domingo, 24 de maio de 2015

Opinião do dia – Fernando Henrique Cardoso

Não está claro se vamos pegar um caminho certo. Estou sentindo a falta de liderança, a falta de determinação e tem que fazer alguma convergência. Quando falo disso, sou criticado porque estou querendo aderir ao governo da Dilma. Estou falando de convergência nacional. Pode ficar cada um no seu canto.

----------------------
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo. Ex-presidente da República. Brasília, 23 de maio de 2015.

Governo tem plano B para fracasso de MPs

• Equipe econômica estuda elevar imposto caso medidas do ajuste não sejam votadas no Congresso até 1º junho, prazo final de validade

João Villaverde , Tânia Monteiro - O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - O assunto é negado no Palácio do Planalto e na equipe econômica, mas o governo Dilma Rousseff já começa a preparar um ingrato plano B caso as Medidas Provisórias (MPs) 664 e 665, que fazem parte do ajuste fiscal, não sejam aprovadas nesta semana pelo Senado Federal. Faltam 8 dias para essas MPs perderem a validade.

Com as medidas provisórias, o governo espera poupar quase R$ 14 bilhões em gastos públicos com programas como seguro-desemprego e pensões por morte neste ano. Sem elas, o governo terá que buscar alternativas para encontrar os mesmos R$ 14 bilhões e se aproximar da meta fiscal.

O plano B ainda não foi tratado em nenhuma reunião de negociação política envolvendo o vice-presidente Michel Temer e líderes no Congresso Nacional. O objetivo é justamente, segundo um auxiliar presidencial, não passar a impressão de que o governo deixou de contar com a aprovação das MPs no Senado.

O governo está fazendo "todo o possível", cedendo aos apelos dos parlamentares, mas quer se preparar para o que considera o pior cenário.

O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, prepara mais elevações de impostos. A pasta estuda aumentar outras modalidades do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), além do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), o PIS/Cofins (que incide sobre o faturamento das empresas) e, como revelou a coluna "Direto da Fonte" de Sônia Racy, a extinção do benefício fiscal Juros sobre Capital Próprio (JCP), criado em 1995 para reduzir a carga de tributos sobre empresas e bancos de capital aberto. O governo estima perder R$ 14 bilhões por ano com a JCP e sua extinção ajudaria as contas públicas.

A lógica de Levy é que um corte maior de gastos serviria para complementar as perdas com atenuações nas restrições aos programas trabalhistas e previdenciários previstas nas medidas provisórias. Levy também entende que uma retenção maior dos gastos seria uma alternativa melhor ao aumento de impostos, que retiram recursos do setor produtivo privado.

A frustração das medidas provisórias no Congresso vai provocar aumentos de gastos neste ano e o governo deixou isso claro na programação orçamentária anunciada na sexta-feira.

O governo reduziu em R$ 5 bilhões a previsão de gastos com os programas seguro-desemprego e abono salarial. Essa redução está baseada na aprovação da MP 665 pelo Senado Federal. Se os senadores não seguirem a torcida do Planalto, a MP perderá validade e, como os programas constituem gastos obrigatórios, a volta das regras antigas forçará uma indesejada "judicialização" nos Tribunais Regionais de Trabalho, além do aumento de gastos decorrente do retorno automático para as regras mais "benevolentes".

No governo, a visão é a de que as MPs têm um "peso simbólico" para o ajuste fiscal por representarem a menor parte. Mas o peso simbólico delas se explica pelo fato de o governo mexer com sua própria base social e política, ao restringir benefícios trabalhistas e previdenciários.

Para Levy, governo está cedendo à pressão contra ajuste fiscal

• Ausência do ministro no anúncio do corte foi para mostrar insatisfação

- O Globo

Foi por protesto que o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, não compareceu ao anúncio do corte do Orçamento. Ele se queixa de que o governo cede a pressões no ajuste fiscal. Ontem, FH e a Fiesp fizeram críticas aos cortes. O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, decidiu não participar do anúncio do corte de R$ 69,9 bilhões no Orçamento porque está muito irritado com a forma pela qual o Palácio do Planalto está conduzindo as negociações com o Congresso nas votações do ajuste fiscal. Ele tem se queixado que o governo está cedendo à pressão dos partidos e flexibilizando as medidas, reduzindo significativamente os ganhos para o cumprimento da meta de superávit primário (economia para pagamento dos juros da dívida), de 1,13% do Produto Interno Bruto (PIB), neste ano.

 O adiamento da votação do projeto de lei que eleva as alíquotas da contribuição patronal para o INSS (de 1% para 2,5% e de 2% para 4,5%) sobre o faturamento das empresas, revertendo a desoneração da folha de salários, foi a gota d"água. Com a medida, o governo pretendia economizar R$ 5,35 bilhões este ano.

Os parlamentares querem deixar alguns setores de fora e instituir a majoração do percentual de forma escalonada, a partir de dezembro — o que desagrada profundamente o ministro, segundo interlocutores. O governo também cedeu nas outras duas medidas do ajuste fiscal, a Medida Provisória 664, que altera as regras da pensão por morte; e a MP 665, que restringe o acesso ao seguro-desemprego e ao abono salarial (PIS).

O objetivo do governo era economizar R$ 18 bilhões com as duas MPs ainda este ano. Mas, conforme informou anteontem o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, o ganho cairá para pouco mais de R$ 5 bilhões. Devido às derrotas do governo no Congresso, Levy passou a defender um corte maior no Orçamento, próximo aos R$ 80 bilhões, mas foi voto vencido. Ele desistiu de participar do anúncio, em cima do horário marcado para a entrevista e, segundo fontes, simplesmente comunicou a Barbosa que não compareceria. Enviou como representante o secretário do Tesouro Nacional, Marcelo Saintive, que permaneceu calado o tempo todo.

Fontes do governo tentaram divulgar ontem versão de que Levy fora aconselhado pela presidente Dilma Rousseff a não participar do anúncio para não ficar desgastado

A falta do ministro também foi atribuída a uma gripe, mas isso não seria motivo suficiente, já que continuou trabalhando no Ministério da Fazenda. Levy achou por bem não ir para dar um recado sobre a sua insatisfação, disse uma fonte. Ele também pretende não entrar nas pautas do Planejamento, como fazia seu antecessor, o ministro Guido Mantega.

Governo prevê um rombo 28% maior na Previdência

Deficit do INSS deve atingir o maior patamar em 6 anos

• Piora do rombo explica dificuldades enfrentadas por Joaquim Levy para reequilibrar o caixa do governo

• Medidas provisórias destinadas a melhorar contas da Previdência sofrem resistências por parte do Congresso

Gustavo Patu – Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - Com a deterioração do mercado de trabalho e sucessivas derrotas do pacote de ajuste fiscal no Congresso, o governo passou a projetar um salto do deficit da Previdência Social neste ano.

De R$ 43,6 bilhões calculados na versão original do Orçamento, feita no ano passado, o rombo esperado nas contas do INSS foi elevado em 67%, para R$ 72,8 bilhões com as novas estimativas de receitas e despesas divulgadas nesta sexta (22).

Trata-se de um aumento de 28,4%, bem superior à inflação, em relação aos R$ 56,7 bilhões do ano passado. Como percentual do PIB, o deficit sobe de 1% para 1,2%, maior patamar em seis anos.

A piora das contas previdenciárias explica boa parte das dificuldades enfrentadas pela equipe de Joaquim Levy (Fazenda) na tentativa de reequilibrar o caixa do governo.

Para reforçar a arrecadação do INSS em R$ 5,4 bilhões neste ano, foi proposta em fevereiro uma revisão drástica da política de desoneração tributária das folhas de pagamento das empresas, uma das marcas do primeiro governo Dilma Rousseff.

O projeto, no entanto, sofre resistências dos próprios partidos que dão sustentação ao Palácio do Planalto no Congresso. Depois de atrasos e modificações, a expectativa de ganhos até dezembro se tornou remota.

O mesmo aconteceu com a medida provisória destinada a endurecer as regras para a concessão de pensão por morte e auxílio-doença, desfigurada com a ajuda decisiva do PT e do PMDB.

Com desemprego em alta e renda em queda, as perspectivas de arrecadação da contribuição previdenciária --em sua maior parte, incidente sobre as folhas de salários-- ficaram mais sombrias.

A receita esperada no ano com o tributo foi reduzida em R$ 28 bilhões, um montante semelhante aos gastos projetados com o Bolsa Família.

Uma das principais explicações é a projeção de queda de 2,9% da massa salarial (soma de todos os salários recebidos), descontada a inflação.

Pelos cálculos oficiais, o INSS arrecadará o equivalente a 6,25% do PIB. Não se pode acusar a previsão de pessimista: em 2014, com o emprego em alta, foram 6,1%, recorde histórico.

No primeiro trimestre, as receitas cresceram menos que as despesas, e o deficit da Previdência subiu de R$ 11,7 bilhões, em 2014, para R$ 18 bilhões, neste ano.

PT tenta conter deserções de prefeitos em SP

• Preocupados com rejeição da sigla, petistas de cidades do interior negociam migração para base aliada de Alckmin

• Maior aliado do PSDB em terras paulistas, PSB negocia a filiação de pelo menos nove prefeitos e ex-prefeitos

Gustavo Uribe, Bela Megale – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - No momento em que o partido enfrenta uma das maiores crises de sua história, prefeitos e vereadores do PT em cidades do interior paulista ensaiam migrar para a base aliada do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), para a disputa municipal do ano que vem.

O principal motivo da migração é o aumento da rejeição ao PT entre os eleitores paulistas. A preocupação de prefeitos e vereadores é que o fraco desempenho da sigla nas eleições estaduais do ano passado se repita em 2016.

Em 2014, o PT teve sua pior performance na disputa pelo governo estadual desde 1994, e sua bancada na Assembleia Legislativa de São Paulo caiu de 24 para 14 deputados.

As principais cidades com ameaças de defecções são Araçatuba, Bragança Paulista, Hortolândia, Itupeva e Jaú, todas administradas pelo PT. Nos cinco municípios, políticos do partido negociam com o PSB, comandando em São Paulo pelo vice-governador Márcio França.

"Eu estou na fase de discussões, mas não há nada concreto. Há conversas, não vou negar", reconheceu o prefeito de Itupeva, Ricardo Bocalon (PT), segundo o qual é "preocupante" a atual rejeição ao PT. "Não dá para falar que não é, principalmente em São Paulo", considerou.

Contra-ataque
Para evitar uma debandada, a direção da sigla iniciou esforço para conter desertores. Nas últimas semanas, dirigentes do PT têm feito viagens para cidades do interior na tentativa de aproximar prefeitos e vereadores do partido e convencê-los da importância de tê-los na sigla em 2016.

Segundo relatos de petistas, a movimentação tem aval do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que não escondeu sua preocupação com o enfraquecimento da legenda em São Paulo para a disputa eleitoral do ano que vem.

O cenário pessimista avaliado pelo partido é o de que, caso as defecções se confirmem, o PT pode sair da disputa municipal de 2016 com uma redução de até 30% no número total de prefeituras que comanda no Estado. A sigla administra atualmente 68 municípios de São Paulo.

À espera da senadora Marta Suplicy, que deixou o PT, o PSB paulista tem negociado a migração para a legenda de pelo menos nove prefeitos e ex-prefeitos petistas do interior do Estado para lançá-los na disputa eleitoral de 2016.

O partido pretende filiá-los no final de junho, no mesmo evento de anúncio oficial da entrada da senadora na legenda e depois da formalização da união do PSB com o PPS.

Pela legislação válida, a fusão é uma das prerrogativas para que deputados e vereadores mudem de sigla sem perder o cargo parlamentar.

Um PT em crise existencial debate seu futuro

• Documentos que serão levados ao congresso do partido apontam encruzilhada e reconhecem erros da direção

Sérgio Roxo – O Globo

Com dúvidas sobre seu futuro, arrependido de atitudes do passado e certo de que está sendo traído no presente. De acordo com as teses apresentadas pelas correntes internas do PT para seu 5 º Congresso, previsto para ocorrer no mês que vem, o partido vive uma crise existencial.

Os documentos são unânimes no diagnóstico de que a legenda se encontra numa encruzilhada e que passa pela maior crise de sua história. A chapa majoritária Partido que Muda o Brasil ( PMB), do expresidente Luiz Inácio Lula da Silva, chega a alertar: "os partidos não são eternos".

No encontro, 800 delegados, divididos de acordo com a votação de cada chapa na eleição interna de 2013, vão definir um documento com resoluções, tiradas a partir das teses, que vão nortear a vida petista nos próximos anos. Podem, por exemplo, mudar o processo de escolha dos dirigentes, como defendem todas as correntes menos a PMB. O Congresso, marcado para ocorrer entre os dias 11 e 13 de junho em Salvador, é o quinto do partido em 35 anos.

Os sete documentos registrados para o congresso mostram a perplexidade dos petistas diante do momento. Mantêm queixas aos inimigos de sempre (as forças conservadoras e a mídia), mas faz mea-culpa diante dos caminhos escolhidos nos últimos anos. A PMB, que terá 53,6% dos delegados no encontro, fala em "necessidade de uma contraofensiva política e ideológica para superar a crise de identidade que estamos atravessando". Ressalta que, para isso, o congresso, que se realiza em condições "políticas excepcionais", não pode ser "um ritual burocrático".

A Mensagem ao Partido, segundo maior grupo, com 20,5% dos delegados, avalia que "a construção do PT está ameaçada pela política e cultura sem utopia e sem ética de um capitalismo em crise". A chapa Partido para Todos e na Luta, terceira força interna e que terá 14,3% dos delegados, chega a diagnosticar que a "situação é dramática", com base em pesquisa Datafolha, divulgada em março que mostra que o partido atingiu o mais baixo índice de simpatizantes desde 1989: só 9%.

As críticas ao ajuste fiscal da presidente Dilma Rousseff também são comuns em todas as correntes. A PMB é mais cuidadosa ao analisar as medidas, mas não deixa de destacar que "o problema é que o peso tenha recaído mais sobre os trabalhadores do que outros setores das classes dominantes". Diz que o papel do partido é "apoiar o governo e, ao mesmo tempo, empurrá-lo para que cumpra o programa para o qual foi eleito".

Nas demais chapas, o tom das críticas às medidas é mais duro. "O governo Dilma se iniciou com uma clara inflexão conservadora, contraditória com o programa eleito", diz a Mensagem. A Partido para Todos cobra o cumprimento do programa eleitoral.

FHC diz que corte no Orçamento é consequência da má gestão do PT

• Ex-presidente pediu convergência nacional para superar a crise em palestra que contou com a presença de ex-ministros do STF

Luiza Damé – O Globo

BRASÍLIA — De passagem pela capital para fazer uma palestra, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse ontem que o corte no Orçamento da União de R$ 69,9 bilhões é consequência da má gestão do PT nos últimos anos. Para Fernando Henrique, ao fazer o contingenciamento, o governo da presidente Dilma Rousseff está pagando seus próprios pecados. O ex-presidente cobrou ações complementares do Palácio do Planalto após o anúncio da restrição de gastos públicos para que a população não fique vendo somente "nuvem negra" no horizonte.

— O Brasil foi tão mal governado nos últimos anos que o corte é consequência disso. A situação fiscal é de tal maneira difícil, e foi consequência de erros dos governos, que agora, com esse corte, o governo está pagando seus próprios pecados e vai ter que tomar medidas de contenção, como está tomando. A crítica que posso fazer não é à contensão, é que é uma espécie de operação sem anestesia. Quando você faz uma contenção fiscal tem de explicar ao país o que vem depois, para que você faz, qual é a esperança, qual é o horizonte. Agora só estamos vendo nuvem negra. Aí as pessoas ficam irritadas e não aceitam — afirmou Fernando Henrique, em entrevista após a palestra.

O ex-presidente falou por duas horas para estudantes e convidados de uma universidade particular do Distrito Federal. Cerca de 200 pessoas, incluindo os ex-ministros do Supremo Tribunal Federal Ayres Brito e Francisco Rezek, ouviram Fernando Henrique falando sobre o futuro do Brasil. Ele fez um retrospecto político e econômico do Brasil e do mundo desde os anos 1960, provocou risos na plateia e foi interrompido com aplausos. Também deu a sua versão sobre tropeços na época em que era presidente. Ao falar sobre indicadores sociais, lembrou do evento no BNDES, em que chamou os aposentados de vagabundos. Ontem, disse que, na realidade, queria dizer marajás.

Fernando Henrique apontou como caminho para o país o investimento nas áreas de energia, infraestrutura e educação, além da reforma política. O ex-presidente criticou a política econômica dos governos petistas, argumentando que foi definido um rumo, mas não a dosagem. Para ele, as medidas anticíclicas adotadas pelo governo para combater a crise econômica eram necessárias, mas houve um exagero na concessão de crédito.

— Em política econômica não adianta só ter o rumo, tem que ter rumo e aprender a dosar. Há momentos em que não dá para continuar: freia, espera, vai retomar mais adiante — disse o ex-presidente.

Ao tratar da questão energética, Fernando Henrique avaliou que os problemas da Petrobras decorrem mais de erros de estratégia e de clientelismo do que da corrupção. Ele lembrou que, no seu governo, os estados do Ceará, de Pernambuco e do Maranhão reivindicaram a construção de refinarias, mas a Petrobras deu parecer contrário, e as obras não saíram.

— O presidente Lula mandou fazer todas, mais a do Rio. Não é a Petrobras que erra. É político. Aceita a pressão. Foi erro, jogo político, clientelismo — afirmou.


O ex-presidente reconheceu que o país evolui nos últimos tempos, mas defendeu uma mobilização nacional para superação deste momento de crise. Fernando Henrique fez a plateia cair na gargalhada ao dizer que essa proposta não significa que queira aderir ao governo Dilma.

— Não está claro se vamos pegar um caminho certo. Estou sentindo a falta de liderança, a fata de determinação e tem que fazer alguma convergência. Quando falo disso, sou criticado porque estou querendo aderir ao governo da Dilma. Estou falando de convergência nacional. Pode ficar cada um no seu canto — disse.

Questionado sobre a posição do PSDB em relação ao impeachment, Fernando Henrique afirmou que para um processo político de afastamento da presidente são necessárias "provas cabais". Em compensação, o ex-presidente vê possibilidade de prosperar a ação por crime comum em razão das chamadas "pedaladas fiscais" feitas por Dilma para equilibrar a contas do governo.

FHC critica corte de despesas federais

• Ex-presidente diz que bloqueio em gastos públicos demonstra que o País é mal governado

João Villaverde - O Estado de S. Paulo

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) criticou neste sábado, 23, o corte de despesas federais anunciado pelo governo Dilma Rousseff. Para ele, o bloqueio de R$ 69,9 bilhões em gastos públicos, incluindo investimentos, demonstra que o País é mal governado. “A situação fiscal é de tal maneira difícil, e foi consequência de erros dos governos, que agora, com esse corte, o governo está pagando seus próprios pecados e vai ter que tomar medidas de contenção, como está tomando”, disse o ex-presidente, após participar de seminário em universidade particular de Brasília.

O líder tucano fez questão de destacar que o corte do orçamento foi uma medida necessária, porém ingrata, para resolver a grave situação fiscal do País. “Qual é a critica que eu posso fazer? Não é à contenção. É que há uma espécie de operação sem anestesia. Quando você faz uma contenção fiscal você tem que explicar ao País o que vem depois, para quê você faz, qual a esperança, qual o horizonte. E agora nós só estamos vendo nuvem negra. Aí as pessoas ficam irritadas e não aceitam” disse Fernando Henrique aos jornalistas.

O corte de despesas aplicado por Dilma foi o maior realizado em orçamentos federais desde que o PT chegou ao poder, em 2003. Foram cortados R$ 25,7 bilhões em investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), onde estão incluídos quase R$ 7 bilhões em cortes no programa Minha Casa, Minha Vida. A retenção de despesas faz parte do duro ajuste fiscal conduzido pelo governo Dilma para recuperar a credibilidade fiscal. Em janeiro, o governo já tinha elevado impostos sobre combustíveis e sobre o crédito ao consumidor. Além disso, há duas medidas provisórias no Congresso Nacional que restringem a concessão de benefícios previdenciários e trabalhistas.

“A situação é muito grave no Brasil, o problema é que a responsabilidade é dos governos. Não era necessário que tivesse sido feito tanto gasto. O Brasil começou a gastar como se os gastos fossem ilimitados. Agora estão pagando a conta. E como foi esse próprio governo que mais errou é bom que seja ele também que tenha que tomar as medidas mais duras”, criticou FHC, após proferir uma palestra de quase duas horas a uma plateia de 200 estudantes.

Pedaladas. De acordo com FHC, a ação penal que seu partido, o PSDB, vai perpetrar na Procuradoria Geral da República (PGR) na próxima terça-feira contra o governo Dilma por conta das “pedaladas fiscais”, pode ter um encaminhamento positivo. “O que houve de pedalada fiscal é contra a lei de responsabilidade fiscal. Não tenha dúvida que é. E houve abundantemente e isso pode ser crime”, afirmou FHC.

No entanto, um processo de impeachment necessita de “provas cabais”, indicando, portanto, que elas ainda não surgiram. “Eu nunca vi que o PSDB como tal tivesse dito: 'eu sou pró-impeachment da presidente Dilma'. Houve tendência aqui, tendência ali”, disse FHC.

O ex-presidente foi aplaudido pelos alunos após pedir a união em torno de um projeto que permita ao País superar a crise política e econômica. Mas em seguida fez questão de ressaltar que não estava pedindo apoio ou adesão ao governo Dilma Rousseff. “Não vou aderir ao governo Dilma, cada um no seu canto”, disse o ex-presidente, que governou o Brasil de 1995 a 2002.

“Não está claro se vamos pegar um caminho certo. Estou sentindo a falta de liderança, a falta de determinação para fazer alguma convergêcia. Quando falo disso, sou criticado porque estou querendo aderir ao governo da Dilma. Estou falando de convergência nacional. Pode ficar cada um no seu canto”, disse FHC.

Governo 'está pagando seus pecados', diz FHC sobre corte no Orçamento

Flávia Foreque – Folha de S. Paulo

BRASÍLIA - O presidente Fernando Henrique Cardoso argumentou neste sábado (23) que o corte de R$ 69,9 bilhões no orçamento do Executivo é decorrente de uma má gestão do governo da presidente Dilma Rousseff. Para ele, o governo "está pagando seus pecados" ao reduzir recursos em diversas áreas da Esplanada –como Cidades, Saúde e Educação.

"O Brasil foi tão mal governado nos últimos anos que o corte é consequência disso. A situação fiscal é de tal maneira difícil e foi consequência de erros dos governos que agora esse próprio governo está pagando seus pecados", afirmou a jornalistas após participar de palestra em centro universitário de Brasília.

O tucano comparou ainda o anúncio, realizado na tarde de sexta-feira (22), a uma "operação sem anestesia" –para ele, falta explicação sobre o que acontecerá daqui pra frente.

"Quando você faz uma contenção fiscal, você tem que explicar ao país o que vem depois. Pra que você faz? Qual é a esperança, o horizonte? E só estamos vendo nuvem negra. Aí as pessoas ficam irritadas, não aceitam", afirmou. Em sua fala durante a palestra, Cardoso argumentou que houve certo exagero na concessão de crédito para estimular a economia interna, ainda na gestão do ex-presidente Lula.

"Não adianta ter só o rumo, tem que ter o rumo e dosagem. Se você aperta o acelerador quando tem que frear, arrebenta mais adiante. Fizemos isso várias vezes em nossa história e não aprendemos. Espero que agora tenhamos aprendido. Há momentos em que não dá para continuar. Freia, espera, pra retomar mais adiante", afirmou.

Falta de liderança
Na mesma palestra, o ex-presidente fez uma crítica indireta à presidente Dilma ao apontar que hoje há uma carência de liderança no país.

"Para fazer qualquer coisa, precisa de liderança. Ninguém muda nada sem liderança e o Congresso percebe isso logo, quem lidera e quem não lidera. E quando o presidente não lidera, o Congresso ocupa espaço", disse ele ao comentar que hoje o a relação entre congressistas e Executivo tem como foco obter "um pedaço do orçamento".

Na TV, Aécio diz que governo erra e deixa conta para cidadão

• Presidente nacional do PSDB é a estrela da nova propaganda do partido, que continuará ataques ao PT iniciados por FHC

Tânia Monteiro - O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA – O presidente nacional do PSDB, senador Aécio Neves, será o protagonista da nova propaganda do partido, apresentada em cadeia nacional de televisão neste domingo. Dando seguimento aos ataques ao PT, iniciados pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na semana passada, Aécio vai afirmar que o Partido dos Trabalhadores está empurrando para o cidadão a conta dos desacertos em função dos seus erros.

"Nos últimos 12 anos, você trabalhou, pagou seus impostos e correu atrás. Você acreditou e fez a sua parte. Mas o governo não fez a parte dele. E agora, sem avisar, aumenta a conta de luz, a gasolina, os impostos, os juros e corta seus direitos. O governo resolve que você tem que pagar por erros que não são seus e abrir mão daquilo que você conquistou. É isto que nós não aceitamos. É contra isso que nos lutamos", afirma Aécio.

Inserções de 30 segundos irão ao ar entre 19h30 e 22 horas. O tucano reitera ainda o slogan usado na primeira propaganda: "PSDB: Oposição a favor do Brasil".

Na terça-feira da semana passada, o PSDB estreou seu programa partidário, também em cadeia de TV, com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso fazendo o mais duro ataque dos tucanos ao governo Dilma Rousseff desde a campanha presidencial do ano passado.

"Nunca antes na história desse País se errou tanto e se roubou tanto em nome de uma causa", disse Fernando Henrique, recorrendo a um lema tão destacado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seus oito anos de governo. "Os enganos e desvios começaram no governo Lula", disse também FHC, que citou os casos de corrupção na Petrobras, chamando-o de "petrolão".

Também atacou as propostas de ajuste fiscal, em particular a MP 665, que torna mais rigorosas a regra para obtenção do seguro-desemprego.

Kassab vê ruir status de 'superministro' de Dilma

• Atingido pelo maior corte de recursos do contingenciamento, ex-prefeito de São Paulo acumula também derrotas políticas no início do 2º mandato

Erich Decat e Beatriz Bulla - O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - Alçado para o grupo de "superministros" da presidente Dilma Rousseff no início do ano, Gilberto Kassab, titular das Cidades, chega ao final do primeiro semestre do segundo mandato da petista acumulando algumas derrotas em Brasília e priorizando uma agenda paulista.

O corte dos recursos do ministério comandado pelo ex-prefeito de São Paulo foi em números absolutos o maior da Esplanada. Chegou-se a soma de R$ 17,2 bilhões de um total de R$ 31,7 bilhões previstos inicialmente. A pasta comanda por Kassab tem dentro do leque de programas o Minha Casa Minha Vida, projeto considerado por aliados e adversários de grande potencial eleitoral.

Antes de perder verbas, Kassab foi minado na sua articulação política, avalizada pelo Planalto. Ele viu posto de "superministro" ser atacado por integrantes da base aliada ao incentivar a criação do Partido Liberal (PL). O surgimento de um novo partido poderia servir de janela para que parlamentares insatisfeitos migrassem para o PL, sem correrem o risco de perderem o mandato.

A ideia tinha o apoio do governo, que queria depender menos do PMDB e incentivar a criação de um novo partido de centro. Mas o PMDB reagiu e aprovou uma lei que dificulta a migração partidária. O PL acabou sendo registrado na véspera da sanção da lei pela presidente Dilma Rousseff. O Tribunal Superior Eleitoral deve julgar em breve se o registro do partido terá validade de acordo com as novas ou antigas regras.

Na disputa por espaço do segundo escalão, Kassab encarregou o presidente interino do PSD, Guilherme Campos, para discutir os espaços com representantes do governo. Quando há riscos de perdas tem, entretanto, assumido a frente das negociações. "Estivemos lá no Mercadante para discutir essa questão da Codevasf", lembra o senador Otto Alencar (PSD-BA), se referindo à dsputa pelo comando da Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba. Apesar da intervenção, o controle empresa pública foi parar nas mãos de um indicado do PP.

Assim como já vinha fazendo antes do anúncio oficial do contingenciamento, Kassab minimizou o impacto do corte.

Na análise feita logo após a divulgação dos números do bloqueio do Orçamento, ele considerou que as obras de grande complexidade não irão parar, mas apenas terão os respectivos cronogramas mais alongados em relação à previsão inicial.

Viagens e eleições. O ministro enxerga dias melhores para a conduão da pasta no ano de 2016, quando devem iniciar as contratações da terceira fase do Minha Casa Minha Vida. O período de execução da nova etapa coincide com as eleições municipais, ocasião em que o PSD de Kassab pretende ampliar o número de prefeitos eleitos em 2012, quando conquistou 497 municípios.
Na disputa da capital paulista, figura atualmente como um possível nome do partido Ricardo Patah, presidente da União Geral dos Trabalhadores (UGT).

O Estado de São Paulo tem sido a prioridade na agenda de Kassab. De janeiro até hoje, o ministro teve visitas previstas em ao menos 62 cidades, de acordo com informações coletadas no site do Ministério das Cidades. Mais da metade das viagens foram a municípios paulistas. No total, Kassab foi ao menos 33 vezes a São Paulo. Só em maio, foram oito viagens a municípios paulistas, predominantemente no interior do paulista.

Neste mês, Kassab rodou os municípios de Garça, Mogi Guaçu, Hortolândia, Bauru, São Bernardo do Campo, Americana e Penápolis. Já esteve em outras ocasiões na região de Campinas, São Bernardo do Campo, Santos, e outras 14 cidades paulistas.

Foram ao menos quatro visitas à capital do Estado para eventos e encontro com o governador Geraldo Alckmin (PSDB). Nos outros Estados, as visitas foram menos frequentes.
Até o ano eleitoral de 2016, Kassab espera também manter em Brasília o mesmo ritmo dos primeiros meses de governo. Em relação ao andamento das atividades no Legislativo, normalmente, todas as segundas-feiras, ele se reúne com o líder do PSD da Câmara, Rogério Rosso, para tomar conhecimento das principais propostas em discussão na Casa.

Segundo Rosso, o ministro não tem interferido e tem dado autonomia para a bancada nas votações de propostas polêmicas como a PEC da Bengala e o projeto de terceirização. "Ele delegou a condução da bancada. Conversamos na segunda e no dia seguinte ele já está viajando pelo País", afirmou.

Renan faz parceria com Serra no Senado

• Investigado na Lava Jato, alagoano afasta-se do Planalto e se aproxima de senador da oposição

Ricardo Brito - O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - Há um mês, o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), estava eufórico no plenário com a aprovação de uma proposta que libera recursos de depósitos judiciais e administrativos para Estados e municípios pagarem precatórios, dívida pública e investimentos. Era uma solução que prevê a injeção de R$ 21 bilhões nos governos regionais e, especialmente, reforça o combalido caixa de Alagoas, administrado pelo filho do presidente do Senado, Renan Filho (PMDB).

"Quero, fundamentalmente, cumprimentar o senador José Serra. Este é um momento grandioso para o Senado Federal, que conta com o senador José Serra na sua exuberância de inteligência e de participação. Pronto aos 70 anos de idade. Parabéns, senador!", elogiou Renan, da cadeira de presidente. "Senhor presidente, em primeiro lugar, queria agradecer a Vossa Excelência pela generosidade das palavras que dirigiu a este plenário e a mim. Descontados os exageros, que fazem parte da sua personalidade na relação comigo, queria, realmente, agradecer, com muita sinceridade", respondeu o tucano, que, na verdade, tem 73 anos.

Operação. O salamaleque de Renan a Serra não foi um fato isolado na ação do presidente do Senado. A mudança ocorreu após Renan entrar, em março, para a lista da Operação Lava Jato, o que o levou a acreditar que o governo atuou para colocá-lo no rol de investigados pelo Supremo Tribunal Federal. Ao mesmo tempo, ele se distanciou da presidente Dilma Rousseff, que retirou aliados do presidente do Senado de cargos-chave no Executivo. O peemedebista tem feito uma dobradinha com o senador do PSDB, "criando" uma agenda independente no Legislativo.

Além do projeto dos depósitos judiciais, que está na Câmara, o presidente do Senado já escalou o tucano para coordenar dois grupos de trabalho. O primeiro visa a firmar um pacto pela criação e manutenção de emprego, lançado no final de abril na esteira de Renan ter chamado de "coisa ridícula" o fato de Dilma ter desistido de falar em cadeia de rádio e TV no 1º de Maio. O segundo, criado na quarta-feira passada, tem por objetivo instituir uma agenda paralela de propostas do Congresso que atendam aos Estados sem a necessidade de decisão do governo federal.

"Nunca o Congresso Nacional foi tão forte para fazer as mudanças que a Federação necessita", discursou Serra no lançamento do segundo grupo.

"O que nós lamentamos muito é que aquele Brasil de 2014, que era projetado, era apenas um Brasil para a campanha eleitoral", disse Renan na ocasião.

Ganha, ganha. Aliados e adversários de ambos têm se mostrado surpresos com a parceria. A avaliação geral, segundo políticos entrevistados pelo Estado reservadamente, é que a dobradinha é positiva para os dois.

Renan busca sair da "agenda negativa" de ser alvo da Lava Jato ao mesmo tempo em que tenta se contrapor ao governo Dilma com uma pauta consistente de votações e debates públicos se valendo de Serra.

O tucano, por sua vez, consegue, com acesso ao peemedebista, um atalho para agilizar a tramitação das suas propostas na Casa, fazendo um contraponto à tímida atuação legislativa do ex-presidenciável Aécio Neves (PSDB-MG). Ele ganhou destaque na sua volta ao Congresso duas décadas após experiências no Executivo, como ministro de Estado, governador e prefeito, e derrotas eleitorais, como nas disputas presidenciais contra Luiz Inácio Lula da Silva (2002) e Dilma Rousseff (2010).

Na avaliação de um senador do PSDB, "Renan não está preocupado se existe um jogo na oposição". Para ele, "a estratégia de Renan é ganhar espaço na imprensa, que sempre esteve contra ele, somando mais notícias positivas do que negativas".

Para o líder do PSDB no Senado, Cássio Cunha Lima (PB), a dobradinha do presidente da Casa com Serra é um "reconhecimento" do valor da bancada tucana, mesmo Renan tendo excluído o partido da composição da Mesa Diretora na eleição de fevereiro. Na época, durante uma sessão para tratar dos cargos, Renan e Aécio bateram boca, com direito a dedos em riste e gritos.

Mais ligado ao senador mineiro, Cunha Lima negou que haja um melindre em relação ao ex-presidenciável do PSDB, nunca chamado para essas tratativas. "Não vejo dessa forma (exclusão de Aécio), é um reconhecimento do talento que o Serra tem", contemporiza.

Procurado por meio da assessoria de imprensa, Aécio não respondeu aos contatos.

'Melhores'. O senador Romero Jucá (PMDB-RR), convocado por Renan para ajudar Serra nos dois grupos, negou que haja uma dobradinha do tucano com o peemedebista. "Há discussões de questões nacionais e ele (Serra) pode ajudar muito", disse. "A gente pega as melhores pessoas."

A parceria, entretanto, tem causado ciumeiras na base. Há duas semanas, um influente parlamentar governista alertou o presidente do Senado sobre os riscos da aproximação com o tucano. Ele o aconselhou a não se aproximar da oposição. Lembrou que "quando ocorre a disputa política", quem o ajuda é a base, destacando o fato de que foram os aliados que o salvaram duas vezes em 2007 da cassação do mandato - ao final daquele ano, Renan renunciou à presidência da Casa. Renan nada respondeu.

Ao Estado, José Serra disse que não há nenhuma articulação política entre ambos e que a relação tem sido "natural". Ele contou que nem sequer tinha sido sondado anteriormente por Renan para coordenar os dois grupos.

"Tem sido uma relação de cooperação", avaliou Serra, ao lembrar que ambos foram deputados constituintes e ministros do governo Fernando Henrique. O tucano recordou que Renan foi um dos principais responsáveis pela vitória em Alagoas, único Estado em que venceu a disputa presidencial de 2002. Renan foi procurado desde quinta-feira, mas a reportagem não conseguiu falar com ele.

Ferreira Gullar - Duplo sentido

• Agora com o desastre do governo Dilma, o PMDB já está quase mandando mais do que Lula e Dilma juntos

- Folha de S. Paulo 

Deliberadamente deixei, por algum tempo, de comentar este assunto: a confissão de Lula a José Mujica, ex-presidente uruguaio, de que precisou "lidar com muitas coisas imorais, chantagens" durante o mensalão. Disse ainda ao colega que viveu tudo isso "com angústia e um pouco de culpa".

Esse fato veio à tona com a publicação, no Uruguai, de uma biografia que cobre muitos anos da trajetória política de Mujica do ponto de vista dele próprio.

A referida confissão de Lula foi feita em 2010, quando o STF julgava o escândalo do mensalão. Lula teria dito a Mujica: "Essa era a única forma de governar o Brasil". Ou seja, comprando os deputados da base aliada.

Essa informação é importante, não porque nos revele um fato que já era de nosso conhecimento, mas por se tratar de uma confissão do próprio Lula, que, desde o primeiro momento, afirmara não saber de nada a respeito do suborno e até mesmo que havia sido traído por aqueles que o tinham praticado.

E mais, porque quem a revelou foi seu amigo José Mujica, que não teria nenhum motivo para cometer deslealdade, inventando tal confissão --embora depois tenha negado que o colega se referia ao mensalão, pouco se importando que o trecho do livro é claro. Além do mais, Mujica é por todos considerado um homem íntegro, o que torna indiscutível a veracidade do que contou.

A confissão de Lula é, na verdade, uma tentativa de justificar, perante o amigo, o indiscutível suborno dos deputados. A afirmação de que aquela era "a única forma de governar o Brasil" implica dizer que todos os políticos brasileiros são corruptos, menos ele, Lula, claro.

Mujica, que, como bom comunista, acredita na classe operária, não iria descrer do operário Luiz Inácio Lula da Silva.

Não é o nosso caso, pois preferimos partir dos fatos --e eles deixam claro o que aconteceu, isto é, o que foi de fato o mensalão. Há algo de verdade na afirmação de Lula, quando diz que aquela era a única forma de governar o país.

Sim, a única forma de fazer o governo que ele pretendia fazer e fez, sem dividir com ninguém o poder.

Logo após proclamada a sua vitória, eleito presidente da República, o PMDB --então o partido que detinha a maioria no Congresso-- manifestou interesse em aliar-se ao novo governo, mas Lula, de imediato, rejeitou a proposta. E por uma razão óbvia: aliando-se ao PMDB, teria que lhe entregar importantes ministérios e empresas estatais --exatamente o que contrariava seus planos.

Por isso, em vez de um partido poderoso, escolheu como aliados partidos sem grande expressão. O mensalão não nasceu por acaso. Longe disso, fez parte do projeto de poder de Lula, cujo propósito era perpetuar-se no governo.

Sucede que o presidente do PTB, Roberto Jefferson, em vez de dinheiro, queria a presidência de Furnas. Contrariado em sua pretensão, procurou o próprio Lula, com o qual nada conseguiu --claro!-- e pôs a boca no mundo.

Lula, no primeiro momento, tratou de se esquivar: disse que havia sido traído. A culpa do suborno ficou então por conta de José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares, os "traidores"; afora os petistas fanáticos, ninguém acreditou nessa história, pois não dava para crer que os três principais homens de confiança de Lula tramaram o mensalão sem nada lhe contar. Noutras palavras, subornaram deputados para que eles aprovassem sem discutir todas as propostas do governo Lula, mas nada disseram a ele. Quanta bondade! É preciso ser débil mental para acreditar nisso.

Os seus três amigos foram condenados e encarcerados, enquanto ele, o verdadeiro inventor do plano, nada sofreu. Mas tratou de compensar tamanha sacanagem mudando de conversa. Deixou de se dizer traído e passou a afirmar que nunca houve mensalão, que, segundo ele agora, seria mera invenção de seus adversários políticos e da imprensa. Só para o amigo José Mujica ele contou a verdade.

Mas a mentira tem pernas curtas. Como o escândalo do mensalão tornou inviável continuar subornando deputados, Lula se rendeu à realidade: aceitou o apoio do PMDB, que havia rejeitado. Em consequência disso, teve de dar a ele ministérios e cargos importantes na máquina estatal.

O sonho de eternizar-se no poder começou a fazer água. Agora com o desastre do governo Dilma, o PMDB já está quase mandando mais que Lula e Dilma juntos. Ele tinha razão: só com o mensalão ele poderia governar o Brasil.

--------------------
Ferreira Gullar, ensaísta, critico de arte e poeta

Merval Pereira - Corroído por dentro

- O Globo

Está sendo colocado em xeque o novo equilíbrio político no país com que a presidente Dilma imaginou atravessar os próximos 18 meses, até a eleição municipal, com a ascensão do vice Michel Temer à coordenação política do governo e a presença de Joaquim Levy no Ministério da Fazenda.

Essa estratégia, "uma mudança impressionante e, sobretudo, uma decisão correta, dado o fracasso da política econômica e do padrão de relacionamento com os partidos aliados que caracterizaram o período", na definição do cientista político Octavio Amorim Neto, Professor da EBAPE/FGV em artigo no mais recente número do Boletim Macro, uma publicação do IBRE-FGV, está sendo corroída por dentro da própria base aliada do governo, com o aparente estímulo velado do ex-presidente Lula, que atualmente faz um jogo duplo.

Ao mesmo tempo em que se reúne com a presidente Dilma antes do anúncio dos cortes de cerca de R$ 70 bilhões no Orçamento, libera seus mais chegados, como o senador Lindbergh Farias, para dinamitarem o programa do governo.

A estratégia identificada por Octavio Amorim Neto de Dilma, Lula e o PT darem "um passo atrás –delegar poder para dois “estranhos no ninho” – para, depois, tentar dar dois à frente, isto é, fazer a economia voltar a crescer a partir de 2017, de modo que o partido continue a ser competitivo na eleição presidencial do ano seguinte" está sendo contestada internamente pela impaciência dos que consideram que o projeto petista está sendo derrotado na opinião pública e exigem uma mudança radical, até mesmo com a saída de Levy.

Não foi à toa que o ministro da Fazenda contestado pela base petista não apareceu no anúncio oficial dos cortes no orçamento. Aproveitou-se de uma gripe e da explicação técnica de que Orçamento é questão do Planejamento para marcar sua ausência, num recado claro de que pode deixar o governo a qualquer momento se as pressões resultarem no fracasso do pacote de ajuste fiscal.

Levy Recebeu nos últimos dias o apoio da diretora do FMI Christine Lagarde, que fez comentários tão ingênuos sobre o Brasil, como quando comparou o teleférico do Morro do Alemão ao de estações de esqui na Europa, que demonstra estar desinformada sobre a nossa real situação.

Isso não invalida o fato de que a ingenuidade de Lagarde, se o ajuste não sair como o prometido, pode se transformar em sérias críticas, desencadeando um processo de revisão do grau de investimento do Brasil pelas agências de risco.

A estratégia que Octavio Amorim Neto define em linguagem militar, Dilma, Lula e o PT estão montando, "travando, uma batalha pela retaguarda e, simultaneamente, batendo em retirada, na expectativa de voltar ao ataque a partir de 2017", está sendo contestada abertamente por parte do PT, e indiretamente pelo próprio Lula, o que retira poder político do ministro da Fazenda "estranho no ninho".

O PMDB, comparado muito bem por Octávio Amorim Neto nesse artigo a "um exército mercenário que, dependendo do resultado do ajuste, poderá ou abandonar o PT ou aliar-se à oposição ou ficar ameaçando fazer as duas coisas o tempo inteiro", já anuncia suas críticas ao pacote de cortes, querendo impor ao governo um projeto que tem o apoio dos presidentes das duas Casas de reduzir o número de ministérios como maneira de cortar custos mais produtiva do que tirar recursos ou reduzir reduções em programas sociais.

Cortando ministérios e reduzindo o número de cargos de nomeação direta do governo federal, Renan Calheiros e Eduardo Cunha pretendem responder aos ataques de que agem com fins fisiológicos, mas na verdade estão mesmo querendo impor-se ao Palácio do Planalto.

Dora Kramer - Raios que os partam

- O Estado de S. Paulo

Na hora do aperto e na medida até do impossível, o Palácio do Planalto cede, engole em seco e absorve as derrotas sofridas no Congresso sob a liderança dos presidentes da Câmara e do Senado. Faz olhar de paisagem diante das reiteradas demonstrações de força do deputado Eduardo Cunha e das constantes provocações do senador Renan Calheiros.

Calmaria puramente cenográfica. No relato de dois interlocutores diários da presidente, se pudesse, Dilma Rousseff faria picadinho dos dois. O cargo não lhe permite qualquer gesto de retaliação. Não seria prudente nem conveniente. Nas internas do governo, no entanto, o que se vê é a deterioração completa dessa relação. Principalmente no que tange o presidente do Senado, a quem o Planalto ajudou a eleger. A ele já foi transmitido o recado, por intermédio de representantes autorizados do governo: sua nova postura de oposicionista é tida como uma atitude traiçoeira; se no futuro vier a enfrentar dificuldades decorrentes de seus processos no Supremo Tribunal Federal, que vá pedir apoio aos partidos de oposição.

Não conte com sustentação do Planalto. Ali, no Palácio, a interpretação é a de que Renan Calheiros acredita que possa "crescer" junto à opinião pública nessa fase de impopularidade de Dilma Rousseff. Esquecendo-se, no entanto, de que sua imagem não é das melhores. Para dizer o mínimo e de maneira bastante amena.

Nos bastidores a realidade nua e crua é a seguinte: o governo espera que o Judiciário faça com Renan Calheiros e Eduardo Cunha o que o Executivo não pode fazer.

O Supremo Tribunal Federal, onde o presidente do Senado tem processos, digamos que não tenha adorado o empenho de Renan Calheiros para ver rejeitada a indicação de Luis Edson Fachin, nas mãos de quem caiu o caso da pensão da filha paga por um lobista de empreiteira. No dizer de um governista de muitas estrelas, a disposição do Planalto é "fazer a operação necessária para que Renan se saia mal no Supremo". Qual operação seria essa? "Nada demais. É só pedir que o ministro Fachin seja isento".

Quanto a Eduardo Cunha, a esperança do Palácio do Planalto é de que o deputado venha a ser realmente envolvido nas investigações da Operação Lava Jato. De acordo com as informações de Palácio, a Procuradoria-Geral da República "quer o couro" do presidente da Câmara.

Nesse roteiro, caberia ao Executivo assistir de camarote ao Judiciário promover a derrocada dos dois presidentes do Legislativo e, assim, abrir passagem para o renascimento do Executivo. É um plano de voo no papel. Nada garante na pratica que dê certo.

Fator previdência. O governo tem um acordo com a base aliada e com a oposição para votar o fator previdenciário. Tudo certo, a presidente disse que não iria vetar, mas não é toda a verdade.
Ela vai vetar sim, mas só que o veto será sem efeito. Pelo seguinte: no período entre a aprovação da medida provisória no Senado e a apreciação do veto, o governo apresentará uma fórmula alternativa de cálculo, tornando inócuos tanto o veto quanto a MP.

Mulheres. A bancada feminina da Câmara não está nada satisfeita com o presidente Eduardo Cunha. Elas querem prioridade para a votação de uma proposta pela qual as mulheres tenham direito a 30% das cadeiras da Casa. Ele reluta. Quer pôr em votação depois do sistema de governo, o que a elas não satisfaz. Argumentam que, com isso e mais o distritão, estarão fora do Parlamento.

Radical. A diferença entre o discurso do PT e da oposição de crítica ao ajuste é que o PSDB não pede a cabeça do Joaquim Levy.

Fernando Gabeira - Flamengo e Brasil

• Nos últimos tempos, tenho sentido em relação ao clube as mesmas divisões que sinto em relação ao governo

- O Globo

Sou Flamengo e brasileiro. Nos últimos tempos, tenho sentido em relação ao clube as mesmas divisões que sinto em relação ao governo do Brasil. O Flamengo tem um time de uma mediocridade tão desoladora que me faz hesitar entre torcer para que não caia para a Segundona ou torcer para que caia de uma vez e aprenda com o choque da realidade. Da mesma maneira, a situação econômica me faz desejar que Dilma dê os passos corretos, mas sua performance me faz desejar que caia de uma vez, para recomeçarmos de outro patamar.

O Flamengo não consegue vencer um adversário sem um goleiro de fato. A Pátria Educadora, lembram-se da solenidade com que Dilma anunciou o slogan?, deixou as universidades federais do Rio em estado de miséria. Algumas foram tomadas pelo lixo, outra ameaça desabar. Como dar aulas e estudar numa atmosfera de decadência tão acentuada? O Flamengo fez um ajuste fiscal em 2013, mas até hoje não se viram os resultados no futebol, sua interface com milhares de torcedores. Além da terceirização, algumas medidas idênticas às de Joaquim Levy foram tomadas: aumento das taxas, redução de gastos. E no, entanto, na hora do gol, nada.

No caso do plano de ajuste brasileiro, o gol é a retomada do crescimento. Até o momento, só pensões e salários de pescadores foram atingidos. Esperam-se o corte do governo e aumento de impostos. Como fazer gols com pernas de pau? Como retomar o crescimento, aumentando a carga das pessoas que produzem e consomem? Mesmo deixando barato esse tipo de ajuste fiscal que não enxuga a gigantesca máquina do governo, observamos que as universidades estão assim antes dos cortes orçamentários. A partir de agora, será mais difícil criticá-las porque a incompetência vai se escudar num argumento poderoso: não há dinheiro. Assim como é difícil ganhar um certame nacional sem formar um time, será muito difícil retomar o crescimento com tanta gente mamando nas tetas do governo, uma pesada carga fiscal inibindo empreendedores e o absoluto desprezo pelo conhecimento, vital nas economias modernas.

Não mudo de time nem de país, mas entendo a impaciência de alguns jovens que veem a saída nos aeroportos. Está tudo muito confuso. As grandes expectativas do movimento de rua não têm correspondência no universo político. A oposição que propunha cortes de gastos aumentou as despesas votando o fim do fator previdenciário. E no front da luta contra a corrupção, deixou passar um bom momento para questionar o candidato ao Supremo Luiz Edson Fachin: todos os seus líderes expressivos trocaram a sabatina por uma homenagem a Fernando Henrique em Nova York.

O governo é um monstro de muitas cabeças batendo umas nas outras. A tática de deixar Dilma sangrar não funciona. Ela já perdeu vários quilos e continua dizendo bobagens com a maior tranquilidade. Uma delas é a decisão de manter uma política de partilha no pré-sal. Os chamados defensores da Petrobras criaram uma cláusula que obriga a empresa a participar de todos os projetos da Petrobras, inclusive as canoas furadas. Poderiam criar uma cláusula de preferência, deixando com a empresa a decisão de escolher os projetos em que deva participar, de acordo com seus recursos e a análise de risco.

A própria Petrobras, em documento enviado aos investidores americanos, admite que tem limitações para investir no pré-sal. E agora? Com preços baixos no mercado internacional e imagem negativa da empresa, como o pré-sal vai carimbar nosso passaporte para o futuro? É apenas mais uma promessa da pátria educadora com universidades em ruína. Quando você pondera sobre a política de partilha, a reação mais comum é considerar sua posição reacionária e entreguista. Se pudessem dissipar os véus da ideologia, escolheriam o melhor para o país.

Norberto Bobbio disse no seu livro definindo a esquerda hoje que um sistema estatal de aposentadoria digna é um marco divisor com a direita. No Brasil, sinto que o respeito aos que trabalharam é universal no espectro político: direita, esquerda e centro.

Ideias generosas como aumentar os gastos com os aposentados precisam respeitar as leis do capitalismo. De onde virá o dinheiro para nossas bondades? Joaquim Levy tem uma ideia: impostos que sobrecarregam empresas e trabalhadores ativos.

Tanto essa história do papel da Petrobras no pré-sal como a do fim do fator previdenciário estão cheias de boas intenções: defender a economia nacional, proteger nossos simpáticos velhinhos. Mas, na prática, conseguem o contrário do pretendem: prejudicam a Petrobras e colocam em xeque o fundamento de um sistema previdenciário digno: sua sustentabilidade.

Quando volto da estrada, aos domingos, vejo um futebol. Vou trocar o hábito por um vídeo de clássicos europeus. Você pode dar um tempo na relação com seu time, mas não com o país. Talvez por estar viajando, não conheça bem todos as variáveis em jogo. Mas sempre que paro para ler e pensar, pergunto-me para onde estamos indo como país. Penso na Segundona, aqueles campos meio pelados, a luz fraca dos estádios. É isso que nos espera?

-----------------------
Fernando Gabeira é jornalista

Eliane Cantanhêde - Crise dentro da crise

- O Estado de S. Paulo

Três acontecimentos muito estranhos, todos na sexta-feira, mexem com os nervos do governo, com a imaginação da oposição e com a curiosidade geral. O clima é tenso, há interrogações demais e respostas de menos em Brasília. A crise econômica, política e a ética estão, aparentemente, descambando para uma crise dentro do próprio governo.

Primeiro acontecimento: antes do anúncio dos cortes no Orçamento, a presidente Dilma Rousseff se reuniu com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de manhã, fora da agenda e na Granja do Torto, local distante do Palácio da Alvorada e da cúpula política do governo, inclusive do vice Michel Temer. E o chefe da Casa Civil, Aloizio Mercadante, participou. Nada disso é usual.

Segundo: o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, simplesmente não apareceu na entrevista sobre o contingenciamento gigante, deixando a missão para o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, seu companheiro de agruras econômicas e adversário de disputas internas.

Terceiro: Lula voltou a São Paulo em tempo hábil, mas não deu as caras na reunião do Diretório do PT que discutiu a convenção nacional do partido, no mês que vem. Ok, a reunião foi um fiasco, com a maior parte das cadeiras vazias, mas Lula não aparecer?

Conclusão: aí tem! E o eixo da crise é Levy, tido por Arminio Fraga como "uma ilha de competência num mar de mediocridade". Mesmo que não seja questão de competência e mediocridade, é questão de turma. Levy não é da turma que gravita em torno do PT e está por toda parte na economia: Planejamento, BNDES, CEF, BC, BB, Petrobrás. Logo, uma ilha ele é, ou um peixe fora d'água.

Ao se atirar na condução da política econômica, nas estafantes discussões internas sobre rumos e nas muitas vezes inócuas negociações do ajuste fiscal com a base aliada, Levy sustenta-se num só pilar: a presidente da República. Se ela lhe faltar, não sobra nada. E ela pode ter começado a lhe faltar.

Quando dois petistas assinaram o manifesto de quarta-feira atacando o ajuste fiscal como recessivo, de certa forma, pediram a cabeça de Levy. Tudo bem com a assinatura de Paulo Paim, porque condiz com o personagem dele. Mas nem tudo bem assim com a de Lindbergh Farias.

Pergunta que não quer calar no Congresso: ele agiu sozinho ou por orientação de Lula?

Mas o pior foi nos cortes do Orçamento. Levy tinha anunciado uma tesourada entre R$ 70 bilhões e R$ 80 bilhões, mas o número final ficou em R$ 69,9 bilhões, estrategicamente abaixo do limite mínimo que ele assumira publicamente. Essa diferença, pequena diante do todo, foi mera implicância? Foi um aceno para as bases petistas? Ou foi um recado para o isolado ministro da Fazenda? Gripado ele estava, mas isso não o impediria de dedicar meia dúzia de palavras ao País, ao mundo, numa hora assim, diante de uma decisão grave como essa.

Afinal, o governo do PT e de Dilma passou a tesoura até mesmo na Saúde e na Educação da tal "pátria educadora", minou os alicerces do tão estratégico PAC e atingiu até mesmo o emblemático Minha Casa Minha Vida. Aliás, depois do esfarelamento dos recursos do Pronatec e do Fies, só faltava cortar os do Minha Casa. É o último bastião da campanha a ruir.

Então, embolou tudo: um corte brutal do Orçamento, a previsão oficial de queda de 1,2% do PIB neste ano, o maior fechamento de empregos formais de um abril desde 1992. E nada de aprovação do ajuste fiscal e do fim das desonerações pelo Congresso. Parece cada vez mais difícil.

Dilma, Levy e Temer só têm esta semana para aprovar as medidas provisórias que mudam regras trabalhistas e previdenciárias e, assim, garantir o ajuste fiscal, ou ao menos algum ajuste fiscal. Como o prazo de vigência de ambas é 1.º de junho, segunda-feira da próxima semana, é agora ou nunca. E há uma dramática coincidência entre o prazo do ajuste e o prazo de vigência do próprio Levy.

PS - Tiro uma semaninha de folga. Até já!

Bernardo Mello Franco - Acabou o dinheiro

- Folha de S. Paulo

Em uma das muitas crises financeiras no Clube de Regatas do Flamengo, em 2009, o então presidente Marcio Braga convocou a imprensa à sede da Gávea e abriu o jogo: "O que está acontecendo aqui é exatamente o seguinte: Acabou o dinheiro. Não tem mais dinheiro".

Dilma Rousseff escondeu a crise na campanha, mas tem uma chance de se redimir da propaganda enganosa. Basta reunir os jornalistas no Planalto e repetir as palavras do ex-mandatário rubro-negro. Acabou o dinheiro. Não tem mais dinheiro.

Essa seria a explicação mais honesta para o corte de quase R$ 70 bilhões anunciado nesta sexta. O governo está na pindaíba, vendendo o almoço para pagar o jantar. O país vive uma nova era das vacas magras, como no segundo mandato de FHC.

A volta ao passado inclui o retorno ao noticiário de outra sigla de três letras: o FMI. Na semana do corte, o Fundo enviou sua sorridente diretora ao Brasil para tirar fotos com autoridades, assistir a uma apresentação de capoeira e elogiar o ajuste fiscal.

A tesourada deve agravar a crise na educação, às vésperas de uma nova onda de greves nas universidades federais. Também atingirá o Minha Casa, Minha Vida, vitrine da gestão petista, e o PAC, que poderia acelerar a retomada do crescimento.

O pacote ainda bloqueará R$ 21,4 bilhões de emendas parlamentares, no momento em que Dilma mais precisa de apoio para aprovar o ajuste no Congresso. Pode ser a senha para uma nova ofensiva de quem só pensa em reciclar as palavras do ex-presidente do Flamengo: "Acabou o governo. Não tem mais governo".

Palavras do ministro Ricardo Lewandowski no dia do corte: "Como cidadão, compreendo as dificuldades pelas quais passa o país. Como chefe do Judiciário, tenho que cuidar dos servidores que estão com vencimentos atrasados". Faltou lembrar que eles receberam o último aumento há apenas quatro meses.

Luiz Carlos Azedo - A dura vida banal

• À crise econômica, política e ética instalada no país desde a reeleição da presidente Dilma Rousseff , não resta dúvida, se somará uma dura crise social

- Correio Braziliense

Não, não se trata de uma crônica sobre o cotidiano, que é a praia de craques como Ferreira Gullar, que, na década de 1990, reuniu em livro os textos que escrevera para O Pasquim e o Jornal do Brasil. No antológico A estranha vida banal (José Olímpio), de 1989, o poeta exalta pequenos detalhes do cotidiano, das garrafas de areia colorida feitas nas praias do Tibau, no Rio Grande do Norte, à observação atenta da aranha que caça uma mariposa.

A inspiração vem do professor Milton Santos, o grande geógrafo brasileiro, para quem um dos grandes problemas da globalização é que as políticas públicas foram capturadas pelos grandes interesses econômicos globais e a chamada vida banal foi ignorada pelo poder público, principalmente nos países periféricos.

Esse alheamento não se restringe aos donos do poder e às elites econômicas, mas abarca também a opinião pública — até a hora em que explodem grandes tragédias humanitárias, como as que ocorrem no Mediterrâneo e, bem mais perto daqui, no Haiti. Ou irrompe violência inopinada e brutal, seja o assassinato de um jovem negro por policiais no sul dos Estados Unidos, seja o latrocínio de um médico, a facadas, que pedalava à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão-postal do Rio de Janeiro, por jovens infratores que roubaram sua bicicleta.

A remissão ao falecido professor Milton Santos, um dos maiores intelectuais negros de nosso país, vem a calhar por causa do corte de R$ 69 bilhões no Orçamento da União anunciado na sexta-feira pelo ministro do Planejamento, Nelson Barbosa. A presidente Dilma Rousseff classificou-o como estritamente necessário, ou seja, nem tão grande que provoque o colapso do governo, nem tão pequeno que não surta o efeito desejado. Sobre os dois aspectos, porém, há controvérsias.

Estima-se que haverá uma contração de 1,2% no Produto Interno Bruto (PIB) em 2015 — o que será o pior resultado em 25 anos. Até então, previa-se que o PIB encolhesse 0,9% neste ano. Os maiores cortes foram efetuados nos ministérios das Cidades (R$ 17,2 bilhões), da Saúde (R$ 1,7 bilhão), da Educação (R$ 9,4 bilhões) e dos Transportes (R$ 5,7 bilhões). Ou seja, o maior impacto do ajuste fiscal será no cotidiano da população, na chamada vida banal.

Sucateamento
Há dois aspectos a considerar. O primeiro, é a política de “focalização” dos gastos sociais nos mais pobres, que se traduziu durante os governos Lula e Dilma na transferência direta de renda para aproximadamente 13 milhões de famílias, uma escala sem precedentes, na qual o corte foi menor: R$ 1,3 bilhão. Essa política social foi eficiente no combate à miséria absoluta e na elevação do padrão de consumo das famílias, mas, em contrapartida, as políticas “universalistas” — na saúde, na educação e nos transportes, principalmente — foram relegadas a segundo plano e sucateadas.

A questão levantada pelo professor Milton Santos ganha ainda mais relevância porque, ainda assim, as políticas universalistas foram aprisionadas por interesses econômicos poderosos. Vêm daí os descalabros da relação entre o SUS e os estabelecimentos de saúde privada; a perversa hegemonia do lobby rodoviário na política de transportes, tanto de cargas como de pessoas; a opção pelo padrão de transporte individual nos centros urbanos em razão dos interesses das montadoras de automóveis; a bolha imobiliária gerada pela especulação nas grandes cidades brasileiras; e a péssima qualidade do ensino brasileiro, cuja expansão se deu em função da acumulação privada e não das reais necessidades do país quanto à formação de mão de obra qualificada e ao exercício da cidadania.

À crise econômica, política e ética instalada no país desde a reeleição da presidente Dilma Rousseff — cuja responsabilidade recai sobre a forma como conduziu seu primeiro mandato e sobre a gestão anterior, de Luiz Inácio Lula da Silva —, não resta dúvida, se somará uma dura crise social, em razão do impacto que a recessão econômica e os cortes no Orçamento da União terão sobre a vida da população. No momento, o maior deles é o desemprego, principalmente entre os jovens, que já atinge a casa dos 16%. Esse é o segundo aspecto.

Seus efeitos não se restringirão à órbita federal. Um das perversões da fracassada “nova matriz econômica” do governo Dilma foi a queda de arrecadação de estados e municípios, entre outras coisas, porque as desonerações fiscais feitas pelo então ministro da Fazenda, Guido Mantega, incidiram sobre receitas que eram compartilhadas, uma espécie de cortesia com o chapéu alheio. A crise nas administrações locais, que deixa prefeitos e governadores de pires na mão, deve se agravar tremendamente. São as administrações locais que arcam com as demandas sociais do dia a dia da população, na saúde, na educação, nos transportes, nas condições de moradia, ou seja, cuidam — ou deveriam fazê-lo — da chamada vida banal.

Elio Gaspari - Sai o Trem-Bala, entra o trem chinês

- O Globo

A máquina de propaganda do governo e a doutora Dilma têm um especial carinho por trens. Em 2004 Nosso Guia perfilhou um projeto de ligação ferroviária entre o Rio e São Paulo. Era o trem-bala. Faria percurso de 500 quilômetros em 90 minutos, cobraria o equivalente a R$ 120 e nada custaria à Viúva. Ficaria pronto para a Copa de 2014. Atrasando, era certo que rodasse em 2016 para a Olimpíada. Deu em nada. Ou melhor, deu em parolagem e pariu uma empresa estatal, a EPL. Quando o projeto naufragou, surgiu a palavra mágica ouvida por Machado de Assis em 1883: “lingu”. Ele não esclareceu o que isso queria dizer, mas talvez significasse “investimento”: os chineses bancariam o projeto do trem-bala. Pouco depois um mandarim explicou: “Pedir que uma empresa chinesa assuma um risco tipicamente governamental é uma grande piada”.

Antes do desembarque do primeiro-ministro chinês Li Keqiang, saiu da caixa de mágicas do Planalto o projeto de uma ferrovia transoceânica ligando o Atlântico brasileiro ao Pacífico peruano. Teria 4.400 quilômetros. Nas palavras da doutora Dilma “ela atravessará os Andes”. Custaria entre US$ 5 bilhões e US$ 10 bilhões.

As dúvidas foram desfeitas quando o companheiro Li assinou 53 acordos com a doutora. Na mesa havia apenas o interesse mútuo de começar os estudos básicos da viabilidade do projeto. A ferrovia que iria do litoral brasileiro ao peruano era um exagero. O memorando assinado cuidava apenas da conexão da linha Norte-Sul, que iria de Campinorte, em Goiás, à costa peruana. A linha para o litoral atlântico é uma tarefa brasileira. Se tudo der certo, esse estudo deve ficar pronto em maio de 2016. O que era um estudo básico para analisar a viabilidade do projeto virou uma ferrovia que “atravessará os Andes”.

Cuidando dos seus interesses, os chineses assinaram diversos compromissos, compraram aviões, alugaram navios e arremataram um banco. Todos esses negócios são bons para eles e para o Brasil. Não havia por que botar o “lingu” de Machado de Assis numa ferrovia transoceânica.

A agenda chinesa é sempre precisa. Em geral eles querem recursos naturais e proteínas. Além disso, vendem serviços, bens e máquinas. Jogo jogado. A isso junta-se um interesse do Império do Meio de fornecer sua mão de obra para os projetos onde põe dinheiro. São mais qualificados, conhecem a empresa e às vezes custam menos. Há cinco anos eram 740 mil, de Angola ao Uzbequistão. Obras chinesas no Brasil já tentaram importar operários mas foram barradas. Esse pode vir a ser um bom debate, pois o que é preferível, um pasto goiano com 50 vaqueiros ou a obra de uma ferrovia com 500 chineses e 500 brasileiros?

Esse item da agenda chinesa chamou a atenção de Machado de Assis. Em 1883, quando o andar de cima queria imigrantes para substituir a mão de obra escrava, chegou ao Rio o mandarim Tong King-sing. Veio acompanhado de um secretário negro, fez o maior sucesso com suas roupas e foi recebido por D. Pedro II. O imperador disse-lhe que não tinha simpatia por seu projeto e, no melhor estilo chinês, ele foi-se embora.

À época, comentando a visita do mandarim, Machado de Assis escreveu uma cronica, transcrevendo uma carta que teria recebido dele. Esclareceu que preferiu manter a grafia do autor.

A certa altura, como se fosse hoje, Machado/Tong escreveu:

“Xulica Brasil pará; aba lingu retórica, palração, tempo perdido, pari mamma.”

Uma aula sobre o falecido Trem-Bala
Ainda não se conhecem as fantasias que acompanham a ferrovia Transoceânica, mas está na rede uma detalhada narrativa do que foi a maluquice do trem-bala de Lula e Dilma. É a reportagem “Um trem para Bangladânia”, de Leandro Demori. (A mistura de Bangladesh com Albânia é um neologismo criado pelo professor Mario Henrique Simonsen.)

Ele foi das raízes do sonho do trem de alta velocidade até a morte do projeto da empresa italiana que vendeu a novidade ao governo. Nela havia planilhas mágicas e um roteiro inexplicável, pois o trem não parava ao longo do percurso. O primeiro administrador do projeto, José Francisco das Neves, o “doutor Juquinha”, dormiu umas noites na cadeia, por malfeitos cometidos na ferrovia Norte-Sul, aquela que cruzará com a Transoceânica.

O repórter Leandro Demori trabalhou 11 meses no assunto, conversou com 30 pessoas e colheu documentos brasileiros e italianos. Conseguiu o apoio da Contributoria, uma plataforma independente ligada ao jornal inglês “The Guardian” e seus leitores. Quem quiser pode inscrever seus temas. Os leitores do “Guardian” votam, e quem não for assinante do jornal deve pagar US$ 3 por mês para participar das escolhas. A ajuda é dada relacionando-se o número de votos que o tema recebeu e a quantia que o jornalista pede. Aprovado o financiamento, o beneficiado vai à luta e fica livre para colocar o texto onde quiser. Demori preferiu hospedar seu texto na plataforma Medium, de Ev Williams, o criador do Twitter.

Os repórteres, como o Fantasma das Selvas, são imortais.

Andar de cima
Não se conhece uma só voz saída da banca para condenar o ajuste fiscal enquanto ele avançou sobre despesas que beneficiavam desempregados, pensionistas e aposentados.

Agora que a doutora acrescentou ao ajuste a pimenta da taxação dos lucros bancários, será interessante entender a reação dessa tão fiel torcida.

Renato Duque
A entrada do filho de Renato Duque na roda do dinheiro e das investigações da Lava-Jato assustou o comissariado.

O ex-diretor de serviços da Petrobras seria o arquivo que guarda as conexões do PT e de alguns de seus comissários com as petrorroubalheiras.

O “amigo Paulinho” só concordou em colaborar com o governo quando os investigadores mostraram-lhe que envolvera familiares em práticas criminosas. Até então, o PT considerava “satisfatórias” as patranhas que ele contava.

A Lava-Jato já custou a Renato Duque uma coleção de arte de novo rico e o equivalente a R$ 68 milhões depositados em Mônaco. Sua defesa diz que esse dinheiro não é dele. Amanhã, Eremildo, o Idiota, pretende se habilitar à sua titularidade.

Choque à vista
O senador Renan Calheiros e o deputado Eduardo Cunha, ilustres figuras da lista de parlamentares investigados pelo Ministério Público, decidiram jogar pesado contra a possível recondução de Rodrigo Janot ao comando da Procuradoria Geral da República.

Rejeitá-lo, caso seja indicado pelo Planalto, além de ser uma imensa carapuça, poderá levar a uma inédita mobilização do Ministério Público, refletindo-se em setores do Judiciário, inclusive em seus gaveteiros.

José de Souza Martins - A circunstância de Fachin

• Para sociólogo, novo ministro do STF será sensível a valores sociais na interpretação da lei e das contradições entre o legal e o legítimo

- O Estado de S. Paulo / Aliás

A celeuma quanto à indicação do professor Luiz Edson Fachin para a vaga do ministro Joaquim Barbosa no Supremo Tribunal Federal esconde os aspectos históricos do caso. É importante que a Suprema Corte tenha um ministro com seu perfil. O jurista gaúcho radicado no Paraná não representa, nem pode, um partido político ou uma facção partidária. Ele representa, antes de tudo, uma tendência histórica que só aos poucos se evidencia e ganha presença no cenário social e político do País. É de se presumir que ele será um ministro sensível aos valores sociais dessa tendência na interpretação da lei e das contradições entre o legal e o legítimo à luz do advento histórico de novos sujeitos de direito na cena brasileira.

Frequentemente nos esquecemos de nossos débitos históricos, dos problemas criados e não resolvidos até no passado distante e que, mais cedo ou mais tarde, clamam por solução. Quando são reunidas as condições históricas da solução, independente de pessoas e vontades, as pendências emergem e se resolvem numa direção ou noutra.

Atenho-me ao débito que maiores tensões têm provocado na história brasileira, o da propriedade da terra. Fachin foi questionado quanto à reforma agrária e seus vínculos com os que a reforma defendem. Esse é um tema que abala os nervos dos que veem na proposição da reforma uma ameaça esquerdista ao direito de propriedade. A verdade é que a reforma agrária é uma proposição política conservadora. Nosso Estatuto da Terra e a legislação decorrente foram-nos outorgados pelo regime militar e anticomunista inaugurado em 1964, com o fundamental objetivo de assegurar a ordem em relação ao direito de propriedade. Na direita e na esquerda, enganam-se os que não compreendem a função social e política da reforma.

Longe de ameaçar a instituição do direito de propriedade, a reforma propugna a multiplicação do número de proprietários. Reforça, portanto, a propriedade privada, ao mesmo tempo em que estabelece limites à concepção da propriedade absoluta e abusiva da terra ao introduzir o pressuposto da sua função social, o que já estava na Constituição de 1946. Enganam-se tanto os que combatem o agrorreformismo, na pressuposição de que o direito de propriedade fundiária tem no Brasil uma sólida existência de 500 anos; quanto os que o defendem, especialmente no PT e no MST, supondo que a propriedade privada da terra é entre nós uma iniquidade de 500 anos.

O regime fundiário no Brasil, desde o descobrimento, foi o das sesmarias, cuja lei é de 1375, uma portuguesa lei de reforma agrária, que aqui teve vigência até 1822, substituída em 1850 pela nossa Lei de Terras. No regime sesmarial, mantinha o Estado a propriedade eminente do solo, cabendo ao particular a posse útil. Na ausência de uso produtivo da terra, caía a concessão territorial em comisso, ficando a terra disponível para ocupação por outra pessoa. As iniquidades históricas relacionadas com o chamado latifúndio deviam-se não ao regime sesmarial, mas à escravidão.

A República oligárquica dos coronéis do sertão confirmou essa opção fundiária, em 1889, justamente na medida em que transferiu aos Estados a regulação do acesso às terras devolutas. Pode-se entender o que isso significou quando se tem em conta que a República entre nós nasceu como ditadura militar em oposição aos senhores de terra. Duas tendências históricas opostas marcadas por grande tensão. O que, aliás, foi no básico assinalado justamente por um ministro do Supremo, Victor Nunes Leal, num clássico da Ciência Política brasileira, Coronelismo, Enxada e Voto.

A Revolução de Outubro de 1930 abriu o caminho para relativizar a concepção de propriedade, com o Código de Águas, de 1934, que separou as águas e a propriedade privada da terra, restituindo-as ao domínio do Estado. Abriu, assim, caminho para o princípio jurídico que relativiza até mesmo a propriedade do solo, no caso das terras de marinha, das reservas florestais e das reservas indígenas, aquelas terras em que a extensão e o uso da terra colidem com a função social da propriedade e o interesse público.

Quando se toca nessas pendências históricas toca-se em complexos de problemas não resolvidos. Movida uma peça no tabuleiro de xadrez da História, outras peças acabam sendo movimentadas. A relativização da concepção de propriedade restaura a eficácia moral e dá estatura política à concepção de pessoa (e ao familismo e comunitarismo correspondentes), em oposição ao crescente predomínio da concepção de indivíduo (e ao individualismo e à coisificação da pessoa resultantes).

Luiz Edson Fachin parece identificar-se com o humanismo da primeira tendência, que reflete as orientações do personalismo, de Emmanuel Mounier, o pensador católico que fundou e dirigiu a revista Esprit. Ele não inaugurará essa tendência no STF. Em anos recentes a Suprema Corte tem sido chamada a opinar sobre questões como a dos territórios indígenas, o consequente direito à diferença e a própria concepção de nacionalidade brasileira.

---------------------
José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, autor de a Política do Brasil lúmpen e místico (Contexto)