em defesa de João Vaccari Neto, alegando que se tratava de mais uma calúnia para desqualificar o Partido dos Trabalhadores.

Tais reações me deixaram surpreso, particularmente porque não se trata de alguém acima de qualquer suspeita. Basta lembrar o caso Bancoop (Cooperativa Habitacional dos Bancários de São Paulo), em que Vaccari esteve seriamente envolvido, sob suspeita de desfalque, tendo que responder perante a Justiça.

Apesar disso, no último congresso do PT, realizado em junho último, foi homenageado como figura insigne do partido, embora, até bem pouco tempo, quase ninguém ouvira falar dele.

Por tudo isso, perguntava-me: por que tanto empenho dos petistas em defender o encarregado de suas finanças?

As coisas se tornaram mais claras para mim depois que Ricardo Pessoa, proprietário da construtora UTC, envolvida nos escândalos da Petrobras, optou pela delação premiada e contou tudo o que sabe a respeito das propinas que foi obrigado a pagar ao PT para continuar a manter contratos de obras com a grande estatal do petróleo.

Em seu depoimento na Lava Jato, Ricardo Pessoa fala dos R$ 2,4 milhões que deu para a reeleição de Lula. É sabido que Vaccari Neto adotara o apelido de "Moch", em alusão à mochila preta na qual carregava o dinheiro, que era levado para o comitê de campanha.

Por essas razões, Vaccari se tornara um assíduo frequentador da sede da UTC, em São Paulo, onde se entenderia com Ricardo Pessoa acerca das propinas que recolheria para o PT.

Segundo ele, em cada uma dessas visitas, Vaccari levava a mochila cheia de notas de R$ 50 e R$ 100, que já estavam ali, no gabinete, à sua espera.

Mas Vaccari era esperto: nesses encontros evitava falar em dinheiro; escrevia a quantia num pedaço de papel e mostrava a Pessoa.

Terminada a visita, guardada a grana na mochila, picava o papel no qual havia escrito a quantia exigida, e distribuía o papel picado em diferentes lixeiras, para evitar que alguém as recolhesse. Mas todo esse cuidado deu em nada, porque Ricardo filmava tudo.

Ao contrário do que dizem Lula e sua turma, quem faz delação premiada não pode mentir. Se escolheu fazê-la foi para reduzir a pena a que seria condenado; se mentir, a pena, em vez de diminuir, aumenta.

É por isso que o delator não mente. Logo, Vaccari sabe que tudo o que disse Ricardo Pessoa é verdade e que, em consequência disso, pode ser condenado a muitos anos de prisão. E o pessoal do PT sabe igualmente disso e sabe das consequências que a confirmação de tais fatos significariam para o partido e para cada um de seus dirigentes individualmente.

A pergunta que fica é a seguinte: e se João Vaccari Neto, sabendo que fez o que fez, não estiver disposto a enfrentar tantos anos de cadeia?

Afinal de contas, fez tudo aquilo pelo partido e, se é assim, por que terá de pagar o pato sozinho, enquanto Lula, Dilma e Rui Falcão continuarão aí livres e felizes?

Enfim, e se Vaccari optar também pela delação premiada? Não tenho dúvida de que Lula e sua turma terão se feito essa mesma pergunta. Já imaginou se ele decide contar tudo o que sabe?

É bem possível que seja esse o motivo de tanta solidariedade dos petistas a João Vaccari Neto.

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Ferreira Gullar, ensaísta, crítico de arte e poeta.

Merval Pereira - A improvável repatriação

- O Globo

Em momentos políticos menos conturbados, a anistia para repatriação de dinheiro ilegalmente no exterior, onde se calcula que existam cerca de US$ 250 bilhões pertencentes a brasileiros sem o registro oficial na Receita Federal ou declaração ao Banco Central, acabou sendo descartada pelo governo.

Quando o ministro da Fazenda era Antonio Palocci, a CPI do Banestado, em 2003, onde as contas CC-5 criadas pelo Banco Central da gestão de Gustavo Franco foram demonizadas, criou um clima refratário ao tema.

Agora, que o ambiente político está deteriorado e, sobretudo, há indicações fortes de que contas no exterior ajudaram a tentar esconder as propinas do petrolão, é difícil imaginar que o governo tenha maioria para aprovar alguma coisa nesse sentido.

Em 2005, ficamos sabendo que o PT tinha contas no exterior, pois foi através de uma delas que o marqueteiro Duda Mendonça recebeu parte do seu pagamento.
Com tantos doleiros e laranjas sendo revelados na investigação do Lava-Jato, como imaginar que será possível legalizar esse dinheiro roubado da Petrobras em meio ao processo criminal?

É verdade que esse dinheiro está à procura de legalização, diante das dificuldades cada vez maiores para ser movimentado, devido à legislação internacional mais rígida, tanto para coibir a lavagem de dinheiro quanto o financiamento ao terrorismo internacional.

E, com as investigações da Polícia Federal atingindo potencialmente a todos no Brasil, inclusive com escutas telefônicas, não apenas a movimentação desse dinheiro tornou-se perigosa, mas até mesmo falar sobre ele.

Assim como parte desse dinheiro saiu durante a campanha eleitoral de 2002, com medo de uma vitória de Lula, é certo que nos últimos meses muito dinheiro, legal ou ilegalmente, saiu do Brasil diante do caos instalado no país. Essa é outra razão para que seja previsível um fracasso dessa legislação, mesmo que seja aprovada no Congresso, o que se mostra difícil a esta altura com a declarada oposição do presidente da Câmara Eduardo Cunha. Não há muitas razões para as pessoas considerarem o governo petista confiável.

Os defensores da abertura dos mercados financeiros alegam que quanto maior o controle cambial, maior a percepção da fragilidade da economia e maior a evasão de divisas.

O Banco Central já considerava em 2003 que tinha condições de controlar esse fluxo de capital e, segundo o governo, existem mecanismos de fiscalização suficientes para garantir que eventuais utilizações de instrumentos legais para enviar ao exterior dinheiro sujo sejam coibidas.

As revelações da Operação Lava-Jato, no entanto, surpreendem pela facilidade com que o dinheiro desviado passeia pelo mundo em offshores sem ser detectado pelas autoridades brasileiras.

É verdade que muito dinheiro sujo seria legalizado no rastro da aprovação da repatriação, mas os benefícios para o país seriam compensadores, argumentam as autoridades econômicas. Ainda mais agora que buscam fechar o buraco do ajuste fiscal provocado por medidas aprovadas pelo Congresso que gerarão mais gastos públicos.

O Brasil, em 1964, Itália e Alemanha, fizeram também esse movimento. No governo Castelo Branco foi decretada uma anistia geral durante quatro meses, através do artigo 82 da lei 4.506, que criou a correção monetária. Naquela ocasião, o ministro da Fazenda era Roberto Campos e o do Planejamento, Octávio Gouvêa de Bulhões, e a anistia dispensou a multa, mas cobrou Imposto de Renda do dinheiro que retornou.

A Itália fez o mesmo em 2001 na operação chamada escudo fiscal, que cobrou 2,5% de imposto de renda para o capital repatriado e lucros futuros. Entre 60 e 80 bilhões de euros entraram no país no período de um ano.

A grande preocupação das autoridades na gestão Palocci era com a validade das anistias, que poderiam ser contestadas na Justiça, dentro da própria Receita Federal, onde o sindicato dos auditores fiscais já se manifestara contrário à medida quando foi estudada em 2003, e pelo Ministério Público, que pode entrar com uma ação contra a decisão do governo.

Por tudo isso, o mais provável é que a legislação para a repatriação do dinheiro ilegalmente no exterior não será aprovada para ajudar o ajuste fiscal do governo. No mínimo Eduardo Cunha tem condições de travar a proposta com base em recursos regimentais, e sepultá-la em uma das muitas gavetas de sua mesa de presidente da Câmara.

Dora Kramer - Mistura de estações

- O Estado de S. Paulo

Essa história de que o ato oficial da passagem do presidente da Câmara para a oposição é uma “posição pessoal” do deputado Eduardo Cunha serve como versão para esfriar temperaturas, mas não é um fato. O fato político importante está retratado numa imagem registrada na antevéspera: os presidentes da Câmara e do Senado ao lado do vice-presidente da República comunicando à Nação que o PMDB terá candidato ao Planalto na próxima eleição presidencial.

Isso é uma coisa, outra diferente é a suspeita que pesa sobre o presidente da Câmara e o risco de que ele venha a ser denunciado pela Procuradoria-Geral da República por envolvimento no esquema de corrupção na Petrobrás. Trata-se, pois, de um caso de polícia.

Na maneira como formalizou seu rompimento com o governo, fez gestos imediatos de retaliação usando prerrogativas do cargo e apontou a existência de uma conspiração entre a PGR e o Planalto para prejudicá-lo, o deputado misturou as estações. Atropelou o roteiro do rompimento preparado pelo PMDB e tentou arrastar a Câmara e o partido para sua defesa. Neste aspecto pode colher mais distanciamento que solidariedade.

Nele reside, e se resume a ele, o significado da expressão “posição pessoal”. Não se estende ao sentimento oposicionista dentro do PMDB como se viu pela cena da cúpula anunciando seus planos para a próxima eleição.

Nada demais se a última não tivesse ocorrido há menos de um ano, quando o mesmo PMDB ajudou a reeleger Dilma Rousseff. A falta de cerimônia com que o partido debate a sucessão da presidente expõe o mais absoluto desdém – para não dizer desrespeito – em relação ao mandato em curso. O gesto equivale a dizer que para os pemedebistas o governo Dilma, na prática, já terminou.

Seria o mesmo que Marco Maciel saísse falando, nove meses depois da reeleição de Fernando Henrique Cardoso, que o PFL teria candidato a presidente em 2002. Ou que José Alencar anunciasse, a menos de sete meses do início do segundo mandato de Lula, a intenção de seu partido disputar o poder com o PT em 2010.

Sob qualquer ângulo que se olhe essa atitude não pode ser vista como coisa de quem está perfeitamente integrado à base aliada, conforme afirma a nota oficial de sexta-feira, redigida para dar a impressão de que Eduardo Cunha fala sozinho. O texto não esclarece evidentemente, mas a referência subliminar é ao caso de polícia, não à questão política. Quanto a esta, tanto não falou só que dois dias antes o presidente do PMDB anunciava que o partido vai disputar a Presidência.

E se vai disputar não será apenas contra adversários hoje na oposição, mas também contra o grupo político que detém o poder maior. Ou seja, está se colocando desde já na condição de oponente do governo. Isso tem nome: é oposição.

Eduardo Cunha só fez pronunciar a palavra em público e, assim, antecipou em dois meses o início do desembarque do PMDB já devidamente marcado para o congresso que o partido vai realizar em setembro próximo, onde será aprovada a candidatura própria para 2018. A partir daí começaria o ritual, cujo ápice _ a saída dos pemedebistas dos ministérios _ estava em princípio previsto para logo depois das eleições municipais.

Agora, no entanto, o cenário ficou mais imprevisível porque a ideia inicial seria romper sem brigar, de preferência devagar de modo a que da campanha eleitoral do ano que vem o partido ainda estivesse no comando dos ministérios que ocupa.

Que o PMDB é oposição não se discute. A dúvida é como o partido vai se equilibrar entre a sustentação ao presidente da Câmara e a necessidade de manter distância regulamentar de escândalos em nome do projeto de disputar a Presidência em 2018.

Bernardo Mello Franco - Guerra de um homem só

- Folha de S. Paulo

A declaração de guerra de Eduardo Cunha lançou uma pergunta que pode definir o futuro do governo. Afinal, o PMDB vai abandonar a presidente Dilma Rousseff?

É cedo para responder, mas os primeiros sinais não foram bons para o presidente da Câmara. Minutos depois de ele anunciar seu rompimento com o Planalto, o partido informou à praça que continua na base aliada.

Em nota redigida por Michel Temer, a sigla classificou o rompante do deputado como a mera "expressão de uma posição pessoal". Uma decisão coletiva, esclareceu o vice, só poderia ser tomada "após consulta às instâncias decisórias do partido".

Tido como aliado fiel de Cunha, o líder do PMDB na Câmara, Leonardo Picciani, também evitou endossar sua radicalização. Cauteloso, tratou a fala como "posição expressa de forma pessoal" e acrescentou que a bancada debaterá o tema em agosto, após o recesso parlamentar.

O presidente do Senado, Renan Calheiros, foi mais um a deixar o deputado falando sozinho. Desmarcou uma entrevista e deixou o Congresso por uma porta lateral, em silêncio.

O PMDB comanda nada menos que sete ministérios no governo: Minas e Energia, Agricultura, Turismo, Pesca, Portos, Aviação Civil e Assuntos Estratégicos. Além disso, controla centenas de cargos em estatais, autarquias e superintendências.

Para se juntar à cruzada contra o Planalto, os peemedebistas teriam que abrir mão de todas as verbas e benesses. Seria uma guinada brusca para a sigla, escorada há mais de duas décadas na máquina federal.

Alvejado pelo delator Julio Camargo, que o acusou de cobrar propina de US$ 5 milhões, Cunha também termina a semana abandonado pela oposição, que apoiou sua escalada como tática para desgastar o PT.

Perito na arte de retaliar adversários, o presidente da Câmara conserva os poderes do cargo e ainda pode mobilizar sua tropa contra o governo. Até aqui, no entanto, parece ter iniciado uma guerra de um homem só.

Luiz Carlos Azedo - O bode na Câmara

- Correio Braziliense

• O Palácio do Planalto ainda aposta numa narrativa na qual Dilma possa emergir como pecadora arrependida e perdoada. Mas, para isso, é preciso que alguém seja sacrificado

Na doutrina cristã, a expiação significa o perdão dos pecados àqueles que se arrependem deles e a reconciliação de Deus com o pecador. Mas, para isso, é preciso o sacrifício de alguém em substituição ao pecador arrependido.

A pena estabelecida por Deus ao pecador lá no jardim do Éden foi a morte (Gênesis 2:17). Para além da morte física, há também a separação total da presença de Deus.

No Antigo Testamento, os substitutos que davam a vida no lugar dos pecadores arrependidos eram os animais. Eles eram sacrificados em lugar do pecador. Dessa forma, Deus se satisfazia e os perdoava. Com Jesus, porém, tudo mudou. “Cordeiro de Deus”, Cristo pagou com a vida para expiar os pecados dos homens.

“Deus ofereceu Cristo como sacrifício para que, pela sua morte na cruz, se tornasse o meio de as pessoas receberem o perdão dos seus pecados, pela fé nele. Deus quis mostrar com isso que ele é justo.” (Rm 3:25 — NTLH).

Na antropologia, o rito de expiação é um dos arquétipos mais estudados. Jesus, um inocente, deu a sua vida para nos reconciliar com Deus, para que os nossos pecados fossem perdoados. Arquétipo é uma espécie de imagem apriorística incrustada profundamente no inconsciente coletivo da humanidade, projetando-se em diversos aspectos da vida humana, como sonhos e até mesmo narrativas.

Carl Jung, o pai da psicologia analítica, explica que, no inconsciente coletivo, “estamos tratando de tipos arcaicos — ou melhor — primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos”.

Pagar os pecados
No Brasil, as crises políticas agudas costumam ser catalizadas por arquétipos, como aconteceu com o suicídio do presidente Getúlio Vargas. Por força do nosso velho “sebastianismo” e do governo unipessoal — prefeitos, governadores e o presidente da República dão as cartas —, é impossível não “fulanizar” essas crises políticas, principalmente em meio a dificuldades econômicas e denúncias de corrupção.

É o que ocorre agora. A presidente Dilma Rousseff, do ponto de vista da opinião pública e dos políticos, é a grande vilã da crise econômica. É também um fio desencapado já conhecido da crise de governabilidade no Congresso, mas ainda não foi volatilizada pela crise ética. Por isso mesmo, o Palácio do Planalto ainda aposta numa narrativa na qual Dilma possa emergir como pecadora arrependida e perdoada.

Mas, para isso, é preciso que alguém seja sacrificado, não no sentido bíblico stricto sensu, o que exigiria uma espécie de Jesus Cristo (digamos que esse papel seja uma grande tentação para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva), mas no da expiação primitiva. É aí que o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), emerge como o arquétipo ideal para purgar os pecados da política.

Em rota de colisão com o Ministério Público Federal e o Judiciário, em oposição aberta ao Palácio do Planalto, Cunha começa a ser responsabilizado pelo fracasso do ajuste fiscal, por uma séria de derrotas impostas ao Palácio do Planalto, e emerge como um dos protagonistas da crise ética, dividindo a culpa com os petistas, em razão das denúncias que surgem contra ele nos depoimentos da Operação Lava-Jato.

O Congresso costuma purgar os seus pecados acionando a guilhotina das cassações. Por mais blindado que esteja na Mesa Diretora e no Conselho de Ética da Câmara, Eduardo Cunha corre sérios riscos de ver a carreira encerrada mais cedo do que imaginava na sua rota de colisão com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e o Judiciário, principalmente se o Supremo Tribunal Federal (STF) tomar as dores do juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba.

O recado foi dado pelo ministro do STF Marco Aurélio: “O anúncio de Cunha de que se tornou oposição ao governo me surpreende, porque não sabia que ele fazia parte da base aliada. Também me causa estranheza o que ele diz sobre o procurador Rodrigo Janot, que não é um pau-mandado. Nem ele, nem o STF. O mandato dele é exercido com independência de todos os Poderes, bem como o nosso. Acredito que esse tipo de reação seja por uma visão individualista e apaixonada do que é o cargo que ele ocupa. Homens públicos como o presidente da Câmara deveriam usar o cargo para servir, e não para se servirem”.

Para o Palácio do Planalto, a narrativa ideal para evitar um processo de impeachment, que somente pode ser iniciado pelo presidente da Câmara, não é a tese do golpismo, é demonizar o presidente da Câmara. Na sua escalada de confronto, Cunha pode ser afastado do cargo pelo STF. Já é o bode expiatório da crise de governabilidade. É tudo de que a presidente Dilma, grande inepta na relação com os políticos, precisa.

Eliane Cantanhêde - ‘Aventuras antidemocráticas’

- O Estado de S. Paulo

Nenhuma expressão poderia resumir com tanta propriedade a guerra entre a presidente Dilma Rousseff e o presidente da Câmara, Eduardo Cunha: é um típico, claro, evidente e perigoso abraço de afogados. O mar não está para peixe, nem para Dilma, nem para Cunha, e o resultado não é uma crise entre pessoas, mas uma crise institucional.

Dilma está com água batendo no pescoço: além dos ameaçadores julgamentos do TSE e do TCU, ela enfrenta popularidade abaixo de 10%, rejeição perto dos 70%, a economia esfarelando, 345 mil vagas fechadas no semestre, falta de liderança política, erros crassos de administração e a indecisão até do próprio partido dela, o PT.

Quanto a Cunha: ele é exímio nadador em águas profundas e turvas, mas afunda sob o peso das investigações do Ministério Público, da Justiça e a Polícia Federal e não consegue emergir das revelações de um lobista, Júlio Camargo, e de um doleiro, Alberto Youssef, de que pedia propina de milhões de dólares por contratos na Petrobrás, pobre Petrobrás.

O que Dilma Rousseff e Eduardo Cunha têm a ganhar com uma guerra desse tamanho? Nada. A situação da presidente da República não vai melhorar um milímetro, mas pode piorar quilômetros. E a reação do presidente da Câmara demonstra evidente desespero. Sempre tão frio, tão calculista, ele agora se debate aflitivamente sem vislumbrar terra firme.

Dilma vê escapulir pelas mãos não apenas o apoio do presidente da Câmara, mas a aliança com o fundamental PMDB. Por todas as manifestações da cúpula pemedebista, o rompimento é uma possibilidade real. No mínimo, vai custar muito caro para o Planalto manter o PMDB na base aliada. Como aprovar o que quer que seja no Congresso sem o PMDB? Como finalizar o que resta de ajuste fiscal já tão capenga? Como sobreviver às CPIs da Petrobrás, do BNDES e dos Fundos de Pensão?

E Cunha, com Dilma ou sem Dilma, corre vários riscos: o de acordar antes das 6 horas da manhã com uns sujeitos parrudos e de colete preto com as letras P e F fazendo busca e apreensão na sua casa com autorização do Supremo Tribunal Federal; o de seguir o mesmo caminho do ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto e de tantos outros e ir parar em alguma carceragem por aí; e o de perder a presidência da Câmara. Como bem lembrou o deputado governista Sílvio Costa (PSC-PE), Severino Cavalcanti caiu por muito menos – milhões de zeros a menos.

A única coisa que faltava na crise entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo era o Poder Judiciário meter a colher. Não falta mais. No dia do rompimento, o presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, veio a público pedir equilíbrio e moderação. O tom foi correto, mas o gesto, em si, só confere mais gravidade e dramaticidade ao momento político. (Sem falar que Lewandowski comprou a versão do governo de que a crise econômica é resultado da crise internacional de... 2008!)

E assim chegamos às duas semanas de recesso parlamentar, com o presidente da Câmara dos Deputados rompendo estrepitosamente com um governo de quem nunca foi aliado, o presidente do Senado Federal se fazendo de sonso, mas apoiando novas CPIs contra o governo, o presidente do Supremo Tribunal dizendo que é preciso muita calma nessa hora e a presidente da República rechaçando “aventuras antidemocráticas” em reunião do Mercosul abrilhantada por Nicolás Maduro. Ah! E com Lula investigado por tráfico de influência internacional.

Seria cômico, não fosse trágico, porque, enquanto o mundo político discute se Eduardo Cunha voltará mais forte ou mais fraco do recesso e se o rompimento vai favorecer ou dificultar o impeachment de Dilma, os brasileiros seguem perplexos e perdendo emprego, renda e crédito. O abraço de afogados de Dilma e Cunha arrasta junto os Poderes, as chances de o Brasil sair da crise e o fiapo de credibilidade que resta ao País. Quem paga o pato? Os de sempre. Poucas aventuras poderiam ser tão antidemocráticas.

Elio Gaspari - A vez dos oligarcas

- O Globo

Merval Pereira disse tudo quando deu o título de “A vez dos oligarcas” à coluna em que tratou da diligência da Polícia Federal nas casas e escritórios de políticos envolvidos na Lava-Jato. Da Casa da Dinda do senador Fernando Collor saíram uma Lamborghini, uma Ferrari e um Porsche. A frota do ex-presidente deve à Viúva R$ 343 mil de IPVA, e o sócio do posto de gasolina de Maceió em cujo nome está o Porsche nunca ouviu falar dele. Os brinquedos do senador sexagenário deram cores cinematográficas à operação policial, mas no centro do problema estão as informações dadas pelo empreiteiro Ricardo Pessoa e pelo operador Alberto Youssef à Lava-Jato. Eles teriam pagado R$ 29 milhões a Collor em troca de favores na Petrobras.

O senador foi à tribuna e acusou a Polícia Federal de ter sido truculenta, extrapolando “todos os limites” da legalidade (as diligências foram autorizadas por três ministros do Supremo Tribunal Federal).

Chegando a vez dos oligarcas, começava o espetáculo da reação da oligarquia. Collor é um ex-presidente da República, filho de senador, neto de ministro. Na mesma diligência, a PF foi à casa do senador Fernando Bezerra Coelho, no Recife. Polícia na casa de um Coelho foi coisa nunca vista. FBC foi ministro da doutora Dilma, é pai de deputado, sobrinho de ex-governador, neto do coronel Quelê, condestável de Petrolina, onde o sobrenome da família honra o aeroporto, o estádio, um parque, um bairro e uma orquestra.

Noves fora a reação de Collor, o presidente do Senado, Renan Calheiros, ex-vice-presidente da Petroquisa, ministro da Justiça de FHC e pai de Renan Filho, atual governador de Alagoas, disse que a ação da Polícia Federal “beira a intimidação”. Renan é investigado pelo Supremo. Além disso, rola no tribunal um processo em que é acusado de pagar mesada à mãe de uma filha extraconjugal com dinheiro da empreiteira Mendes Junior.

Coube ao vice-presidente Michel Temer o brilho do rubi da coroa da rainha da Inglaterra. Ele disse que “temos que buscar no país uma certa tranquilidade institucional porque essas coisas estão, digamos assim, abalando um pouco a natural tranquilidade que sempre permeou a atividade do povo brasileiro”. A pedra da coroa da rainha não é rubi, mas um espinélio, e a frase de Temer, digamos assim, não quer dizer nada. Que “coisas”? A Lava-Jato, a diligência autorizada pelos ministros do Supremo, ou as petrorroubalheiras? Soltou o enigma e viajou com a família para Nova York.

Renan Calheiros disse também que a democracia está em jogo. Falso. Ela vai bem, obrigado. O que está em jogo é a definição do alcance das leis.

O esperneio oligárquico, bem como as ameaças de Eduardo Cunha, revelam a tática de fim do mundo. Articulam o fim dos tempos, interessados em criar uma crise institucional cujo propósito exclusivo é abafar a Lava-Jato. Lastimavelmente, a doutora Dilma não conseguiu se tornar um fator de estímulo aos procuradores e magistrados. Ficou neutra contra. Podendo ser parte da solução, pedala como parte do problema.

O golpe do parlamentarismo
A repórter Raquel Ulhoa avisou: arma-se no Congresso um golpe para mutilar a Presidência da República estabelecendo um regime parlamentarista. Numa ponta dessa conversa, para logo, já se viu o senador Renan Calheiros. Noutra, defendendo a ideia para mais adiante, entrou o deputado Eduardo Cunha. Pairando sobre ambos há uma parte do tucanato, desencantada com as bandeiras do impedimento, das contas do TCU e dos processos do Tribunal Superior Eleitoral.

A manobra depende da existência de um clima de inquietação, com a economia em queda e o desemprego em alta. Disso, a doutora vem cuidando. Para piorar, o Congresso aprova maluquices que agravam as dificuldades. O caldo entornará com as manifestações de agosto (desprezando-se a possibilidade de surgimento de manifestantes contra golpes, ladroagens e truques dos suspeitos de sempre).

O parlamentarismo pode ser instituído com a aprovação por maioria de três quintos das duas Casas do Congresso, em duas votações. São necessários 51 dos 81 senadores e 308 dos 513 deputados. Isso só se consegue com uma crise do tamanho da de 1961, quando o país esteve à beira da guerra civil, e aprovou-se uma emenda parlamentarista, mutilando o mandato de João Goulart.

É muito comum ouvir-se falar em “golpe paraguaio” ou “golpe boliviano”. A manobra criaria o “golpe brasileiro”, superando de longe os dois outros. O parlamentarismo foi rejeitado pela população em dois plebiscitos, sempre por larga maioria. O primeiro deu-se em 1963, e o segundo, em 1993. Nele, o regime parlamentar teve 16,5 milhões de votos, contra 37,2 milhões dados ao presidencialismo. O restabelecimento da monarquia teve 6,8 milhões.

De acordo com o processo legislativo e a Constituição, seria mais fácil revogar a Lei Áurea, sancionada a partir de um simples projeto de lei votado pelos deputados e senadores. Ela nunca foi submetida a um referendo, quanto mais a dois. A velha e boa plutocracia nacional deve reconhecer que essa mágica é impossível, mas ela haveria de lhe fazer o gosto.

A ruína do Inca
As convicções partidárias do ministro Arthur Chioro conseguiram o que a ditadura nem tentou: degradar o Instituto Nacional do Câncer, no Rio de Janeiro.

Os generais mantiveram na direção do serviço Moacir Santos Silva, o médico de Jango. Com Chioro, um sindicato de servidores públicos federais na Saúde ganhou uma sala no Inca, enquanto cinco das 11 salas de cirurgia estão fechadas por falta de anestesistas.

A média de espera para uma cirurgia, que já foi de 20 dias, está em dois meses, tempo suficiente para tornar inútil o procedimento.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota, rompeu com o governo da doutora Dilma e passou a acreditar em tudo o que dizem contra ela.

O cretino só não conseguiu resolver um problema. Ela, como ele, defende a normalidade constitucional e o respeito ao mandato saído das urnas no ano passado.

Eremildo é um idiota, capaz de trocar seis por meia dúzia, mas nunca trocou seis por quatro.

Má notícia
O ministro Joaquim Levy ainda não fez nada errado, mas, pelas artes da política, ficou menor do que estava quando assumiu o cargo.

Está mais para Mário Henrique Simonsen, que demorou para mostrar que era capaz de pedir o boné, do que para Pedro Malan, que encolhia os bonés dos outros.

Estou fora
No dia do fatídico jantar da doutora com José Eduardo Cardozo e o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, na cidade do Porto, Teori Zavascki estava no mesmo hotel, pois compareceria ao mesmo evento que juntaria o colega e o ministro da Justiça
Se tivesse sido convidado, não iria. Se o convidaram, não foi.

Fernando Gabeira - As meninas entram em cena

- O Globo / Segundo Caderno

• Elas apelam não só para um sentido universal, o sexo, mas também para o fugaz reencontro com o doce pássaro da juventude

Você poderia chamá-las de petroputas ou prostipetro, mas não seria preciso. As meninas aparecem em quase todo grande escândalo em Brasília. Não são especializadas. Finalmente, deram as caras no escândalo do Petrolão. Documentos da PF indicam que houve gastos com garotas de programa, mencionadas em rubricas como Jô 132 e 3 Monik nas planilhas de Alberto Youssef, um dos grandes nomes do caso.

Lembro-me de que uma das grandes cafetinas de Brasília uma vez me perguntou no aeroporto o que pensava das garotas de programa nesses escândalos. Disse que não as incriminava. Os políticos e empresários gostam de Rolex, compram sapatos Labutin para suas mulheres. Não se podem culpar as marcas, muito menos os vendedores que não costumam perguntar sobre a origem do dinheiro.

Mas a presença das meninas dá um tom global ao escândalo. O ex-dirigente do FMI Dominique Strauss-Kahn foi preso em Nova York por assédio. Mas na França, onde a prostituição é criminalizada, teve de responder a processo. O mesmo se passa com Silvio Berlusconi, com suas famosas bunga-bungas. Também foi processado.

Num contexto de prostituição legalizada, as coisas seriam mais fáceis. Aos documentos da Lava-Jato seriam incorporados recibos de prestação de serviços. Papai e mamãe, blow jobs e o caríssimo beijo na boca seriam especificados.

A Lava-Jato já tem inúmeros componentes cinematográficos. Mas a entrada das meninas nas festas dos poderosos assaltantes da Petrobras era uma espécie de elo que faltava. Gurus, políticos e empresários costumam revelar nesses episódios o desejo de uma satisfação sexual ilimitada. É uma espécie de calcanhar de Aquiles.

Leio que as garotas de programa já apareceram em revistas e talvez por isso cobrem mais caro. São contratadas como os ricos compram quadros, não pelas formas, mas pela fama do pintor.

Outro dia, um grupo de São Paulo me convidou para contribuir com o roteiro de um filme sobre Brasília. Respondi com uma ideia tão maluca que nunca mais voltaram ao assunto.
Era uma nave de outra galáxia que se aproximava de Brasília com a missão de ocupar alguns prédios habitados por duas tribos de cabelos pintados: os Acaju e os Graúna. Na medida em que eles se aproximavam, acompanhavam pela tela da nave o comportamento da sociedade que ainda não conheciam em detalhes.

Agora vejo que caberia nesse argumento cinematográfico uma garota de programa infiltrada que mandaria mensagens constantes para o big data; crescimento dos implantes de pênis, baixa da tesão nos dias em que o Banco Central anuncia a taxa de juros.

Sempre me interessei pela economia libidinal de Brasília. No passado, escrevi sobre as prostitutas que faziam um cordão em torno do setor de hotéis. Cheguei a propor uma cartilha para os prefeitos do interior distinguirem uma travesti de uma garota de programa.

Um equívoco. Creio hoje que para todos é melhor uma dose de ambiguidade. Uma travesti que conheço, talentosa técnica administrativa, me contou que ao descobrirem o que se trata, alguns políticos fingem que não viram.

Talvez no futuro vejamos um livro do tipo “Memórias de uma cafetina em Brasília”. Espero também que não tenha nomes. Apenas elementos que nos ajudem a descortinar o universo libidinal do poder. Se não servir para a história, no sentido mais amplo, servirá para os roteiristas que buscam histórias de gente de carne e osso.

As meninas custaram a aparecer no Petrolão. Parecia um escândalo baseado em fortunas, compra de apartamentos, obras de arte. Elas apelam não só para um sentido universal, o sexo, mas também para o fugaz reencontro com o doce pássaro da juventude.

Com a entrada da Polícia Federal na casa de Fernando Collor, constatei que, além de seu carro oficial, ele tem três carros de luxo na garagem que devem valer juntos R$ 6 milhões. São apenas três de sua coleção de 14.

Qual o sentido disso, exceto garantir a Collor que ele tem carros de luxo na garagem, que é o bambambã?

Com a grana da corrupção, compram um sopro de juventude, transando com as meninas: com a coleção carros compra-se uma infância de brinquedos de luxo.

A nave se aproxima horrorizada.

José de Souza Martins - O lucro e a fé

- O Estado de S. Paulo / Aliás 

• Não é de hoje que o efeito desagregador do capitalismo bate de frente com a Igreja Católica

Na foto, o sorriso sem graça de Evo Morales é decifrado pela expressão de desapontamento do papa Francisco no ato cerimonial de entrega do presente que o governo boliviano fez ao representante do Estado do Vaticano. É a escultura de um Cristo crucificado sobre a foice e o martelo, símbolo do comunismo. Foi um presente de mau gosto. Outros governos, em diferentes países, têm cometido descuidos parecidos. O Museu da Presidência da República, em Lisboa, expõe presentes dados aos governantes portugueses. Um grotesco e antiecológico casco de tartaruga, sobre a qual um primitivista pintou uma paisagem, foi presente de Juscelino Kubitschek ao presidente Craveiro Lopes de Portugal. Está lá, no meio de objetos de prata e de obras de arte. O regalo se destaca pela impropriedade. É verdade que anos depois o presidente Ernesto Geisel nos redimiu oferecendo a outro presidente português uma bela escultura de Bruno Giorgi.

No caso de um presente a uma pessoa como o papa, é sempre complicado lidar com objetos simbolicamente controvertidos como dádiva a quem é altamente simbólico, pela posição que ocupa e por aquilo que personifica. Francisco ao ver o objeto comentou: “Isso não está certo”.

Trata-se da réplica de uma escultura simples feita pelo jesuíta Luís Espinal, assassinado na Bolívia, em 1980, durante a ditadura militar. O original pertence a outro jesuíta, que estava no mesmo quarto em que o assassinato se deu. Um conjunto de interpretações tentou consertar a antiplomacia do gesto de Evo Morales, ele próprio dizendo ter julgado que o presente agradaria o papa dos pobres, tendo em conta que ele, a caminho de La Paz, parara no local do assassinato para rezar. Mas papa dos pobres não quer dizer papa da foice e do martelo. Não é preciso ser comunista para se interessar pelos pobres, os que Marx definia como lúmpen-proletários, os sem lugar ativo no processo histórico, o oposto do proletariado do apreço marxista.

O incidente aponta para um conjunto de símbolos trocados e de personagens interpretando o objeto e o ato a partir de sistemas simbólicos opostos. Desde os anos 1960, a aproximação entre grupos da Igreja Católica e facções dos partidos comunistas tem sido demarcada pela tentativa de produzir um quadro de referência comum que permita o diálogo e a convivência entre materialistas e crentes, além da ação política conjunta. Tem sido um esforço para superar o veto católico ao comunismo e seus desdobramentos no âmbito da religião e da fé.

Quando da morte de Che Guevara na guerrilha da Bolívia, uma fotografia do cadáver percorreu o mundo como ícone de um Cristo latinoamericano imolado pelo poder do imperialismo explorador, inimigo dos humilhados e ofendidos da terra. Mais adiante, começaram peregrinações de católicos de esquerda ao lugar dessa morte. Mas não se fala que nas anotações do diário do Che, feitas poucas horas antes de sua captura e assassinato, ele se dera conta do equívoco de não ter se aproximado dos camponeses, cuja causa supostamente defendia. Era tarde demais. Che estava só.

Desde então, esforços foram feitos, tanto por setores da Igreja, quanto por diferentes grupos de esquerda para uma aproximação recíproca, o que não suprime equívocos frequentes de ambos os lados. Agora mesmo, na visita do papa a Equador, Bolívia e Paraguai, um militante brasileiro chegou a declarar que “eles” têm Obama e “nós” temos Francisco. O primeiro representando o capitalismo iníquo e opressor e o segundo representando o anticapitalismo libertador.

A crítica católica ao capitalismo vem de longe. João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI a fizeram em nome de uma matriz conservadora, centrada na pessoa contra o mundo que gerou a figura segmentária, alienada e solitária do indivíduo, mais jurídica do que vivencial. Bento XVI, que cita Marx e nem por isso é marxista, retomou, num de seus documentos, o texto de Karl Marx que mais atrai e sensibiliza os cristãos que é o capítulo sobre alienação nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, do mesmo modo que recorreu a Freud para falar sobre a libido no documento sobre o amor. O efeito, socialmente desagregador e desmoralizador, do primado do lucro no mundo contemporâneo não pode deixar de encontrar pela frente a resistência da Igreja Católica. A decomposição da pessoa e das instituições que dela derivam corrói as bases sociais da fé e anula a própria religião, diluída na errância de uma religiosidade de resultados, em que cada um inventa a sua.

Os discursos do papa sobre as iniquidades do mundo subjugado pelo capitalismo não pode ser interpretado como uma adesão ao chamado bolivarianismo, o que quer que isso signifique, e aos socialismos tópicos e superficiais de uma América Latina de incertezas e misérias. Tão escabrosas que nem mesmo os presos de uma prisão boliviana visitados pelo papa, injustiçados pela vida e injustiçados pela Justiça, estão minimamente assistidos pelo mesmo governo do Cristo crucificado na foice e no martelo.

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José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da faculdade de filosofia da USP. Entre outros livros, autor de A política do Brasil lúmpen e místico (Contexto).