sábado, 8 de agosto de 2015

José Castello - Poesia e luta

- O Globo / Prosa

Poemas inéditos de Pablo Neruda, que abarcam um período que vai desde os princípios dos anos 1950 até pouco antes da morte do poeta, em 1973, reafirmam a tese de que a poesia não é só uma experiência estética, mas também um instrumento de luta. Lançados em 2014 no Chile, eles nos chegam agora em Teus pés toco na sombra/ Poemas inéditos, edição bilíngüe organizada e traduzida por Alexei Bueno (José Olympio). “Tua obrigação/ é de carvão e fogo,/ tens/ que sujar as mãos/ com óleo queimado/ como fumaça da caldeira”, dirige-se Neruda aos poetas que ainda duvidam de que é preciso se sujar _ das tempestades do real e da turbulência dos sentimentos __ para escrever.

Na era das bienais, das festas literárias e dos talk shows, os poetas _ cheios de si _ tendem a abandonar esse elo que os ata ao combate. O modelo contemporâneo é o do poeta clean. É muito útil, então, o reencontro com Neruda. Sob a imagem do poeta pop do século 21, que brilha e pontifica, seus versos encontram um sujeito pobre e esquecido, que a sociedade, muito mais do que enaltecer, ou mesmo fingindo enaltecer, despreza. Aconselha Neruda aos poetas que o melhor é “esquecer a tua condição/ de esquecido,/ de negro,/ sem esquecer os teus,/ nem a terra”. Para enfrentar essa segunda e severa realidade que se espreme sob a primeira, glamourosa e festiva, e numa antecipação visionária do século 21, ele diz ainda: “endurece-te/ caminha/ pelas pedras agudas/ e regressa”.

No século das facilidades e da pronta-entrega, na era das aclamações fáceis e também dos rápidos esquecimentos, Neruda _ o profeta _ nos lega uma advertência contra os riscos da vaidade. Alguém deixou escrito em sua parede: “Não te envaideças”. Sereno, tratando de pensar sobre o que o incomoda, ele responde: “Não conheço/ a letra nem a mão/ de quem escreveu a frase/ na cozinha. Tampouco o convidei./ Entrou pelo telhado./A quem então/ responder? Ao vento”. E é ao vento _ que leva a todos os lugares, sem a nada excluir _ que o poeta se dirige: “Escuta-me, vento./ Desde há muitos anos/ os vaidosos me jogam na cara/ suas próprias e vazias vaidades”. A frase na parede o adverte de que os poetas não devem se deixar paralisar pelas palavras alheias. Mas, ao contrário, se concentrar em sua escrita e apenas nela. O que dela se faz depois (bom ou mau) já não é problema seu. O problema do poeta é escrever e isso já exige muita coragem.

Neruda se descreve: “em meus sapatos/ em meus velhos/ sapatos deformados/ por meus pés vagabundos,/ a cada cinco anos faço uma roupa nova,/ minhas gravatas caquéticas/ não se vangloriam”. Lição de humildade: os poetas não devem se iludir com o brilho fugaz que a tantos, hoje, embriaga e paralisa. Porque iludir-se com essa luz, despejada por holofotes que desejam mais apagar do que iluminar, é renunciar à própria poesia que, ao contrário, é combate e tremor. “No caminho/não fiz/ mais que ninguém,/ talvez menos que todos”, reconhece. Em Neruda _ como nos poetas mais sábios _ o Eu poético (que os teóricos destacam com as bocas cheias) e o Eu esfarrapado do homem que luta para escrever são, no fim das contas, inseparáveis.

Já no século passado, Pablo Neruda constrói uma crítica do homem moderno que, talvez, tenha se tornado hoje ainda mais atual. “Agora o homem está ocupado/ e não mira o bosque profundo/ já não investiga a folhagem,/ nem lhe caem do céu as folhas”. Logo em seguida, em dois versos radicais, ele resume o que luta para dizer: “está ocupado o homem agora/ ocupado em cavar sua cova”. Afirma Neruda que o homem de hoje se esquece do mundo para admirar o próprio umbigo. Observa a tudo rapidamente _ “não mira o bosque profundo” _, contentando-se com o gozo das superfícies e das aparências. Insiste, sem piedade: “pois estes falecidos mortos/ morreram antes de morrer”.

Sua poesia, ao contrário, se constrói sobre versos que se interessam pelas coisas. É uma poesia que vê a si mesma não como adereço, ou acessório exibicionista, mas como instrumento de conquista. O mundo é doloroso. Viver não é fácil. Também para o poeta, viver é lutar. Só os esnobes e os falsificadores se esquivam. Insiste: “A neve, o mar, a areia,/ tudo será caminho. Lutaremos”. Fala, então, da tragédia do “poeta torpe”, que vende a alma para alcançar, a qualquer preço, o sucesso. Em um tempo no qual tanto se fala de corrupção _ mas sempre exterior, sempre alheia _, pode ser útil o homem se voltar para si mesmo e enfrentar aquilo em que ele mesmo se corrompe.

“Eu, poeta torpe como um pato na terra,/ fui me corrompendo até conceder/ minha orelha superior”. Este poeta sem alma vive entre o orgulho de si e o terror de não ser amado. “Passei a dar a mão a todo mundo/ e me deixei telefonar sem frêmitos”. Nesse vazamento, o inimigo se apodera de seu ser. O poeta se torna, assim, dependente de seu carrasco. Transforma-se na voz dos outros. Torpe _ porque se encontra entorpecido, porque abdica de si _, esse poeta contemporâneo vai se tornando, a cada dia, mais dependente de seus carrascos.

Não: para Neruda a poesia só pode ser uma afirmação constante da liberdade e da coragem. Coragem de que? Coragem de ser. O poeta torpe é aquele que engole a própria voz para se entregar à voz do outro. Torna-se arauto, pregoeiro, porta-voz, astro pop _ não mais poeta. Volta a insistir Neruda, então, na necessidade que o poeta tem de perseverar na solidão. Ser apenas ele mesmo _ e isso deve lhe bastar. Pensa nos astronautas, que se lançam no cosmos em estado de absoluta solidão. Pergunta-se: “Esses dois homens sós,/ esses primeiros homens/ lá em cima/ o que levaram de nós/ consigo?/ De nós os homens, da Terra?”

A poesia de Neruda é sempre uma afirmação da Terra e de seus frutos. É ainda a Terra, ou seus fragmentos, que esses astronautas carregam. É ainda da Terra, e de seus habitantes, que eles se alimentam. “Algo novo vinha da Terra,/ asas ou calafrio, (...),/ ou pensamento imprevisto/ ave estranha”. Do mesmo silêncio que envolve os astronautas solitários, o poeta arranca suas palavras. “Algo flutuava como/ um vestido de noiva/ por trás das duas naves do espaço”. Era a semente do homem, sempre a fecundar o vazio e a ensiná-lo a não desistir de lutar.

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