sábado, 14 de novembro de 2015

Alberto Carlos Almeida: Avanço também é escolha

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O artigo anterior desta coluna teve como título "Retrocesso também é escolha" e o assunto foi a proposta de corte de R$ 10 bilhões no orçamento de 2016 do Bolsa Família. Argumentei que será um retrocesso se isso vier a ocorrer, pelo simples fato de o Bolsa Família, considerando-se a pirâmide social, favorecer os mais pobres. Naquela coluna, não apresentei alternativas a não cortar os R$ 10 bilhões desse programa. É o que faço agora, e o que motiva o título da coluna de hoje, oposto ao da anterior.

Toda política econômica, sem exceção, define ganhadores e perdedores. Em geral, não conseguimos ver isso acontecer em períodos de bonança, tal como foi nos últimos 12 anos. Contudo, vencedores e perdedores lá estavam. Quando vem a crise, isso é desnudado O que antes era difícil de ser visto fica mais do que explícito. Enquanto havia um vigoroso crescimento econômico, todos tinham a possibilidade de aumentar sua renda, mas alguns segmentos sociais a aumentavam em ritmo maior (os vencedores), enquanto outros aumentavam em ritmo menor (os perdedores).

Sabemos que durante os governos Lula e Dilma a renda dos mais pobres aumentou em velocidade significativamente maior do que a renda daqueles que têm o grau superior completo. Dados abundantes comprovam isso. A diferença de aumento de renda foi resultado de uma política econômica que escolheu os vencedores, os mais pobres, e também os perdedores, os mais ricos. Os instrumentos para que esse objetivo fosse atingido foram decisões econômicas que asseguravam o pleno emprego - ou quase isso -, a política de valorização do salário mínimo e as políticas sociais de transferência de renda, entre as quais o Bolsa Família se destaca. Houve, no período, uma redução significativa do índice de Gini, que é o principal indicador de desigualdade de renda.

A bonança dos governos Lula e do primeiro governo Dilma mascarou diariamente os vencedores e perdedores. Contudo, eles apareceram em pelo menos três episódios, nas urnas, em 2006, 2010 e 2014. Se observarmos os mapas eleitorais, veremos que os mais pobres votaram em maior proporção nas candidaturas do PT e os menos pobres, nas do PSDB.

Os mapas eleitorais, entretanto, não revelam tudo. Em particular quando se trata de segmentos pouco numerosos de eleitores. Os empresários do setor de importação foram, até 2015, vencedores. Junto à elite, há quem conheça antigos industriais de vários setores, como o têxtil, que na última década decidiram reduzir drasticamente a produção interna, ou até mesmo extingui-la, e passaram a importar tecido e roupas da China. Isso serve para ilustrar o fato de que uma política econômica de combate à inflação que resulte em apreciar o real frente ao dólar leva a indústria doméstica a ser perdedora. Por outro lado, a desvalorização do real torna a indústria local vencedora. Neste caso, perdem os interessados em uma inflação baixa.

A entrevista de Ricardo Paes de Barros ao Valor, em 4 de novembro, deixou claro que, em época de crise, as políticas públicas, em particular a econômica, revelam ganhadores e perdedores. O maior especialista brasileiro no tema da desigualdade de renda coloca a questão relativa aos cortes orçamentários do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), programa de crédito para o ensino superior que atende em sua maioria jovens de menor poder aquisitivo. Em momento de crise, pensa-se em cortar os recursos do Fies, mas não se diz nada sobre cobrar mensalidade aos alunos das universidades públicas que têm condições de pagá-la. Isso é fácil de saber por meio do imposto de renda de seus pais na época em que cursavam o ensino médio. Quando não se cobra de quem pode pagar e cortam-se recursos do Fies, os ganhadores são a classe média alta e os perdedores, em sua maioria, pessoas da classe baixa.

O portal Siga Brasil, do Senado, revela que 103 instituições federais de ensino superior - a grande maioria, universidade públicas -, consumiram em 2014 nada menos que RS$ 34 bilhões no pagamento de pessoal e encargos sociais, valor maior do que é gasto com o Bolsa Família. Sabemos que universidades públicas são capazes de gerar recursos para se tornarem menos dependentes do Tesouro Nacional em seu custeio, o que daria mais margem de manobra no orçamento federal para políticas de transferência de renda voltadas para os mais pobres.

Uma das peças mais importantes e reveladoras, quando buscamos vencedores e perdedores da disputa política, é o orçamento da União - esta peça que, não por acaso, pois estamos em um momento de crise, de escassez, se tornou figura-chave do embate político. No orçamento, podemos achar inclusive o valor em reais das vitórias e derrotas de cada ator político (www.bit.ly/1SE11b0). Lá está a lista de renúncias fiscais, de renúncias de receitas. A magnitude orçamentária do Bolsa Família, por exemplo, é apenas metade da renúncia fiscal do Simples Nacional de comércio e serviços.

É isso mesmo: o governo federal deixará de arrecadar R$ 60 bilhões por efeito da isenção fiscal do Simples Nacional para as empresas de comércio e serviços. Podem-se acrescentar R$ 17 bilhões de renúncia, na mesma rubrica, em favor do setor industrial. Um total, portanto, de R$ 77 bilhões. É possível argumentar que o Simples Nacional permite que empresas que não se regularizariam o fizeram por conta das isenções. Portanto, deveriam ser mantidas. Admita-se o mérito dessa política pública. Entretanto, é preciso que a isenção totalize R$ 77 bilhões? Não poderia ser um pouco menor, sem prejuízo para os objetivos maiores da isenção? Talvez uma isenção da ordem de R$ 50 bilhões fosse suficiente para o sucesso da política. Em tempos de escassez, em tempos de necessidade de equilibrar o orçamento, seria interessante que os pequenos empresários passassem a ter menos isenções.

O anexo IV.11 do orçamento federal é revelador. As entidades educacionais sem fins lucrativos (que não lucram!) gozam de uma isenção fiscal que custará R$ 3,5 bilhões aos cofres públicos em 2016. Adicionalmente, a renúncia fiscal relativa às despesas com educação de pessoas físicas será, em 2016, da ordem de R$ 4,3 bilhões. A renúncia com despesas médicas é maior, atingindo pouco mais de R$ 12 bilhões. Somando-se as duas, que estão no imposto de renda daqueles que podem pagar por educação privada e planos de saúde, chega-se ao patamar de R$ 16 bilhões. As entidades filantrópicas de assistência social também têm um quinhão invejável de benefícios governamentais, algo como R$ 11,5 bilhões por ano.

Todos estão pendurados em recursos do governo, todos têm sua boquinha no Estado e a menor delas acaba sendo a dos beneficiários do Bolsa Família. O mais interessante é a transferência de renda que ocorre de todos os contribuintes para segmentos específicos, como pequenos empresários, classe média alta, entidades que supostamente não buscam o lucro e entidades cuja finalidade é a filantropia.

Aqui estamos de volta à panela de pressão da coluna anterior. Do ponto de vista social e da renda, o Brasil é uma enorme panela de pressão. Não por acaso, a criminalidade é alta e crônica. É claro que há várias causas para a criminalidade elevada, mas uma delas é a acentuada desigualdade social e de oportunidades. Em países mais igualitários, a criminalidade é bem menor do que a nossa. O principal exemplo é sempre o Japão, país que talvez tenha a maior classe média e que tem uma das menores, senão a menor, criminalidade.

Precisamos urgentemente de decisões que restaurem o equilíbrio orçamentário, sob pena de termos que enfrentar uma crise profunda e prolongada, na qual os maiores penalizados serão os mais pobres. Uma forma de buscar tal equilíbrio é por meio de redução das renúncias de receitas tão bem documentadas no orçamento federal. Aí entra a política. É preciso fazer política para que diminuamos os benefícios do Simples Nacional, assim como as isenções do imposto de renda de pessoa física e os privilégios de profissionais liberais que, por cobrarem como empresa, pagam muito menos impostos do que os assalariados com carteira assinada. São apenas exemplos.

Poderiam ser outros segmentos, outros grupos sociais e setores da economia. O fato é que o governo brasileiro pode começar desde já um longo e contínuo esforço para corrigir a geração de desigualdade causada pela estrutura de receitas e gastos públicos. Esse esforço é, acima de tudo, político. Não é um esforço técnico. O diagnóstico e a receita já existem. Agora é preciso persuadir a opinião pública, deputados e senadores da necessidade de caminharmos para desfazer nossa panela de pressão social. Trata-se de um esforço político, porque será necessário dobrar lobbies fortes, como é o caso dos professores de universidades públicas, das associações que congregam pequenos empresários, da classe média alta das grandes cidades. Não falta a Dilma coragem para enfrentar lobbies. É preciso agora agregar a isso a capacidade política de fazê-lo. Eis uma agenda para sairmos da crise.

O livro de FHC
Para quem gosta de política e quer entender como ela funciona, o livro de Fernando Henrique Cardoso acerca dos anos que passou na Presidência é peça de leitura indispensável. Trata-se de algo raro, o líder maior de um país grande em território e população, com uma economia complexa e forte, em um período de reformas e mudanças, documenta e publica o dia a dia de seu trabalho. Cada governante tem seu estilo, seu perfil próprio e o livro deixa claro quais eram as principais características de Fernando Henrique. Por outro lado, há os requisitos da política, o que é preciso fazer para alcançar seus objetivos, coisas demandadas a qualquer governante. O livro revela como foi a interação entre o estilo de Fernando Henrique e os requisitos da política. Repito, independentemente da visão ideológica, trata-se de leitura obrigatória para quem gosta, acompanha e se envolve com a política.
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Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de “A Cabeça do Brasileiro” e “O Dedo na Ferida: Menos Imposto. Mais Consumo”

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