domingo, 18 de outubro de 2015

Celso Lafer - A verdadeira herança maldita

- O Estado de S. Paulo

O julgamento, pelo STF, do “mensalão” e agora as surpreendentes e cotidianas revelações da Operação Lava Jato põem na pauta brasileira a magnitude da transgressiva relação entre o dinheiro e o poder e seu impacto na vida do nosso país.

Todos os indícios apontam para a existência de uma convergência sistêmica entre ilícitos que transitam pelo enriquecimento pessoal, pelo fraudulento desvio de recursos públicos para projetos de manutenção e aquisição de poder de partidos e personalidades políticas e por uma espúria coabitação entre empresas e o poder público. Esta faz da propina e dos “arranjos” um ingrediente relevante tanto na seleção de que grupos empresariais se vão incumbir de grandes projetos no País, e também no exterior, quanto no tamanho do sobrepreço cobrado na execução de importantes obras.

Salta aos olhos que tudo isso fere frontalmente as normas e os princípios do artigo 37 da Constituição, que regem a administração pública e assentam os padrões de conduta que tutelam o interesse público. Destaco: o da impessoalidade, que estipula que todos devem ser tratados sem distinções, e não com favorecimentos e compadrios, em obediência ao princípio da igualdade; o da eficiência, que exige da administração pública fazer o melhor sem desvios e sobrepreços, com recursos públicos escassos, no atendimento do interesse coletivo; e o da moralidade. Este aponta para o fato de que o Direito como a disciplina da convivência humana sempre tem como piso um mínimo ético. O princípio da moralidade é a cobertura axiológica da boa-fé e da confiança que deve cercar, na relação governantes-governados, a aquisição e o exercício do poder.

Faço essas observações para apontar que o alcance do que está na ordem do dia vai além do que está tipificado como sérios ilícitos na legislação penal. Impacta o sistema político como um todo por obra do efeito deletério da corrupção.

A palavra corrupção vem do latim, do verbo corrumpere. O significado originário do termo é estragar, decompor. Na filosofia aristotélica, é uma das espécies de movimento que levam à destruição da substância. Políbio, tratando dos modos como os regimes políticos mudam e, por isso, alteram a sua substância por obra do movimento da corrupção, recorre a uma metáfora esclarecedora. Indica que a corrupção nos regimes políticos exerce papel semelhante ao da ferrugem em relação ao ferro ou dos cupins na madeira: é um agente de decomposição da substância das instituições públicas.

Valendo-se da “lição dos clássicos”, Michelangelo Bovero em seu Contra o Governo dos Piores, ao pensar problemas da política contemporânea, aponta os riscos do movimento da corrupção. Um dos mais significativos é o de favorecer uma kakistocracia, literalmente o governo dos piores, que abre espaço tanto para a demagogia do pão e circo quanto para a plutocracia, na qual prevalece a influência do dinheiro na gestão governamental.

Estas rápidas remissões à teoria política têm como objetivo realçar que um dos efeitos da corrupção que transcende o penal é o de trazer a corrupção do espírito público, como aponta Raymond Aron em seu Democracia e Totalitarismo.

A corrupção do espírito público mina a confiança das pessoas nas instituições democráticas, que nelas não vislumbram uma postura efetivamente voltada para o interesse comum.

Como diz Bobbio em artigo de 1993, recolhido no seu livro Verso la Seconda Repubblica, redigido numa época da política italiana que tem semelhanças com a nossa atualidade: “A democracia requer confiança. A confiança recíproca entre os cidadãos e a confiança dos cidadãos nas instituições. A confiança, por sua vez, requer a transparência que exige que tudo o que diz respeito aos cidadãos se faça à luz do sol”. Daí a importância do princípio da publicidade, que também integra o artigo 37 da Constituição.

A revelação da magnitude da corrupção solapa a necessária confiança recíproca exigida pela democracia. É um cupim que está decompondo as aspirações republicanas consagradas na Constituição de 1988, pois a res publica – o bem comum – está sendo confundida e não diferenciada, como na formulação de Cícero, do bem privado (res privata), do bem doméstico (res domestica) e do bem familiar (res famialiaris).

Realço o que isso significa nos dias de hoje porque o declínio de políticas ideológicas e a complexidade dos assuntos que são da responsabilidade de um governo fazem da credibilidade um elemento fundamental da governança. A corrupção é um redutor da confiança na classe política e nos partidos, que tem, assim, consequências para o bom funcionamento do sistema político, pois cupiniza o seu capital simbólico.

Uma medida da dimensão política da corrupção é a dada por todas aquelas ações ou omissões dos detentores do poder político que violam normas jurídicas gerais para perseguir interesses e vantagens particulares. Lembro, neste contexto, que uma das virtudes do Estado Democrático de Direito é o respeito às leis e, muito especialmente, à Constituição; e uma dimensão da falta de espírito público, instigada pela corrupção, é a complacência com o afrouxamento da sua força obrigatória.

Machado de Assis observa: “Corrupção escondida vale tanto como a pública; a diferença é que não fede”. A Operação Lava Jato, em linha com o princípio da publicidade, está pondo diariamente à luz do dia o quanto “fedem” as modalidades de corrupção que estavam escondidas no âmbito do criptogoverno e do subgoverno do Brasil. Está, assim, indicando a existência, esta, sim, de uma verdadeira herança maldita.

A superação desta herança maldita, que resulta do exercício do poder pelo PT, exigirá a descupinização do sistema político para recuperar a confiança e restaurar a credibilidade necessária para abrir horizontes para o País.

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