sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Quem inventou o Brasil?

• Fernando Henrique Cardoso, Elio Gaspari e Bruno Barreto se unem em série de documentários sobre o país para TV a cabo

• O Canal Brasil exibirá durante três meses, a partir de outubro, a série de documentários

Por Ricardo Arnt - Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

"Inventores do Brasil", dirigida pelo cineasta Bruno Barreto com roteiro do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e a colaboração do jornalista Elio Gaspari. O sociólogo será o âncora e narrador de 13 filmes de 30 minutos cada um que, uma vez por semana, mostrarão a contribuição de líderes e pensadores que "inventaram" visões e projetos do Brasil, como Joaquim Nabuco, Gilberto Freyre, Getúlio Vargas, Sérgio Buarque de Holanda, Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves.

Inspirado nas séries da BBC "A Era da Incerteza", interpretada pelo economista John Kenneth Galbraith, e "Civilização", do historiador da arte Kenneth Clark, o programa baseia-se no último livro do ex-presidente, "Pensadores Que Inventaram o Brasil" (Companhia das Letras, 2013), que reúne artigos sobre dez pensadores transcendentais do país. No entanto, os personagens abordados nos episódios na TV não serão os mesmos do livro. A série é uma produção da Luiz Carlos Barreto Produções Artísticas (pai de Bruno), integrante do Grupo Consórcio Brasil, sócio minoritário da Globosat no controle do Canal Brasil.

A lista final dos "inventores" não está fechada, mas os dois primeiros programas já estão definidos, após filmagens no Rio e em Petrópolis. No primeiro, Fernando Henrique apresentará d. Pedro II e Joaquim Nabuco e, no segundo, Euclides da Cunha e Manuel de Campos Sales, o presidente que estabilizou a economia da República em 1900. Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda deverão integrar o terceiro episódio. Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e os tenentes de 1922 também ganharão programas. Tancredo Neves encerrará a série como o inventor da conciliação que pôs fim a 21 anos de ditadura militar em 1985, a única executada pela oposição e não pelo governo. "Eu e o Fernando Henrique conversamos durante mais de um ano", conta Barreto. "Levei a ideia do livro para o Elio e ele topou ajudar na adaptação."

As circunstâncias parecem favorecer o "timing" do projeto. "Nos meus 60 anos de vida não me lembro de um momento em que as pessoas estivessem tão desnorteadas e estupefatas como agora", diz o cineasta. "Ninguém sabe para onde ir. O Brasil precisa refletir sobre a sua história." A propósito, no prefácio do livro que inspira a série, o ex-presidente afirma que é preciso inventar um outro futuro para o Brasil para abrir caminhos no mundo moderno: "A lupa que permite ver quem somos precisa de telescópios que nos situem no universo mais amplo".

Com 84 anos e dois dentes do siso recém-arrancados, Fernando Henrique está maduro para enfrentar a televisão. "Não é fácil passar do texto à imagem. O Bruno é mais ativo na definição de cenas, o Elio opina e eu, discretamente, vou vendo se me adapto à situação", explica no escritório do Instituto FHC, no vale do Anhangabaú. Para ele, trabalhar em parceria é uma experiência enriquecedora. "As nossas visões se complementam. Como na imagem e na voz apareço eu, é preciso que esteja convencido do que vou dizer. Não se trata de repetir o que escrevi, mas de, tomando como oportunidade a ideia de que o Brasil se constrói por seu povo, seus líderes e seus pensadores, transmitir isso ao espectador."

A interpretação sociológica e a minúcia jornalística podem se completar, mas o diretor tem um problema de créditos a resolver. "O roteiro é do Elio, o Fernando faz um copydesk e eu palpito como diretor", diz Barreto. Gaspari, entretanto, afirma ter assinado um contrato como "colaborador" e ameaça processar pela Lei de Segurança Nacional quem disser que escreve roteiros para um intelectual da estatura do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Avesso às entrevistas e às declarações entre aspas, o jornalista, autor de livros célebres sobre a ditadura militar, as séries "As Ilusões Armadas" e "O Sacerdote e o Feiticeiro", afirma que apenas fornece insumos. Na prática, escreve textos sobre os personagens tentando afinar as ideias do sociólogo com a narrativa "fulanizada" que o diretor propôs, focalizando tanto a obra quanto a biografia dos inventores. Quando a série for ao ar o leitor poderá conferir o que foi creditado a cada um.

Além das cenas que ainda serão registradas no Instituto FHC, a equipe filmou objetos do imperador Pedro II no Museu Imperial de Petrópolis e vestígios do Cais do Valongo, no porto do Rio, onde Fernando Henrique evoca o desembarque de milhões de escravos africanos - "a primeira praga do Brasil". Também foram captadas imagens de Joaquim Nabuco na Academia Brasileira de Letras, no Palácio do Catete, onde Campo Sales governou, e no antigo palacete do Parque das Ruínas, em Santa Teresa, onde o solteirão Joaquim Murtinho, seu ministro da Fazenda, viveu cercado de cachorros. "Campos Sales e Joaquim Murtinho são personagens injustiçados. Eles criaram as bases da política do café, que impulsionou a economia brasileira. Sem o ajuste estabilizador, a República estaria comprometida", diz Fernando Henrique.

Curiosamente, Gaspari recuperou o ensaio "Dos Governos Militares a Prudente-Campos Sales", escrito em 1977 pelo ex-presidente na coleção "História Geral", da Civilização Brasileira, no qual o sociólogo ironiza o programa econômico de Sales colocando entre aspas o "saneamento" promovido por Murtinho. "É verdade, eu ironizei", diz Fernando Henrique. "Mas também fiz saneamento quando fui ministro da Fazenda, em 1993. O problema do saneamento é não virar fetiche. Vale como um meio para atingir um determinado fim. Trata-se do alicerce para se construir uma casa sólida e ampla capaz de acolher a maioria. Mas você tem que mostrar isso à população o tempo todo. Saneamento significa apertar o cinto e quem aperta o cinto é o povo. Afeta todos, naturalmente, mas dói mais no povo."

Campos Sales saiu do governo sob vaias e foi morar numa casa modesta em São Paulo. Tinha uma fazenda, hipotecou-a, mas não conseguiu pagar as prestações. O banco ia executar a dívida quando um advogado do seu conselho impediu, oferecendo-se para pagar a dívida como avalista, sob a condição de que o ex-presidente nunca soubesse, pois eram adversários políticos e não queria constrangê-lo. A noção de ética era bastante diferente na época. Gaspari ressalta que Joaquim Murtinho foi acusado de ganhar dinheiro com comissões na negociação da dívida com os banqueiros Rothschild, em Londres, mas os valores eram ridículos se comparados com as comissões do atual escândalo da Petrobras. Um acordo de delação da Lava-Jato paga a corrupção do Império e a da República Velha, somadas.

As analogias com a crise atual são óbvias. "Quando fui presidente, tinha a preocupação de ressaltar que a globalização existe e está aí", comenta o sociólogo. "Não é um projeto de alguém, é uma realidade. O que você faz? Fecha os olhos? Ela te engole. Se abrir, tem que se adequar a ela. Fui xingado de neoliberal e não mais o quê, mas tínhamos que ajustar o Estado e a economia para poder seguir competindo e o país avançar. Veja agora. Quanta gente não entende a revolução nos meios de informação? Essas manifestações contra o governo não têm comando político-partidário, não têm centro decisório. Mas estão aí e vão continuar."

Se Campos Sales é injustiçado na historiografia brasileira, a controvérsia aumenta com os personagens totêmicos. D. Pedro II não apreciava o deputado pernambucano Joaquim Nabuco. O compenetrado imperador austríaco-brasileiro detestava o dandismo do intelectual desiludido com o abolicionismo. Fernando Henrique pondera: "Admiro Joaquim Nabuco porque, sendo aristocrata, olhou para baixo e viu os negros. Mas é verdade que os estilos eram diferentes. Pedro II, bem ou mal, inventou o Estado".

Em Petrópolis, o diretor do Museu Imperial, Maurício Vicente Ferreira Junior, contou que um dia o médico do palácio viu uma trilha de formigas rumo ao urinol do imperador. Graças aos insetos diagnosticou-se o diabetes do rei, que não tinha cura na época. A insulina só foi descoberta em 1921. Com açúcar no sangue, d. Pedro atraía formigas, cochilava nas reuniões e vivia cansado. Acabou ganhando o apelido de Pedro Banana. Sua falta de reação diante do golpe militar da República expressa um cansaço de diabético, nota Gaspari. Em decorrência da doença, o imperador morreu três anos depois, em 1891, de uma gripe degenerada em pneumonia.

• "Faltam visões e projetos novos para o Brasil. Ou melhor, as visões existem, mas não emergiram com a força das sínteses do passado", diz FHC

Gilberto Freyre e Euclides da Cunha também polarizam críticos e admiradores. O primeiro valorizou a miscigenação, uma "invenção" de grandeza muito maior do que seu apoio controverso aos governos militares pós-1964. Já o segundo "inventou" o sertanejo brasileiro. Quem vai a Canudos e sobe na colina onde o coronel Antônio Moreira César foi morto em 1897 percebe a genialidade de Euclides ao contemplar a paisagem desolada da região. Michelangelo pintou o teto da Capela Sistina com a ajuda do papa e do Vaticano, lembra Gaspari, enquanto Euclides escreveu "Os Sertões" sozinho, na contramão da época, talvez com a mesma paixão neurastênica que o impeliu a atacar à bala o amante de sua mulher, o campeão de tiro Dilermando de Assis, que o matou em 1909 em legítima defesa.

Contudo, nenhum dos mestres do passado desperta no ex-presidente sociólogo o entusiasmo que o amigo Sérgio Buarque de Holanda inspira. O historiador, que morreu em 1982 - membro fundador do Partido dos Trabalhadores em 1980 -, apostou as fichas na democracia liberal em 1936, numa década autoritária e polarizada, em que quase todos os intelectuais eram integralistas ou comunistas. "O Sérgio sempre acreditou no caminho democrático", ressalta Fernando Henrique. "É só ver o último capítulo de 'Raízes do Brasil'."

De fato, no capítulo "Nossa Revolução" o historiador mostra a confluência entre expressões da formação nacional e ideais democrático-liberais, tais como a repulsa de descendentes de colonos e índios à sujeição da autonomia do indivíduo; o avanço da urbanização cosmopolita no país; a relativa inconsistência dos preconceitos de raça e de cor; e a convergência da "cordialidade" brasileira com a "bondade natural" rousseauniana da Revolução Francesa. "Isso não é fantástico? É genial", diz Fernando Henrique.

A lupa no passado pode dissipar a névoa do futuro, mas o país precisa de novos inventores. "É o que nos falta. Faltam visões e projetos novos para o Brasil. Ou melhor, as visões existem, mas não emergiram com a força das sínteses do passado", observa o ex-presidente. Para ele, as circunstâncias mudaram. O modo de produção do pensamento tornou-se fragmentado e especializado e o país, muito mais complexo. "Há muita gente capaz de pensar o momento atual e os caminhos certamente aparecerão. Outro dia assisti a uma entrevista notável no programa do Roberto D'Avila com uma neurocientista, a Suzana Herculano-Houzel. No passado não existia esse tipo de competência especializada. Há muitas pesquisas interessantes na universidade. O que falta é a visão abrangente, o telescópio no futuro."

Segundo Fernand Henrique, um dos inventores do Brasil contemporâneo é o economista Edmar Bacha, criador da metáfora da Belíndia. "O Bacha tem excelência técnica e vê longe. O José Serra também tem visão do Brasil. Gosto do José de Souza Martins, que faz uma sociologia do cotidiano. Na antropologia, o Roberto DaMatta percebeu coisas originais sobre o país, como o ensaio 'Você Sabe Com Quem Está Falando?' O José Murilo de Carvalho também é um inventor. Porém, parece que às vezes eles ficam intimidados. Não é fácil trabalhar com uma visão ordenada e sintética do Brasil atual."

Não seria o caso, então, de o "inventor" do Plano Real pôr a mão na massa? "Esse tempo passou. Há 30 anos eu tinha a ambição de pensar o Brasil moderno e escrever 'Grande Indústria & Favela', como uma espécie de continuação do 'Casa Grande & Senzala'. Mas isso passou. Hoje a favela está se urbanizando e a indústria, encolhendo."

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