domingo, 30 de agosto de 2015

Filólogo revisita "Dia Triunfal" de Fernando Pessoa

• Nova edição de “O Guardador de Rebanhos” desmitifica “transe” descrito pelo poeta ao criar versos de heterônimo

Por Edgard Murano – Valor Econômico / Eu &Fim de Semana

LISBOA - Na casa onde viveu Fernando Pessoa nos seus últimos 15 anos, no centro histórico de Lisboa, hoje funciona um museu dedicado a ele. Ali, sobre a escrivaninha do quarto reconstituído com documentos e objetos pessoais, chama a atenção em meio aos papéis a reprodução de um trecho da famosa carta enviada ao crítico Adolfo Casais Monteiro em que relata a gênese de um de seus heterônimos mais populares. Sobre o chamado "Dia Triunfal" - supostamente 8 de março de 1914 - Pessoa se gaba de como, diante de uma cômoda alta, em pé, compôs de uma só tacada "trinta e tantos poemas a fio", como se estivesse sob uma espécie de transe.

O episódio acabou entrando para a história das letras portuguesas como a explicação oficial da origem de "O Guardador de Rebanhos", ciclo de poemas atribuído ao heterônimo Alberto Caeiro que acaba de ganhar nova edição, a cargo do filólogo português Ivo Castro. "O Guardador de Rebanhos foi usado por Pessoa como prova de que tinha havido um aparecimento quase milagroso não só do texto, mas também do autor, Alberto Caeiro. O exame minucioso dos papéis demonstra que nada do que ele contou pode ter sido verdade", afirma Castro ao Valor.

Professor emérito da Universidade de Lisboa, há décadas Castro dirige a Equipa Pessoa, uma força-tarefa designada pelo governo português em 1986 - ano em que a obra do poeta caiu em domínio público - cuja missão tem sido editar os originais do autor arquivados na Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL). Uma iniciativa, diga-se de passagem, que o governo nunca tinha tomado em relação a nenhum outro escritor do país, com exceção de Camões, em 1880, o ano do seu centenário. Foi à porta da BNL, aliás, que uma amiga e antiga professora de Castro, Maria Aliete Galhoz, chamou-lhe a atenção para a existência desses originais.

"Ela disse: 'Olha, tu já viste por acaso os rascunhos dele?' Pensei: como é que pode ter rascunho um manuscrito que é criado de repente naquelas condições quase mediúnicas descritas por Pessoa a Casais Monteiro? 'Mas há rascunhos', ela disse, e estavam na Biblioteca Nacional. De certa maneira a história desses rascunhos é que ocupa meia parte desta minha edição do Caeiro", conta.

Para sua surpresa, ao entrar em contato com esse material, Castro descobriu que não havia poema datado de 8 de março de 1914. Mas havia poemas datados de alguns dias antes e alguns depois. Assim, concluiu: "Era verdade que durante o mês de março e o mês de abril de 1914 Pessoa andou muito ocupado a escrever poemas que viriam a ser reunidos num ciclo, que viria a receber o título de 'O Guardador de Rebanhos' e ser atribuído a um poeta que viria a chamar-se Alberto Caeiro. Mas quando esses poemas iniciais foram escritos, eram peças soltas, dois ou três numa folha de papel, do ortônimo".

De acordo com o filólogo, só posteriormente Pessoa reuniu, enumerou e pôs numa ordem esses poemas soltos que, mais tarde, ainda alterou diversas vezes, com várias tentativas abortadas de passá-los a limpo. "À medida que vai fazendo essa cópia, vai percebendo que lhe faltam poemas pelo meio, que aquilo ainda estava a mexer e ainda estava a crescer. E interrompe essas tentativas, continua a escrever em papéis soltos, e a certa altura percebe-se que já está a fazer a escrita de poemas para ocupar espaços no conjunto, portanto já não é o papel solto a fabricar o conjunto, já é um conjunto semissolidificado que solicita novos poemas."

É justamente a atitude do poeta em relação aos textos - zona cinzenta difícil de detectar em obras cujo processo criativo se encontra documentado - que Castro destaca de maneira perspicaz em sua edição crítica: "Perto do fim, já é o ciclo que está a mandar no poeta".

Outro grande mérito desse trabalho é apresentar ao leitor um Pessoa mais complexo do ponto de vista das escolhas poéticas. Para tanto, a nova edição se vale de um amplo aparato crítico capaz de mostrar quanto as primeiras edições de sua poesia, publicadas nos anos 1940 pela Ática, evitaram problematizar as variantes autógrafas apresentadas pelos manuscritos.

"Os editores da Ática leram os mesmos textos que nós lemos. Mas eles selecionaram, dentro dos papéis do espólio, os poemas que tinham uma aparência mais finalizada, numa letra mais legível, que estavam batidos à máquina, que tinham poucas emendas, que estavam completos. E deduziram que esses eram os poemas em que Pessoa mais tinha trabalhado e os publicaram. Foi esse texto, sanitizado [desinfetado], cosmetizado, selecionado, que durante anos foi conhecido como o texto de Fernando Pessoa. E a imagem cresceu em torno de textos bem escolhidos, bem escritos, bem apresentados, mas que deixavam de fora muitos aspectos e muitas dificuldades da obra dele", afirma.

Para dar conta dessas dificuldades, a edição conta com uma seção chamada "Variantes das edições", em que, para cada variante, são apresentadas as versões que outras edições já publicaram. Para se ter uma ideia das discrepâncias, enquanto uma edição de Caeiro diz "O dourado sol seca a vontade de lágrimas", outra traz "O dourado sol seca as lágrimas pequenas", ao passo que nesta edição mais recente se lê "O grande sol queima a vontade de lágrimas". No que diz respeito a versões diferentes de um mesmo verso ou palavra, deixadas em aberto pelo autor no original, Castro, na impossibilidade de identificar qual foi a primeira ou a segunda, publica as duas.

O que a edição crítica de "O Guardador de Rebanhos" fornece de novo, afinal, é o recurso de todos os materiais manuscritos tratados em pé de igualdade, método que tem sido a tônica da Equipa Pessoa. É a sua colocação em uma perspectiva cronológica que fornece uma linha de evolução criativa de cada poema. De modo que o leitor saiba não só o que o poeta escreveu pela última vez, mas também, nas palavras de Castro, "que coisas esteve a escrever, que arrependimentos teve, o que o texto poderia ter sido se tivesse parado ou se tivesse morrido mais cedo, o que nos faz suspeitar que, caso ele tivesse vivido mais 20 anos, o texto viria a ser substancialmente diferente no futuro."

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